O SEPULCRO DAS IDÉIAS
Sou oficial há alguns anos, mas ingressei na Polícia Militar como praça simples, foi nesse tempo que passei a observar o comportamento dos homens que comandam os destinos dessa intrigante organização. Ao entender o comportamento deles pude me adaptar. Nunca fui muito de falar ou escrever, muito menos de reivindicar direitos. Não nego que isso é uma falha como cidadão, mas busquei compensá-la sendo um observador contumaz. Tornei-me uma coruja do sistema...
Acompanhei vários oficiais desde os tempos de moleque na academia, e vi como muitos deles, depois de ingressarem no primeiro posto, deixam escapar um sentimento, muitas vezes até sincero – e sempre ingênuo – de "mudar a corporação" quando a oportunidade chega.
"Quando eu chegar a coronel, vou mudar isso, vou mudar aquilo..." Inúmeras foram as vezes que ouvi companheiros repetindo esta mesma frase nos primeiros anos de oficialato.
Depois disso, quando chegam a capitão, muitos já esqueceram a ideia "revolucionária" de mudar a PM. Esses podem ser chamados tranquilamente de "precoces", pois logo entendem que o sistema foi feito para eles.
Outros mais raros alimentam a ideia de "dias melhores" até o posto de major. Só que esses, quase sempre, são os que ainda não melaram os dedos no adocicado mel que corre entre as estrelas e gemadas. Os preteridos ou perseguidos pelo sistema são os que ainda reclamam e falam em mudanças.
De tenente-coronel acima, "mudança" é apenas uma palavra no Aurélio. Até mudança de local de trabalho se chama "movimentação" e mudança de comando se chama "passagem".
Quando, finalmente, atingem o último posto da corporação, intitulam-se a si mesmos de "cardeais" – expressão que era usada com um prazer esquisito por um coronel ex-diretor do DETRAN, no governo Suruagy –; nesse momento, o sistema já os absorveu por inteiro. Até os mais sinceros e de bom coração não falam mais em mudanças ou em ideias contrárias ao seu agora amado sistema. Pelo contrário, o posto de coronel constrói na cabeça deles um forte militar contra ventos de mudança. Embora nada possa ser comparado a um coronel da PM, pode-se dizer que é mais ou menos como o cara pobre que consegue enriquecer e passa a ter raiva de pobre, principalmente dos parentes pobres.
Os coronéis são os que chegam à "terra prometida" pelo sistema; aqui não corre apenas leite e mel. Há muitos espólios mais a serem rateados.
Talvez eu também me torne um cego guiando cegos (embora seja quase impossível chegar a coronel por antiguidade, muito menos, pobre de mim, por "escolha"), porque o sistema foi feito para não ser vencido. Não é por acaso que a PM se mantém de pé, por quase dois séculos, quase sem mudanças. Todas as mudanças políticas e jurídicas deste país nunca mudaram as briosas.
Em matéria de sobrevivência a PM bota o Rambo no bolso.
Mas, pense bem, não é sem razão que os coronéis defendem esse sistema com as próprias vidas. Se eles não plantam, não semeiam, não se esforçam para ganhar o pão de cada dia, dão ordens sem ser mandados, porque mudariam as coisas?
Se eles são os herdeiros da PM nunca vão abrir mão de sua propriedade privada.
Observei também que cada coronel sobe ao posto com uma espada e uma mordaça nas mãos. Nem adianta você querer ver, essas armas são invisíveis, estão por baixo das gemadas... São afiadas e manipuladas e aperfeiçoadas nas reuniões secretas do "clero".
A missão principal de um coronel (se você pensava que era só sentar na cadeira e assinar papéis está redondamente equivocado) é calar as vozes contra o sistema.
Qualquer ideia nova soa o alarme, levanta o coronel de sua poltrona, saca a espada de cortar línguas afiadas e a mordaça de calar os contras. Um coronel da PM é um carrasco. Um carrasco das ideias. Um decepador de cabeças pensantes. Não há remorso. Não se vê hesitação. Não existe indulto. A cabeça levantada contra o sistema tem o destino da cabeça de João Batista porque há sempre uma amante do rei que quer o prêmio numa bandeja de inox.
