Acorda, Policial e Bombeiro Militar!


O verdadeiro desafio não é inserir uma idéia nova na mente militar, mas sim expelir a idéia antiga" (Lidell Hart)
Um verdadeiro amigo desabafa-se livremente, aconselha com justiça, ajuda prontamente, aventura-se com ousadia, aceita tudo com paciência, defende com coragem e continua amigo para sempre. William Penn.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Advogados contam estratégias da defesa na ditadura

ANOS DE CHUMBO


Quando o advogado Idibal Pivetta foi preso pelos militares durante a última ditadura e ficou incomunicável, seu defensor, designado pela OAB-SP, José Carlos Dias, não teve dúvidas: foi ao Superior Tribunal Militar pedir uma entrevista pessoal e reservada com o colega, como prevê o Estatuto da Ordem. Mesmo sem estar inscrito para falar no tribunal naquela sessão, Dias pediu a palavra ao presidente da corte, general Adalberto Pereira dos Santos. Contrariando as expectativas e o próprio regimento do tribunal, o militar permitiu que o advogado subisse à tribuna e relatasse o caso.
Dias protocolou o pedido no STM e, quando retornou ao seu escritório em São Paulo, havia um recado para que ele se dirigisse à Auditoria Militar. Lá havia um telex do STM informando que a incomunicabilidade de Pivetta fora derrubada. Dias conseguiu ver o colega. “Esse fato, e tantos outros, mostra o que precisávamos criar para que conseguíssemos caminhar na defesa de nossos perseguidos políticos”, disse o advogado em debate sobre o direito de defesa na ditadura, promovido pela Faap no último dia 19 de março. Também participaram do encontro os advogados Belisário dos Santos Júnior, Idibal Pivetta e Rosa Cardoso da Cunha. Eles contaram algumas das estratégias que empregaram durante o regime militar para defender os presos políticos.
Dias disse que, antes de o direito a Habeas Corpus ser suspenso pelo AI-5, em 1968, um dos expedientes adotados para atuar na Justiça Militar consistia em impetrar HCs com a alegação de que o cliente estava preso por um crime que não era político. “O que queríamos antes de mais nada era um recibo de vida, para que pudéssemos depois entrar com pedido de liberdade.”
HCs disfarçados
Com a suspensão do Habeas Corpus, os advogados foram obrigados a adotar mecanismos alternativos. Para evitar a morte dos presos, o advogado Belisário dos Santos Júnior informava as prisões à Justiça. “Comunicar a prisão era muitas vezes salvar a vida de uma pessoa”, resume.

Outro método empregado pelos advogados consistia em levar denúncias e documentos dos detidos para fora dos presídios. “Naquela época a gente não era revistado ao entrar e sair das prisões, isso não se admitia. Com isso, alguns advogados, após falar com seus clientes, saíam da prisão com denúncias importantes, que foram levadas a foro internacional, porque aqui dentro elas não tinham a menor repercussão”, contou Belisário.
Advogado de presos políticos por 30 anos e ele mesmo tendo sido um preso político, Idibal Pivetta passou 42 dias incomunicável quando esteve preso no DOI-Codi. Ele diz que era comum o advogado apresentar um pedido de informações sobre o preso, para que as famílias soubessem onde ele estava e tentassem fazer alguma coisa. “Era um Habeas Corpus disfarçado”, explicou.
Um episódio importante narrado por ele envolveu o dramaturgo Augusto Boal, que havia sido seu professor de teatro. Boal estava em Buenos Aires, mas o governo brasileiro negava visto de entrada no país a ele e a centenas de outros brasileiros. A partir de um pedido de familiares do dramaturgo, Pivetta entrou com um Mandado de Segurança no STF, que ordenou ao governo a concessão do visto. “Isso desencadeou no exterior uma série de pedidos de ‘clientes’ — eram mais que clientes, eram amigos, pessoas que lutavam pela liberdade e justiça social — e conseguimos mais de 300 vistos de passaporte”.
A salvação nas Auditorias
Apesar do ambiente hostil, muitas vezes foi na própria Auditoria Militar que denúncias de tortura vieram à tona. “Por incrível que pareça, alguns [militares] tomaram conhecimento da tortura que existia no Brasil naquele momento, e isso servia muito para evitar mortes, torturas e assassinatos”, disse Pivetta.

