Das chacinas de Osasco no ano passado à recente morte do menino Ítalo, a propagação de imagens flagrantes de violência policial nos meios de comunicação impulsionou ainda mais o debate sobre a reestruturação do sistema de segurança pública brasileiro por meio da desmilitarização das polícias.
A violência policial tem raízes na própria formação educacional dos oficiais militares. Ela é feita em isolamento, em academias assimiladoras que separam o então cadete do restante da sociedade, como uma forma de construir para ele uma nova identidade puramente militar e completamente diferenciada de seu antigo caráter civil.
Ao sair do isolamento, o militar recém-formado deixa um ambiente de conceitos claramente discernidos para iniciar sua vida profissional em um mundo de conceitos diversificados e complexos. Nesse processo, na condição de agente de segurança pública, a ocorrência de choques entre o policial militar e a sociedade civil torna-se inevitável.
Formado em uma estrutura hierárquica rígida e extremamente verticalizada, que privilegia a ordem e a obediência, em vez do debate e da persuasão, o policial militar tende a submeter a sociedade e as instituições civis a estes valores, reproduzindo uma relação de hierarquia na qual elas estariam supostamente subordinadas aos militares e devessem obedecer aos seus comandos.
Soma-se a isso a insuficiente educação em Direitos Humanos nas academias militares (1,5% da grade curricular em SP em 2013), ignorando-se uma série de tratados internacionais que abrangem os direitos de minorias e a abolição da tortura.
A tortura, aliás, é objeto recorrente de denúncia envolvendo policiais militares. Um estudo feito pelo IDDD no CDP de Guarulhos, por exemplo, que acompanhou mais de 400 presos, demonstrou que 48,5% deles disseram ter sofrido agressões físicas durante a prisão, sendo que em 83% desses casos havia o envolvimento de policiais militares.
É interessante, nesse ponto, lembrar-se da lição de Adorno, para o qual a educação que tem o objetivos de criar pessoas “duras” estimula a indiferença em relação a dor dos outros. Não é estranho que, em uma sociedade que acredita no estigma de que Direitos Humanos servem apenas para proteger criminosos, uma instituição “dura” como a Polícia Militar use sistematicamente a tortura como um método para obter informações e confissões forçadas.
Além disso, o isolamento no qual o círculo militar se forma, além da rigidez e verticalidade hierárquica que desestimula o debate, contribuem para a criação de um ambiente fértil para o desenvolvimento do preconceito. Trabalhando como uma máquina de guerra que busca soluções padrão por meio da rotulação de pessoas e criação de estereótipos, em uma sociedade desigual que criminaliza a pobreza, o preconceito institucional da polícia militar tem como sua maior vítima a população pobre e negra.
Nesse ponto, a chamada ideologia do inimigo se revela como uma das principais bases do militarismo e da violência policial. Importante lembrar que a Polícia Militar surge durante a Ditadura, na época da Doutrina de Segurança Nacional. Desde então, apesar da redemocratização, migrou-se para uma verdadeira Doutrina de Segurança Social, sendo certo que a ideia de que a manutenção da ordem se dá por meio da eliminação de um inimigo interno continuou a ser aplicada.
A diferença, agora, porém, é a de que esse inimigo não mais é definido por caráter ideológico, mas sim por critérios étnicos, sociais e geográficos, sempre carregados de preconceito, tendo como consequência uma série de casos de violência policial contra o povo negro, pobre e periférico.
Essa violência consequente do militarismo é facilmente demonstrada em números, e o 9º Anuário do Fórum de Segurança Pública, lançado em 2015, com estatísticas referentes a 2014, comprova isso.
O estudo, realizado a partir de dados oficiais fornecidos pelas Secretarias de Segurança Pública dos Estados, expõe o espantoso número de 3.009 vítimas da letalidade policial no ano de 2014, uma média de 3 pessoas a cada hora e um aumento de 37,2% em relação ao ano anterior.
Ressalta-se, ainda, que há uma forte desconfiança de que este número possa ser maior, pois foram usados dados oficiais. Mas, mesmo subestimada, a letalidade policial corresponde a 5% das mortes violentas do país, superando os casos de latrocínio em 46,6%.