Outra missão dos coronéis é a de detergentes do sistema.
O coronel-detergente limpa e purifica a imagem da PM para mostrá-la numa vitrine. Essa é a PM que a sociedade vê; principalmente a sociedade-autoridade, a sociedade-governo e a sociedade-imprensa.
Nisso, os coronéis são auxiliados por todos nós, oficiais. As praças também contribuem porque o sistema é envolvente, sedutor e nos faz vender sua boa imagem lá fora. É a força da doutrina plantada no CFAP e Academia, onde os chips são implantados nos cérebros.
Além de tudo, as gemadas dão poderes de camaleão: mudam o comportamento de um coronel conforme o local e a pessoa. Se estão diante de uma autoridade capaz de lhes render frutos políticos ou prestígio, são bons atores para mostrar retidão e seriedade, e em muitos casos "babação" mesmo. Se estão perante pares, procuram se mostrar inteligentes; quando estão diante de um subordinado... (comentários dispensados).
E o sepulcro?
Bem, quando alguém fala que fulano ou beltrano é como um "sepulcro caiado", está dizendo, na verdade, que a pessoa até tem boa aparência por fora, enquanto lá por dentro, no interior invisível, a coisa é muito desagradável.
A PM não deveria ser assim, mas hoje, para infelicidade nossa, ela é um sepulcro caiado pelos coronéis. "Por fora, bela viola, por dentro, pão bolorento."
Não é a corporação – quase sempre usada como poderoduto até o palácio do governo e outros nichos do poder –, mas o que os coronéis-coveiros fizeram dela (com exceções raras), seja lhe impondo uma legislação coxa, seja lhe desviando dos trilhos, sua missão.
Portanto, recapitulando, a missão dos coronéis é simples: caiadores de sepulcros e coveiros das ideias indesejadas ou que ameacem o poder das gemadas.
Muitas coisas bem cabeludas são escondidas por trás da pompa externa da PM, lustrada, pelo lado de fora, por seus poderosos comandantes.
Dentro desse sepulcro das ideias, rola coisa feia. Mas para os "gemadões" há sempre um céu de brigadeiro. Não tem tempo ruim. A mamata das viaturas, dos telefones 8833 e 3315, de motoristas à disposição; viagens de "estudos" recheadas de diárias obesas, grana dos "mensalinhos" (aqueles pagos pelos bancos, no Interior e na Capital, pelas usinas, fazendas e empresas de ônibus que "contribuem" para as unidades da PM); da rica tia DAL; das taxas arrancadas dos alunos do CFAP e Academia, do acesso ao poder pelos subterrâneos da PM; do abuso de autoridade, usado tanto para mamar como pra perseguir os subordinados.
Quando era tenente, trabalhei com um coronel no CPI que deixava motorista e viatura à disposição de seus dois filhos e da esposa, inclusive aos sábados, domingos e feriados.
É por isso tudo que os coronéis se atiram de corpo, alma e gemadas ao ramo de coveiro, e acabam se tornando tão bons que passam a sepultar as próprias ideias. É o sistema que importa: manter o sistema é preciso, viver não é preciso.
Como a vida às vezes é irônica e engraçada. O tempo como aluno de oficial e a promoção a coronel é um círculo que se fecha. Quando se é aluno não se fala do sistema porque não se pode ou não se conhece. Quando se chega a coronel, ninguém fala porque só um doido cospe no prato que come.
Não posso negar que, na qualidade de oficial, namoro o sistema, gosto dele, mas tem coisas que precisam chegar ao conhecimento da sociedade.
É por isso que dificilmente essa minha relação com o sistema acabará em casamento, porque pra casar mesmo, meu filho, tem que ter acesso ao papa, mas, pra isso, precisa antes ser cardeal, senão, melhor meter uma promoção por tempo de serviço e ser cardeal na reserva.
Por fim, uma coisa é certa: eu não estou preparado para caiar sepulcros...
Fonte: Acesse: http://www.uniblogbr.com/2011/10/briosa-em-foco-o-sepulcro-das ideias.html#comment-form
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