A importância do espaço para denúncia nas Auditorias Militares também foi enfatizada por Rosa Cardoso da Cunha. “Não vejo a Auditoria Militar como um lugar de opressão, onde as pessoas vinham e se defrontavam com a perda da liberdade, mas como um lugar de insurreição e reparação.”
Rosa conta que era ali, na Auditoria, que os presos políticos relatavam as torturas e se mostravam vivos e dispostos a seguir na luta. “Isso era muito importante para eles se reconstituírem como pessoa. Nós demos muito apoio a essa reconstrução da identidade dos presos”, afirmou Rosa.
“A integridade ganhou”, afirmou Belisário dos Santos. “Seguramente, com tudo o que houve de condenação, pessoas que perdemos para a morte, tortura ou execução forçada, o direito de defesa prevaleceu”.
Direito enxovalhado
Durante o evento, José Carlos Dias fez uma crítica aos tempos atuais. Ele disse que o direito de defesa vem sendo enxovalhado no Brasil, e que essa atitude hostil tem tido o respaldo do Supremo Tribunal Federal.

“Os advogados que militam na advocacia criminal podem dar testemunho do grande desaponto com a maneira com que a Justiça vem sendo praticada nesse país, a partir do Supremo Tribunal Federal”, afirmou. "Estamos assistindo a isso nos nossos tribunais, a partir do STF. Decisões que constituem erros judiciários da maior gravidade."
Questionado se poderia dar um exemplo decisão judicial errada, respondeu: "Não. todos sabem". 
Elton Bezerra é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico

Direitos humanos e verdade na América Latina. “Dos países que analisamos no Cone Sul, o Brasil é aquele em que menos se avançou”.

