Entrevista especial com Alexandre de Freitas Barbosa
“A superação da desigualdade no Brasil depende de um novo padrão de desenvolvimento”, diz o economista.
Confira a entrevista.
Foto: http://www.portalodm.com.br |
“A desigualdade segue sendo um problema muito grave no Brasil”. Ela é “muito superior à de qualquer país desenvolvido” e, com exceção da África do Sul, é a maior “entre economias com o mercado interno dinâmico”, informa Alexandre de Freitas Barbosa à IHU On-Line. Coordenador da pesquisa “O Brasil real: A desigualdade para além dos indicadores”, encomendada pela organização europeia Christian Aid, e realizada por um conjunto de pesquisadores do Centro Brasileiro de Análise de Planejamento – Cebrap,
o economista reconhece a efetividade das políticas públicas
desenvolvidas pelo governo brasileiro nos últimos dez anos, mas adverte
que o “fim da miséria é apenas o início. A próxima agenda é a do
desenvolvimento com combate à desigualdade, e para isso a transferência
de renda via Bolsa Família é insuficiente”. Para ele,
slogans utilizados pela mídia e pelo governo, tais como “ascensão da
nova classe média”, “país rico é país sem pobre”, “o Brasil vai virar
uma potência desenvolvida”, acabam contribuindo para ofuscar a agenda do
desenvolvimento da desigualdade.
Ao analisar os dados dos indicadores e confrontá-los com a realidade brasileira, Barbosa
assinala que “a desigualdade caiu mais nas regiões ricas, nos estados
de maior renda per capita, da região Sudeste e da região Sul”. Para ele,
esses dados refletem a estrutura do mercado de trabalho e o aumento do
salário mínimo. Já nas regiões Norte e Nordeste, a queda da desigualdade está atrelada aos programas de distribuição de renda.
“Como nessas regiões os segmentos mais pobres não necessariamente
recebem o salário mínimo e, sim, as transferências de renda num montante
que, diríamos, é bem inferior àqueles que recebem um salário mínimo ou
daquelas transferências corrigidas pelo salário mínimo (...), percebemos
que nesses estados houve uma queda importante da pobreza. Refiro-me
especificamente à pobreza medida pelo critério de renda, mas a queda da
desigualdade não foi tão expressiva”, menciona na entrevista a seguir,
concedida por e-mail.
Alexandre de Freitas Barbosa
é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de
Campinas – Unicamp, mestre em História Econômica pela Universidade de
São Paulo – USP, e doutor em Economia Aplicada pela Unicamp. É professor
e pesquisador de História Econômica do Instituto de Estudos Brasileiros
– IEB da USP e participa da Direção da Associação Brasileira de Estudos
do Trabalho – ABET.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Os indicadores demonstram redução da pobreza no
país, aumento na renda, melhores condições de vida e aumento dos
índices de emprego. Quais diferenças aponta entre os dados apresentados
pelos indicadores e a realidade social brasileira?
Foto: http://www.smabc.org.br/smabc |
Alexandre de Freitas Barbosa – Os indicadores
refletem uma das camadas da realidade, porque ela é mais complexa do que
os indicadores apontam. Temos que olhar um conjunto de indicadores e
saber o que cada indicador diz. Por isso, muitas vezes os economistas ou
os cientistas sociais que trabalham com indicadores acabam mais
atrapalhando do que ajudando nas análises, porque se fixam
exclusivamente nos indicadores e nem tanto em uma interpretação que pode
ser fornecida a partir deles.
Nesse estudo que realizamos, intitulado “O Brasil real: a desigualdade para além dos indicadores”,
não deixamos de mostrar os indicadores, mas o esforço foi fazer uma
interpretação para além dos indicadores, embasado naquilo que eles
mostram.
Então, os indicadores demonstram, no período da primeira década do
século XXI – os dados vão até 2009, porque ainda não tinha saído a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios – PNAD de 2011 –, as mesmas tendências que ocorreram ao longo da década. Ou seja, mostrou haver uma melhoria no mercado de trabalho,
uma queda bastante pronunciada da pobreza e uma redução não tão
pronunciada da desigualdade. Em primeiro lugar, nós temos de saudar
essas mudanças não no sentido de comemorar, mas porque talvez tenha sido
a primeira vez, na história do Brasil, em que se teve uma queda da
pobreza junto com uma queda da desigualdade. Isso foi ancorado num
processo de melhoria do mercado de trabalho, do emprego, da renda e de
um importante movimento, no âmbito do governo, pressionado pelos
movimentos sociais, de estabelecer um novo sistema de proteção social,
do qual um dos eixos é o Bolsa Família.
IHU On-Line – Como as políticas sociais repercutiram no
enfrentamento à pobreza e às desigualdades sociais nas diferentes
regiões do Brasil?