Embora o número esteja bastante subestimado, já que alguns Estados, como o Rio de Janeiro, forneceram dados sem especificar a corporação, sabe-se que, desse total de vítimas, 1.881 foram mortas por policiais militares, sendo 305 enquanto eles estavam de folga. Importante, também, ressaltar o papel da PM paulista nessas estatísticas, pois ela foi responsável por 965 vítimas em 2014 (contra 614 em 2013), sendo que em 230 desses casos os policias estavam fora de serviço.
Um estudo feito pelo SPTV demonstrou que, no ano seguinte, a situação não pareceu melhorar. Através da análise de Boletins de Ocorrência disponibilizados via Lei de Acesso, apoiando-se em casos de mortes classificadas como confronto, o estudo chegou à conclusão de que a polícia paulista teria sido responsável por um a cada quatro assassinatos no Estado, em 2015, superando a estatística dos anos anteriores. O aspecto racista da violência policial também ficou explícito no estudo, já que 72% das vítimas eram pretas ou pardas.
Mas não só a sociedade civil sente na pele as mazelas do militarismo. Para além da submissão a um regimento interno extremamente rígido, condições precárias de trabalho e uma Justiça Militar arcaica que mais se preocupa com a insubordinação e a indisciplina dos praças que com a punição aos casos de violência, existe ainda uma alta taxa de mortalidade entre os próprios policiais militares. Só em 2014, foram 352 assassinados no país todo, sendo que 288 deles estavam fora de serviço no momento da morte.
As estatísticas e os recentes casos que repercutiram na mídia deixam claro que a adoção de uma política militar para a segurança pública, junto com a interminável guerra contra as drogas, levaram o Brasil a um cenário de violência sistêmica contra as classes menos favorecidas. Sobre a criminalização das drogas, o que se observa é que, com essa justificativa, uma série de operações policiais que causam a morte de civis são realizadas e, até mesmo, aplaudidas por uma parcela da população. Além disso, conforme os estudos do IDDD no CDP de Guarulhos e no acompanhamento das audiências de custódia em São Paulo, estima-se que a política de drogas seja responsável por cerca de 25% da população carcerária do Brasil.
Diante de todos esses fatos, fica claro que o respeito aos Direitos Humanos e a eficiente redução da criminalidade, no Brasil, passam, antes de tudo, pela desmilitarização da polícia e pela descriminalização das drogas. Se de um lado a política de drogas tem papel determinante na explosão da população carcerária do país, de outro, o militarismo se mostrou um sistema de segurança pública extremamente caro e ineficiente.
Isso porque, embora o Brasil gaste, proporcionalmente, o mesmo que países como a França, a Espanha e o Reino Unido, cerca de 1,5% do PIB, temos uma taxa de homicídios de mais de 50 mil por ano, contra menos de mil nesses outros países.
Assim, o caminho para um sistema de segurança pública que atenda os desejos e direitos da população começa pela formação de uma polícia comunitária e desmilitarizada, pautada na aproximação entre o policial e o cidadão comum, na atuação que reúna o agente de segurança pública, a comunidade e as demais instituições públicas, no respeito aos Direitos Humanos e das minorias, na substituição das ações ostensivas pelas preventivas, no ciclo completo e na carreira única, na visão interdisciplinar que reconheça as causas sociais da criminalidade, na valorização do poder municipal e na criação de uma ouvidoria completamente independente da instituição policial.
Almir Valente Felitte – Advogado e Agente da Pastoral Carcerária
Obs1: A PEC 51/2013 tramita no Senado e trata da desmilitarização das polícias e a formação do policiamento comunitário.
Obs2: A PEC 431/14 trata da implantação do ciclo completo na PM. Assim, a PM poderia também cumprir a função de investigar. A PEC 51/2013 e o movimento de desmilitarização da polícia defendem o ciclo completo, mas são contra a PEC 431 porque ela somente atribui mais poder à PM e não trata da desmilitarização.
Obs3: há um projeto do deputado Álvaro Camilo (PSD), ainda não proposto oficialmente, que ameaça a autonomia da Ouvidoria da PM em SP, pois quer retirar da Condepe (entidade que reúne órgãos da sociedade civil) o direito de indicar nomes para a função, bem como facilitar o processo de exoneração do Ouvidor. Tal projeto é completamente contrário à formação de uma polícia comunitária, pois dificulta os mecanismos de controle que a sociedade pode exercer sobre a polícia.
Fonte: http://carceraria.org.br/desmilitarizacao-da-policia-militar.html
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