Entrevista com Lorena Balardini

Os 50 anos do golpe militar contra João Goulart, completados neste 31 de março, são um claro sinal de tudo o que falta no caminho dos direitos humanos e da verdade no Brasil. Este caminho foi sinuoso na América Latina. OJulgamento das Juntas Militares na Argentina nos anos 1980, a aplicação da jurisdição universal pelos crimes de direitos humanos impulsionada pelo juiz Baltasar Garzón e a prisão de Augusto Pinochet nos anos 1990, a derrogação das leis de impunidade pelo kirchnerismo e os julgamentos no Chile foram marcos ofuscados pelos vaivens do uruguaio ou pelo ferrolho da Lei de Anistia no Brasil. O julgamento oral do Plano Condor que se iniciou no ano passado na Argentina pode ajudar a destravar este árduo caminho da Justiça pela via da extradição de pessoas amparadas pela legislação de um país, mas puníveis em outro. O Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS) daArgentina, um dos líderes da investigação regional na matéria, estudou os diferentes caminhos que Argentina,BrasilChilePeru e Uruguai seguiram. O Página/12 conversou com a coordenadora da área de investigação doCELSLorena Balardini.
A entrevista é de Marcelo Justo e publicada no jornal argentino Página/12, 29-03-2014. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Historicamente, como vocês avaliam a caminhada das causas dos direitos humanos nestes países?
Está claro que cada país tem sua especificidade, mas também que o que acontece em um país, de negativo ou positivo, tem efeitos nos outros. O efeito da jurisdição universal e a prisão de Pinochet, conhecido como o efeitoPinochet pelas pessoas que estudam como tudo isto evoluiu na América Latina, teve um claro impacto sobre os diferentes países. Na Argentina, poucos dias depois da prisão de Pinochet, deu-se a prisão de Videla e Masserapelo roubo de bebês, um dos crimes que podia ser perseguido penalmente por ficar fora das características das leis de ponto final e obediência devida, e no Chile começa a apresentação de demandas massivas. Outro fenômeno regional indiscutível é a importância do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, que dá argumentos às CortesSupremas dos diferentes países para que não se anistie crimes de lesa humanidade. A sentença no caso Barrios Altos foi fundamental para a possibilidade de um julgamento de Alberto Fujimori no Peru e para a inconstitucionalidade das leis de anistia na Argentina.
No relatório de 2013, o CELS reconhecia problemas comuns a todos estes países na consecução da Justiça. Mas alguns fazem parte das deficiências dos sistemas de justiça em geral e outros são mais específicos com relação aos direitos humanos.
Nós encontramos demoras na administração da justiça por falta de recursos, problemas em torno da tomada de testemunhos e o trato das testemunhas, como, por exemplo, no Chile, onde apenas recentemente se considerou os sobreviventes como vítimas, ou no Peru, onde existe uma enorme distância cultural entre as vítimas e os operadores judiciais, e não se toma o testemunho das vítimas e familiares como válido em um julgamento por sua suposta parcialidade. Outro problema é a escassa porcentagem de sentenciados em relação aos imputados, algo muito claro no Peru e na Argentina. Há também a recusa na aplicação do Direito Internacional de Direitos Humanos em Tribunais locais. Isto é particularmente preocupante no BrasilChile e Uruguai, como se viu numa recente sentença da Suprema Corte de Justiça do Uruguai, onde se declara inconstitucional a Lei 18.831, que anulou a Lei de Caducidade em 2012. Por último, há as discussões sobre a anulação das anistias que são matéria corrente no Brasile no Chile, e agora novamente no Uruguai.
No Brasil, precisamente o primeiro empecilho foi a Lei de Anistia dos próprios militares, ratificada há quatro anos pelo Supremo Tribunal Federal. O governo de Dilma Rousseff instaurou a Comissão Nacional da Verdade em 2012. O testemunho do coronel retirado Paulo Malhães esta semana, no qual reconheceu torturas e assassinatos, marca os limites deste tipo de ziguezague. Como vocês avaliam a situação no Brasil?
Dos países que analisamos no Cone Sul, o Brasil é aquele em que menos se avançou, isto tem a ver com a Lei de Anistia, que é muito diferente da do resto dos países do Cone Sul. A vigência desta anistia e a recusa de levar em conta as recomendações do Sistema Interamericano são responsáveis pelo fato de que não se tenha conseguido avançar em causas penais. No ano passado, o novo Procurador manifestou-se favorável ao desmantelamento da anistia e do julgamento destes crimes. Havia muitas expectativas com relação às mudanças na Suprema Corte para que esta iniciativa prosperasse, mas são avanços muito graduais. É preciso ver o impacto que terão tanto aComissão da Verdade nacional e as estaduais que se formaram. Creio que a informação que está saindo está rompendo uma ideia muito forte instalada no Brasil de que aquilo foi uma “ditabranda”, em comparação com o resto do Cone Sul, por não ter colocado em prática uma política sistemática de desaparecidos. As informações que começam a aparecer contradizem esta ideia.
No ano passado começou na Argentina um julgamento pelo Plano Condor. Que efeito teria uma condenação na Argentina sobre os militares ou civis implicados de outros países?
É preciso ter em conta que, embora os autores que estão sendo julgados sejam argentinos e um uruguaio, as vítimas são de todo o Cone Sul. É claro que o julgamento está gerando impacto no resto dos países. Sem dúvida, é uma oportunidade para que fique plasmado em uma sentença que analise e distribua responsabilidade penal em relação à coordenação da repressão entre diferentes países. Fala-se de coordenação em geral, mas ainda não está comprovado como se realizou esta coordenação, o que ela implicou e que impactos teve. Este julgamento é uma oportunidade para a produção de informações, intercâmbio entre os países e a possibilidade de cooperar no envio de dados.
Poderia acabar provocando o julgamento de militares ou civis de outros países?
É preciso analisar as possibilidades de extradição que há em cada país. Neste julgamento há um imputado que é uruguaio, Manuel Cordero, que foi extraditado. Os demais uruguaios implicados na causa Condor foram julgados e condenados em seu próprio país. A consequência direta disto é que poderiam ser extraditados para a Argentina uma vez que terminaram de cumprir sua condenação em seu país. Há antecedentes, como o caso de Enrique Arancibia Clavel, o ex-agente da DINA chilena (Direção Nacional de Inteligência, organismo responsável pela repressão durante os anos de 1974 a 1977) condenado pelo assassinato do general chileno Carlos Prats e sua esposa emBuenos Aires e que foi extraditado à Argentina, onde cumpriu uma pena de 11 anos.

