Reserva de mercado
A Constituição do Brasil, ao instituir o sistema jurisdicional, estabeleceu, ao lado do Poder Judiciário, três funções essenciais à Justiça: Defensoria Pública, Ministério Público e Advocacia, cada qual com atribuições específicas e inconfundíveis entre si. Duas delas motivam a abordagem do presente artigo.
À advocacia, um múnus público exercido a título privado, a Constituição conferiu a qualificação de indispensável à administração da Justiça (artigo 133), reconhecendo a importantíssima ideia de que a construção da jurisdição democrática não se faz, por completo, nos corredores do público-estatal.
Já à Defensoria Pública a Constituição outorgou outra tarefa, que, como dito, não se confunde com a dos advogados. Trata-se da defesa dos necessitados (artigos 5º, LXXIV, e 134 ).
No dia 1º de agosto deste ano, a Ordem dos Advogados do Brasil, por seu Conselho Federal, ajuizou no STF Ação Direta de Inconstitucionalidade, que recebeu o número 4.636. Essa ADI questiona a legitimidade da Defensoria Pública para defender pessoas jurídicas. Nessa ADI, a OAB também pleiteia manter poder correcional sobre os Defensores, já sujeitos a correção institucional própria e declarar a incapacidade postulatória decorrente do exercício do cargo do Defensor sem filiação aos quadros corporativos da advocacia (artigo 4.º, V e parágrafo 6º, da LC 80/94).
No primeiro ponto — defesa de pessoas jurídicas — é certo que nem todas as pessoas jurídicas possuem condições de custear o serviço de um advogado. Imaginem-se, dentre outros, um verdureiro ou pipoqueiro, um artesão, um motoboy ou uma costureira, que exercem microempresa, em regime familiar por sociedade de responsabilidade limitada, cujos lucros mensais não exorbitem R$ 1.566,00 – limite aproximado de atuação da Defensoria Pública da União. Essas pessoas jurídicas, titularizadas ou geridas por pessoas hipossuficientes, certamente não teriam condições financeiras de pagar um advogado. A vingar a tese da OAB, sem a atuação da Defensoria Pública, a esses pequenos empreendedores, que o governo federal precisamente tenta agora encorajar (vide LC 128/2008, sobre o microempreendedor individual), não se franquearia o acesso ao sistema jurisdicional brasileiro (o famigerado “acesso à Justiça”).
Não há na Constituição qualquer indicativo de que a pessoa jurídica necessitada de recursos não possa ser assistida pela Defensoria Pública. Ao contrário, o artigo 5º, LXXIV, dispõe que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Portanto, o requisito para a assistência jurídica é a insuficiência de recursos, e não a condição de pessoa física ou jurídica. A doutrina constitucional aponta que os direitos e garantias individuais, dispostas ao longo do texto constitucional e, especialmente no artigo 5º, se aplicam tanto a pessoas físicas quanto jurídicas. (confira-se QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de. A pessoa jurídica pobre na forma da lei e sua proteção constitucional de acesso à justiça. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, 60, 1 nov. 2002. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/3554 Acesso em: 3 ago. 2011, e suas substanciosas referências bibliográficas).
De outro lado, o texto legal impugnado pela OAB no STF em nada extrapola o texto constitucional:
Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outros:
(...)
V — exercer, mediante o recebimento dos autos com vista, a ampla defesa e o contraditório em favor de pessoas naturais e jurídicas, em processos administrativos e judiciais, perante todos os órgãos e em todas as instâncias, ordinárias ou extraordinárias, utilizando todas as medidas capazes de propiciar a adequada e efetiva defesa de seus interesses;
Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outros:
(...)
V — exercer, mediante o recebimento dos autos com vista, a ampla defesa e o contraditório em favor de pessoas naturais e jurídicas, em processos administrativos e judiciais, perante todos os órgãos e em todas as instâncias, ordinárias ou extraordinárias, utilizando todas as medidas capazes de propiciar a adequada e efetiva defesa de seus interesses;
Sob o aspecto Constitucional, a ADI da OAB não tem procedência. Em vez de destinada à implementação da força normativa da Constituição (HESSE, Konrad), a ADI parece, com a devida vênia, motivada por corporativismo para reserva de mercado.
Em suma, a Constituição do Brasil não contém a expressão “pessoa física” para limitar a exclusividade de atuação da Defensoria Pública, como pretende a OAB. A pessoa, física ou jurídica, que pode pagar contrata advogado; a que não pode tem o direito fundamental a um Defensor Público.