Alexandre de Freitas Barbosa – Um dos problemas dos indicadores é que eles partem de uma média. No caso da desigualdade, ela geralmente é medida pelo coeficiente de Gini,
o qual demonstra que houve uma queda da desigualdade brasileira. Na
nossa pesquisa, tentamos mostrar até que ponto essa queda da
desigualdade acontecia nas outras regiões do país e de que maneira isso
ocorria. Percebemos algumas coisas que vão contra o senso comum. A
primeira delas é que a desigualdade caiu mais nas regiões ricas, nos
estados de maior renda per capita, nos estados da região Sudeste e da região Sul.
Por que será que isso acontece? Uma das hipóteses é de que esse mercado
de trabalho encontra-se mais estruturado e os mais pobres estão mais
próximos do salário mínimo. Então, aumentar o salário mínimo, na
verdade, ajuda a corrigir a renda dos segmentos mais pobres. E como o
salário mínimo é o montante expressivo, e boa parte da renda das pessoas
é a renda do trabalho, teve-se uma melhoria da desigualdade mais
substantiva.
Geralmente, nos casos da região Norte e Nordeste,
houve uma queda da desigualdade também, mas como nessas regiões os
segmentos mais pobres não necessariamente recebem o salário mínimo e,
sim, as transferências de renda num montante que, diríamos, é bem
inferior àqueles que recebem um salário mínimo ou daquelas
transferências corrigidas pelo salário mínimo, como a previdência rural e
os benefícios de prestação continuada, percebemos que nesses estados
houve uma queda importante da pobreza. Refiro-me especificamente à
pobreza medida pelo critério de renda, mas a queda da desigualdade não
foi tão expressiva.
No caso do Nordeste, há um mercado pouco
estruturado, há um contingente que não está no mercado de trabalho e que
atua tangenciando-o, em atividades informais ou como pequenos
produtores rurais, muitas vezes sem acesso ao mercado. Então, a renda
dessas pessoas não é corrigida pelo salário mínimo. Nesse caso, para se
ter políticas mais estruturantes de combate à desigualdade, o salário
mínimo não cumpre o papel decisivo, ainda que seja importante, e o
programa Bolsa Família é insuficiente em termos de melhoria, de gerar um
processo de mobilidade social.
IHU On-Line – Os programas de transferência de renda foram
considerados um avanço, mas ainda não alteraram a desigualdade
estrutural. Quais os limites desses programas e como avançar a partir
deles?
Alexandre de Freitas Barbosa – Não estou dizendo que o Bolsa Família
não seja importante. O próprio governo admite que junto, com este
programa, precisa-se ter um conjunto de ações estruturantes em termos de
distribuição de terras, de acesso ao crédito, de formação de
cooperativas. Só que essas ações exigem muito mais tempo e organização
do que as ações de transferência de renda.
Trabalhamos com alguns indicadores que apontam o diferencial de renda
dos 10% mais ricos para os 10% mais pobres. Se você pega os 10% mais
ricos e os 10% mais pobres, vê que essa diferença, em 2003, era de 52
vezes, ou seja, os 10% mais ricos recebiam 52 vezes mais do que os 10%
mais pobres. Esse percentual caiu para 40 vezes em 2009. Ou seja, em um
período de seis anos se teve uma queda substantiva da desigualdade. Mas
essa diferença de 40 vezes era a que o Brasil tinha, por exemplo, em
1970. Ela é muito superior à de que qualquer país desenvolvido e é,
provavelmente, tirando a África do Sul, o maior nível
de desigualdade entre economias com o mercado interno dinâmico. Então, a
desigualdade segue sendo um problema muito grave no Brasil.
IHU On-Line – Quais devem ser os reflexos dessas políticas
públicas nos próximos anos? Considerando um projeto de país, o que elas
representam?
Alexandre de Freitas Barbosa – Isso é um pouco do
que o estudo se pergunta, ou seja, se o mesmo conjunto de medidas
adotadas até agora é suficiente para reduzir a desigualdade num ritmo
mais forte no futuro. Nós temos dúvidas quanto a isso. Então, colocamos
um conjunto de questões sobre a necessidade de um novo padrão de
desenvolvimento, desenvolvendo setores de maior produtividade, uma maior
participação na renda do trabalho, uma ampliação das políticas públicas
de saúde, de educação, de moradia urbana, de mobilidade urbana.
Então, quando o governo utiliza o slogan de que “o combate à
miséria é apenas o começo”, isso é verdade, mas o próximo desafio é a
desigualdade. E, a partir da percepção de como vemos o debate no Brasil,
não vemos essa questão da desigualdade emergindo no centro da agenda
nacional. Há um setor produtivo que defende desonerações, defende o
câmbio mais desvalorizado; tem o governo que cria o Brasil Sem Miséria dentro do programa Bolsa Família.