50 anos do golpe de 1964. Um depoimento


"A veia totalitária do regime entrava pela nossa goela, cotidianamente. No cinismo que fez propaganda de crescimento econômico em meio a desabastecimento, miséria e fome; no arrocho salarial; na carência de livros editados; na censura moralista e estreita a filmes de sucesso internacional, como o Último tango em Paris. Nas filas para matricular crianças na escola pública, na procura por feijão. Nos apartamentos dos vizinhos invadidos a coronhadas nas buscas por guerrilheiros, nas noticias imprecisas de sequestros, tortura e morte, em nossos colegas presos e exibidos em frente à faculdade em carros da polícia. Na propaganda mentirosa, nos dados falsificados da inflação, nos boatos e nas informações truncadas, na impossibilidade de saber o que acontecia, afinal em nossa nação", escreve Jane Dutra Sayd, médica, professora adjunta aposentada do Instituto de Medicina Social da Uerj e membro da organização de base Palmiro Togliatti  do Partido Comunista Brasileiro 1970- 80.
Eis o depoimento.
Nasci num 31 de marco de 1951. Cinquenta anos atrás, acordei para o meu aniversário com um ninho de metralhadoras encostado ao muro de casa. Era o golpe que destituiu o Jango, presidente eleito. Desde menina até me tornar profissional e mãe com filhos, vivi sem meus plenos direitos, de livre expressão e voto. Hoje, feliz, quero usufruir da liberdade desta nossa democracia para dar um depoimento sobre o que foi o dia-a-dia durante a ditadura brasileira.
Foi ruim, muito ruim. A primeira coisa que perdi, desolada, foi a esperança inebriante, adolescente, de que o método Paulo Freire alfabetizaria o país. A nossa área educacional foi extremamente perseguida em todos os níveis e a educação publica desmantelada no primeiro minuto após o golpe. A área cultural também foi vítima de censura e massacres ignorantes e violentos. As proibições a livros, filmes e músicas, as prisões e perseguições eram arbitrárias e sem maiores razões, mas, sem dúvida, trabalharam contra a inteligência: conseguiram expulsar nossos artistas, cientistas, físicos, biólogos, filósofos, economistas, jornalistas. Nós víamos os filmes na primeira semana; comprávamos livros e discos em cima do lançamento, antes que a censura mudasse de idéia.
Crescimento econômico houve, industrial, indiscutível. Mas realizado em um regime de opressão bárbaro sobre nossa classe operária. Os que não concordassem em dar horas extras eram demitidos no ABC paulista. Falava-se de uma mortandade de trabalhadores nos alicerces da ponte Rio Niterói e na rodovia Transamazônica, apontadas como mega operações de corrupção, além de campeãs no morticínio ocupacional. Os trabalhadores foram explorados ao máximo. A classe média foi espoliada em 1972, após incentivos de toda sorte para especular com ações; o estouro da bolha levou as economias forjadas no “milagre”.
Não só a educação e a saúde foram relegadas a um segundo plano. As condições de alimentação da população não eram de responsablidade pública. A única preocupação do ministério da agricultura era a soja para exportação, com plantio em regime de maquinaria pesada e expulsão de posseiros e mão de obra tradicional do campo. Durante anos houve falta de feijão e fila para comprar carne, óleo de soja, cebola e batata. O leite integral passou a ser mais caro, artigo de luxo, enquanto as massas consumiam leite desnatado. A ditadura jamais tomou sequer uma providencia para minorar este descalabro; dizia-se apenas que a seca na Bahia ocasionou a falta de feijão no país inteiro. É de supor que nossa população miserável sobreviveu de brioches nesse tempo sem feijão. As epidemias eram censuradas na imprensa, dados negativos sobre a população, como desnutrição ou mortalidade infantil, também.