Ao leitor pode ficar a interrogação: como fazer reserva de mercado em relação a pessoas, físicas ou jurídicas, que não podem pagar? Vale esclarecer o aparente paradoxo. É notória a existência da figura dos advogados dativos, aqueles que, nomeados pelo juiz, exercem atividade de defesa de interesse da parte mediante remuneração do Poder Público. Em algumas seccionais, parcela significativa de advogados depende dessa atuação para o sucesso ou, ao menos, a subsistência profissional. O grande problema é que estão a exercer o serviço público e essencial à jurisdição de assistência aos necessitados sem anterior concurso público, de provas e títulos, sem vínculo estatutário com a Administração Pública e, sobretudo, sem controle de qualidade sobre a atuação que lhes vem sendo precariamente delegada. Some-se a isso a situação peculiar do Judiciário Trabalhista, em que os Advogados são remunerados com parcela das verbas devidas ao trabalhador, fato destacado pelo excelentíssimo senhor ex-presidente da República Luís Inácio Lula da Silva quando da cerimônia de aprovação da LC 132/09 (a mesma que a OAB vem impugnar) como agravante da situação de necessidade do trabalhador jurisdicionado.
Em segundo ponto, a OAB postula, na ADIN 4636, o poder correcional sobre o trabalho dos Defensores. É preciso sublinhar que, enquanto um Advogado se sujeita apenas ao Tribunal de Ética da seccional a que filiado, o Defensor Público está sujeito aos princípios constitucionais da Administração Pública (art. 37 da CRFB), aos deveres funcionais do cargo (arts. 11 da LC 80/94), à Corregedoria-Geral da Defensoria Pública, ao Conselho Superior da Defensoria Pública, ao Código de Ética da Administração Pública e ao Código de Ética da Defensoria Pública. O poder correicional pretendido pela OAB, instituição sabidamente representante dos advogados privados, inclusive dativos no precário regime acima exposto, tem, assim, qual finalidade constitucional?
Com a devida vênia, mais uma vez parece que a ADI 4.636 da OAB, por seu Conselho Federal, apresenta viés corporativista. Afinal, não há razão para um novo “controle” dos Defensores Públicos já controlados institucionalmente por suas corregedorias e, em especial, pela população, por meio das Ouvidorias das Defensorias Públicas e do contato diuturno com os assistidos. A propósito, cabe destacar que o Exmo. Presidente da OAB, Dr. Ophir Cavalcante, elogiou o normativo da Advocacia-Geral da União, também no ponto em que exclui o poder de correição da Ordem, afirmando que os agentes públicos estariam sujeitos apenas ao poder correcional da Corregedoria da AGU (confira-se http://www.oab.org.br/noticia.asp?id=22300). Nota-se, logo, um comportamento contraditório da OAB em detrimento daqueles cuja filiação vem pretensamente avocar na ADI 4.636.
A terceira pretensão da ADI 4.636 diz respeito à declaração de incapacidade postulatória do Defensor Público, decorrente exclusivamente do cargo que ocupa. Como os demais, esse pleito não merece prosperar.
De fato, os Defensores Públicos Federais encontram-se inscritos na Ordem dos Advogados e os signatários assim se mantêm. Mesmo exercendo mandato eletivo e afastado do exercício da função, o Presidente da Anadef ainda está filiado à OAB. Logo os signatários-filiados à OAB podem enxergar, com bastante tranquilidade, que o ajuizamento da ADI 4.636 é, no mínimo, precipitada, amputando, ainda no nascedouro, potenciais debates mutuamente respeitosos sobre a legitimação da Ordem para bem representar os Defensores Públicos.
Embora inscritos na OAB, questionam-se os Defensores Públicos Federais, em geral e muitas vezes, sobre qual representação a Ordem dos Advogados do Brasil oferece, como órgão de classe, aos Defensores. Não o é, certamente, a defesa da advocacia dativa...
Exemplos desencorajadores da aproximação não faltam, sendo o ajuizamento da ADI apenas mais um deles. Em Santa Catarina, com a finalidade de manter o mercado da Defensoria Dativa para os advogados privados, a desqualificação dos serviços da Defensoria Pública e dos Defensores Públicos é prática useira e vezeira da cúpula da Subseção, o mesmo acontecendo, infelizmente, em outros Estados da Federação. Em Brasília-DF, na estruturação incipiente dos trabalhos da Defensoria Pública da União – DPU no Judiciário Trabalhista do Distrito Federal, a Ordem dos Advogados manifestou-se expressa e veementemente contrária à atuação, buscando altas autoridades do Governo local para evitar que, finalmente, a Defensoria exercesse suas atribuições constitucionais naquela Especializada em prol das pessoas hipossuficientes.
Cabe uma derradeira assertiva sobre o tema. O ajuizamento da ADI 4.636, anunciada em destaque no site da OAB, é mais uma prova, em consonância com as demais, de que o controle pretendido pela Ordem dos Advogados do Brasil sobre os Defensores Públicos Federais foge da necessária linha de diálogo e conquistas conjuntas que deveriam existir na relação representante-representados, em proveito de um sistema jurisdicional mais democrático, inclusivo, acessível e célere, e, enfim, de uma representatividade que fizesse merecer a inscrição de cada Defensor Público Federal na respeitável Ordem dos Advogados do Brasil.
O jugo não será aceito! A representação enseja companheirismo, diálogo e respeito!
Gabriel Faria Oliveira é presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef).Vinícius Diniz Monteiro de Barros é defensor público federal em Minas Gerais, membro da Comissão de Prerrogativas da Defensoria Pública da União.
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