Mas não há um conjunto de políticas que junte essas ações sociais
voltadas para a transferência de renda para segmentos mais vulneráveis.
Na verdade, precisa-se de um novo padrão de desenvolvimento que
permita atacar a questão da desigualdade nos vários territórios do
Brasil, porque a desigualdade se apresenta de várias maneiras,
dependendo se a pessoa está na região Sul ou Sudeste, ou na região Nordeste, ou em regiões metropolitanas como Recife e Porto Alegre.
Ou seja, são vários padrões de desigualdade que convivem no mesmo país.
Então, alguns slogans que têm sido utilizados pela mídia e pelo governo
acabam contribuindo para ofuscar a agenda do desenvolvimento da
desigualdade. Vou dar alguns exemplos: “Nova classe média”,
“País rico é país sem pobre”, “O Brasil vai virar uma potência
desenvolvida” etc. Se for uma potência desenvolvida, é uma potência
desenvolvida com “pés de barro” porque, na verdade, teve-se um processo
de mobilidade social acionado por transferências de renda e expansão de
emprego – geralmente empregos com um salário mínimo – com pessoas que
sofrem grandes distâncias para chegar ao seu trabalho, ocasião em que
metade dos trabalhadores ainda não tem acesso à previdência social.
Então, por mais importante que seja essa agenda, e o próprio governo
parece que reconhece que o fim da miséria é apenas o início, a próxima
agenda é a do desenvolvimento que visa combater a desigualdade. E para
isso a transferência de renda via Bolsa Família é insuficiente.
IHU On-Line – O senhor destaca o aumento do salário mínimo
como uma medida central para diminuir as desigualdades. Entretanto,
considerando a atual estrutura do mercado de trabalho e o crescimento no
setor de serviços, é possível continuar reduzindo a desigualdade ou
corre-se o risco de manter baixos salários?
Alexandre de Freitas Barbosa – Quando se gera muito
emprego, começa a aparecer o que algumas pessoas chamam “apagão de
obra”; eu não gosto desse termo, na prática trata-se da escassez de
trabalhos mais qualificados. Se você quiser esse novo padrão de
desenvolvimento com o desenvolvimento de setores de maior produtividade,
que adicionam o maior valor e por isso podem gerar melhores empregos,
ele permite uma mobilidade social importante. Estou pensando justamente
no processo de mobilidade social. Ou seja, num período de 20 anos, que
estrutura social o Brasil vai ter? Uma estrutura social de uma classe
média que vive da exploração do empregado doméstico sem carteira
assinada, ou uma estrutura social que vive, digamos, de cargos bem
remunerados, de técnicos profissionais, especialistas com curso superior
nas áreas importantes de gestão das empresas e do setor público? De uma
classe trabalhadora que possa acompanhar, com os seus salários, os
ganhos de produtividade e de um setor que vai continuar existindo de
trabalhadores vinculados à prestação de pequenos serviços, à pequena
produção rural, que precisam se organizar em cooperativas de maneira a
defender os seus rendimentos?
O que aconteceu no Brasil foi um processo de recuperação do poder de
compra, o qual estava muito baixo para os salários de todo mundo,
principalmente para o pessoal que está na base da pirâmide social.
Agora, é preciso dar um passo para que alguns desses segmentos possam
realmente se vincular a uma classe trabalhadora de salários médios,
razoavelmente elevados em altos níveis de qualificação. Nos próximos 20
anos, temos de preparar essa transição.
Quando nós estamos falando de desenvolvimento relacionado à
desigualdade, estamos falando apenas daqueles que vivem da renda do
trabalho, o que é um problema. É como se pegasse um bolo no Brasil e,
desse bolo, 40% ficasse com os salários, e dentro daqueles que vivem com
os salários, ver-se a desigualdade. É a chamada distribuição de
desigualdade pessoal da renda. E a desigualdade funcional, que é o lucro
versus os salários?
Então, precisa-se aumentar a participação dos 40%, fazendo com que os
segmentos de baixos salários subam mais rapidamente. Por isso esses
terão uma cobertura via salário mínimo, e os segmentos de maior
produtividade aumentarão a sua renda de acordo com os níveis de
produtividade que podem crescer, inclusive acima do salário mínimo. Mas o
mais importante é que a renda do trabalho passe a ter mais importância
no conjunto da renda nacional.
Quer dizer que o capital vai perder? Não. Pode ser que a taxa de
lucro do capital seja menor, mas a massa de lucros dele vai se ampliar,
porque vão ter mais mercados etc. É possível até conseguir mercados fora
do país, caso se aumente a produtividade, e ter produtos mais
competitivos. Então, a política de sustentação e de valorização do
salário mínimo é um dos elementos. Ela foi talvez um dos eixos desse
processo de redução da desigualdade de renda. Porém, se acoplar a um conjunto de outras políticas.
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