O cotidiano para qualquer cidadão minimamente consciente tornou-se muito ruim, à medida que o regime se tornava mais autoritário, com laivos mesmo totalitários. O carnaval foi regulado: os sambas enredo tinham que se referir à história do Brasil. Proibiram a venda de cachaça no Carnaval, licenciando as bebidas mais caras. A Lei de Segurança Nacional proibia a carona, para dificultar a fuga de guerrilheiros. Passava-se nos pedágios na estrada sob a mira de metralhadoras. Houve anos de racionamento de combustível. Não se vendia gasolina no fim de semana. Não se podia sair do país sem pagar um depósito compulsório de 2000 dólares. E, humilhação e vergonha para o cidadão correto, era necessário uma certidão de que não se era subversivo para ter emprego público, para entrar na universidade, para bolsa de estudos, estágios e etc., fornecida pelo DOPS.
Assim, a veia totalitária do regime entrava pela nossa goela, cotidianamente. No cinismo que fez propaganda de crescimento econômico em meio a desabastecimento, miséria e fome; no arrocho salarial; na carência de livros editados; na censura moralista e estreita a filmes de sucesso internacional, como o Último tango em Paris. Nas filas para matricular crianças na escola pública, na procura por feijão. Nos apartamentos dos vizinhos invadidos a coronhadas nas buscas por guerrilheiros, nas noticias imprecisas de sequestros, tortura e morte, em nossos colegas presos e exibidos em frente à faculdade em carros da polícia. Na propaganda mentirosa, nos dados falsificados da inflação, nos boatos e nas informações truncadas, na impossibilidade de saber o que acontecia, afinal em nossa nação.
O legado da ditadura foi o atraso nas nossas tentativas de criar uma sociedade civil inclusiva, atraso com agravantes no plano moral. O autoritarismo opressivo da ditadura corroeu entre nós o valor da autoridade legítima. Aprendemos que toda autoridade é autoritária e deve ser respeitada o mínimo possível.  O ufanismo mentiroso nos deixou incapazes de ver nossos méritos reais. Foram todos guindados igualmente à categoria de patriotadas ridículas. A falta de liberdade dificultou a educação cívica, o hábito de fazer escolhas sobre a vida pública. A falta de liberdade para divulgar, investigar, publicar, permitiu a escalada oculta da corrupção e da violência totalmente livres de qualquer controle social. A ditadura reforçou, ensinou e praticou a tortura sistemática, de forma a não se imaginar hoje policia sem tortura e humilhação.
Também vi, ao longo dos anos de chumbo, civis e militares que haviam apoiado o golpe se arrependerem. Conheci pessoas conservadoras para quem a agitação política era desordem e as dificuldades econômicas, fruto exclusivo do populismo do governo Jango. Mais tarde alguns, ao viverem a censura, os níveis do arrocho salarial e a mentira que engoliu suas economias, sentiram-se traídos. Não tinham como protestar ou pedir mudanças, seus direitos civis estavam cassados. Vi, várias vezes, a tragédia se abater sobre famílias: muitos dos que apoiaram o golpe tiveram filhos presos, desaparecidos, torturados ou mortos. Hoje eu percebo que, ao pedirem o golpe na constituição abrindo mão de seus direitos essenciais, assinaram a autorização para o sequestro, tortura e morte de seus filhos.
Por isso gosto cada vez mais da democracia. Por mais exasperante e frustrante que seja um governo democrático, ele jamais sairá tanto dos trilhos quanto se for uma ditadura. O governo democraticamente eleito que eu não suporto será sempre muito melhor do que o do ditador que eu puser no seu lugar. É essa a experiência de milhões de brasileiros, alienados ou militantes, civis ou militares. E, como democrata convicta, confio que as próximas eleições presidenciais decorrerão com debates e muita gente pela rua.
Espero que a busca coletiva por uma sociedade melhor, mais igualitária e mais justa, vença o ódio que ainda infesta uma parte de nossa sociedade. Psicopatas saudosos da opressão e ordeiros inocentes úteis, que até hoje acham que passeata é baderna, tentarão enxovalhar as eleições próximas com mensagens de ódio e incitação ao crime, como vi nas eleições anteriores. Mas espero que superaremos um dia nosso ranço escravagista , que não reconhece a igualdade de direitos como virtude da sociedade e fruto esperado da democracia. E agora, nessas eleições, espero que os brasileiros saibam manifestar seu repudio `as conclamações odientas, e reagir com atitude e votos democráticos, livres e felizes.
Cinquenta anos depois, mereço uma grande dose de democracia como presente de aniversário.
Veja também:

OEA critica Brasil por manter legislação editada na ditadura militar


Na semana em que o Brasil lembra os 50 anos do golpe de 1964, o Estado brasileiro foi questionado, publicamente, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington (EUA), sobre o uso de uma lei que marcou a ditadura militar e que, hoje, vem atropelando os direitos constitucionais, em especial de populações indígenas e tradicionais e os relativos ao meio ambiente para defender grandes interesses econômicos.
Instados pelo governo e grandes empresas, presidentes de tribunais vêm lançando mão da chamada “suspensão de segurança”, pela qual podem suspender unilateralmente decisões de instâncias inferiores diante de um suposto risco de “ocorrência de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”. Em resumo, esse instrumento permite cassar decisões que esses presidentes julguem impertinentes, mesmo que elas não façam mais do que aplicar a lei em vigor no país. A suspensão de segurança foi usada, por exemplo, contra os direitos de comunidades afetadas pelas hidrelétricas de Belo Monte (PA) e do Teles Pires (MT) e pela estrada de ferro deCarajás (PA/MA).
A  reportagem é publicada por Brasil de Fato, 29-03-2014.
O líder indígena Josias Munduruku (MT), Alaíde Silva, morador de Buriticupu (MA), município atravessado pela estrada de ferro de Carajás, e a juíza federal Célia Bernardes, da Associação Juízes pela Democracia, são alguns dos membros de organizações não governamentais e vítimas diretas da suspensão de segurança que estiveram na comissão para denunciar esse instrumento como um entulho autoritário e uma ameaça ao Estado de Direito no Brasil.
O pedido de audiência na OEA foi feito pela Justiça GlobalJustiça nos TrilhosAssociação Interamericana para a Defesa do Meio Ambiente (AIDA)International RiversTerra de Direitos e Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos.
– Sofremos com as consequências das barragens que estão sendo construídas em cinco de nossos rios. O Ministério Publico Federal apresentou uma ação na Justiça para parar as obras no Tapajós, mas o governo derruba tudo, usando a Suspensão de Segurança. As obras continuam – lembrou Josias Munduruku.
A Suspensão de Segurança foi criada no primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945) e depois reformulada e ampliada na ditadura militar (1964-1985). Entre seus usos mais notórios hoje, está a suspensão de decisões dos tribunais sobre a ilegalidade de grandes empreendimentos, como hidrelétricas, rodovias e portos. Ela foi usada também no caso do complexo petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), contra os quilombolas da Restinga de Marambaia (RJ) e de Alcântara (MA) e na hidrelétrica de Barra Grande (SC).
Artigos da Constituição e tratados internacionais referendados pelo País têm sido descumpridos pelo uso desse instrumento. Um dos mais importantes deles é a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). De acordo com ela, qualquer medida administrativa ou empreendimento que afete territórios indígenas e tradicionais exige a consulta prévia, livre e informada às comunidades atingidas.

Igreja, entre o apoio e a resistência ao golpe civil-militar de 1964.

Entrevista especial com Antônio Cechin

“O poder político cívico-militar não poupou esforços para a cooptação da Igreja Católica pelo simples fato de que é a Igreja da grande maioria do povo brasileiro e de grande influência no mundo inteiro”, diz o irmão marista.
“A maior parte da Igreja, em relação à quartelada cívico-militar de 1964, por causa principalmente de um anticomunismo doentio causado por uma consciência ingênua, não conseguia dominar e distinguir diferentes ideologias”, comenta Antônio Cechin, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, ao refletir sobre o papel daIgreja no Golpe Civil-Militar de 1964. “A ‘marcha do Rosário pelas famílias em favor da paz’ no Brasil, capitaneada pelo Padre Peyton, norte-americano, nas vésperas do Golpe, em defesa do país contra o comunismo que a mídia proclamava como iminente, encheu o largo da Prefeitura de Porto Alegre com milhares e milhares de pessoas. Essas marchas, feitas em todas as principais cidades do Brasil, foram o ato de massa que deu legitimidade e respaldo civil-religioso ao golpe que se estava gestando em nosso meio e que fora brecado alguns anos antes pelo Levante pela Legalidade do povo rio-grandensecomandado por Leonel Brizola”, complementa.
Preso e torturado duas vezes, Antônio Cechin conta que a razão de suas detenções estava relacionada ao fato de ser, como ele mesmo diz, “um Catequista da Libertação”. Cechin disse diversas vezes que deve sua vida a Dom Vicente Scherer, que lhe tirou do cárcere nas duas ocasiões, mas mantém um posicionamento crítico ao pensar nas figuras de Scherer e de Dom Hélder Câmara no contexto de 1964. “Para mim, Dom Vicente foi um Pastor zelosíssimo daquilo que hoje considero o modelo europeu de catolicismo que chegou da Europa através de Portugal em 1500. Modelo esse que se esgotou com o Concílio Vaticano II. (...) Dom Hélder foi o iniciador da Igreja do Brasil e com ele retornamos ao modelo de Igreja dos Primórdios, porque ‘Deus é para nós o único absoluto, porém o absoluto de Deus são os pobres’”, avalia.
Antônio Cechin é irmão marista, graduado em Letras Clássicas (grego, latim e português) e em Ciências Jurídicas e Sociais. Trabalha como agente de Pastoral em diversas periferias da região metropolitana de Porto Alegre, sendo também assessor de Comunidades Eclesiais de Base do Rio Grande do Sul, de catadores e de recicladores. Desempenha ainda a função de coordenador do Comitê Sepé Tiaraju e da Pastoral da Ecologia do Regional Sul III daCNBB. Escreveu Empoderamento Popular: Uma pedagogia de libertação (Porto Alegre: Estef, 2010). Publica periodicamente artigos nas Notícias do Dia do sítio do IHU.
Foto: Sul 21
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como foi a atuação da Igreja Católica quando houve o Golpe de 1964? De que maneira a instituição se posicionou em relação à situação política da época?
Antônio Cechin - Assim como o Golpe de 1964 não foi somente militar, mas sim cívico-militar, fazendo parte da sociedade civil também a própria Igreja teve certa participação. Paulo Freire, nosso maior educador brasileiro, criou a palavra conscientização, enriquecendo assim o vocabulário da língua portuguesa. Até Paulo Freire só falávamos em tomada de consciência. Porém, conscientização é infinitamente mais do que isso, porque Freire, em suas palestras, distinguia sempre quatro graus de consciência. Em ordem crescente: consciência mítica, empírica, ingênua e científica.
Quando se trata de análise da realidade é que mais se pode evidenciar se as pessoas o fazem com uma simples tomada de consciência ou se são pessoas conscientizadas, e até mesmo se pode identificar o grau de consciência de cada um e em que espécie de consciência navegam pelo método de alfabetização criado por Paulo freire.
Enquanto não se adota o instrumento global de análise da realidade alinhavado particularmente por Marx - inventor do comunismo depois de destrinchar por completo o sistema capitalista em análise minuciosa -, embarca-se com a maior facilidade nos meios de comunicação do sistema capitalista que, desde muito tempo atrás, para salvar a pele da classe dominante do país, em face da extrema pobreza que o capitalismo gera, acaba-se caindo na ideologia da sociedade hegemônica. Cunhou-se, na época, até a expressão “comunista come crianças” para designar o horror causado aos que estão bem demais no mundo, por causa da riqueza que esbanjam, em relação a qualquer possibilidade de mudança para um sistema político de uma sociedade que não seja o capitalismo imperante.
A maior parte da Igreja, em relação à quartelada cívico-militar de 1964, por causa principalmente de um anticomunismo doentio causado por uma consciência ingênua, não conseguia dominar e distinguir diferentes ideologias. A “Marcha do Rosário pelas famílias em favor da paz” no Brasil, capitaneada pelo Padre Peyton, norte-americano, nas vésperas do Golpe, em defesa do país contra o comunismo que a mídia proclamava como iminente, em Porto Alegre, encheu o Largo da Prefeitura com milhares e milhares de pessoas. Essas marchas feitas em todas as principais cidades do Brasil foram o ato de massa que deu legitimidade e respaldo civil-religioso ao golpe que se estava gestando em nosso meio e que fora brecado alguns anos antes pelo Levante pela Legalidade do povo rio-grandense comandado por Leonel Brizola .
Assembleia Geral da CNBB daquele ano de 1964, contra o voto de uma minoria conscientizada, agradeceu publicamente aos militares pelo fato de terem, através do Golpe“salvado o país do comunismo” e pelo mesmo acontecimento realizaram uma cerimônia de ação de graças a Deus e a Nossa Senhora Aparecida, padroeira doBrasil.
IHU On-Line – Como o Concílio Vaticano II gerou reflexos na postura da Igreja no Brasil com relação ao Golpe?
Antônio Cechin - O golpe militar se deu durante o período em que se realizava o Concílio Vaticano II , que iniciou em 11 de outubro de 1962 com o discurso de abertura do papa João XXIII. Foi realizado em quatro sessões, e só terminou no dia 8 de dezembro de 1965, três anos depois de ter sido iniciado.
O poder político cívico-militar não poupou esforços para a cooptação da Igreja Católica pelo simples fato de que é aIgreja da grande maioria do povo brasileiro e de grande influência no mundo inteiro. Por isso, um dos primeiros atos dos golpistas foi fretar um avião, sem despesa nenhuma para a CNBB, para a totalidade dos bispos brasileiros se deslocarem até o Vaticano a fim de participar da sessão conciliar do ano de 1964. Conquistando os bispos, pensavam que também teriam o povo cristão do seu lado.
Dentro do avião e depois na Domus Mariae, em Roma, onde o episcopado brasileiro esteve hospedado durante mais de um mês de sessão conciliar, os bispos, apesar do entrecruzamento diário nas aulas conciliares, aproveitaram o ensejo para também eleger a nova direção da CNBB. A maioria conservadora do episcopado elegeu uma diretoria composta de bispos conservadores e como tais, tolerantes em relação ao Golpe.
Defenestraram simplesmente Dom Hélder Câmara, que era o secretário executivo da CNBB, logo ele que havia sido o fundador do órgão colegiado dos bispos, atendendo solicitação do Papa João XXIII. Essa deposição do “bispo vermelho”, segundo o epíteto que lhe criaram os militares da ditadura, serviu de cobertura à proibição total que impuseram a toda a imprensa brasileira no sentido de jamais publicar algo sobre Dom Hélder, nem o próprio nome.

“O golpe militar se deu durante o período em que se realizava o Concílio Vaticano II”

Também foram demitidos todos os assessores que faziam parte dos quadros da Conferência, escolhidos por Dom Hélder. Haviam escolhido para novo presidente Agnelo Rossi e, para o setor dos leigos, o cardeal Vicente Scherer. De volta ao Brasil, o cardeal Scherer fechou a Ação Católica Brasileira especializada, que reunia a fina flor da militância católica totalmente contrária ao Golpe e que sofreu o impacto maior da ditadura, transformando vários deles nos primeiros mártires do regime.
Exemplo emblemático foi o assassinato do Padre Henrique Pereira Neto, emRecife. Ele era Assessor da Juventude Universitária Católica - JUC naDiocese de Dom Hélder. Não podendo assassinar o bispo Dom Hélder, o militares mataram o sacerdote mais engajado nos trabalhos pastorais.

Em contraposição, a postura da primeira direção da CNBB, diretoria organizada por Dom Hélder, teve o conteúdo central do Concílio aprovado dentro da linha progressista João XXIII – Helder Câmara. O Concílio na realidade teve dois encerramentos: o primeiro, na grande Praça São Pedro doVaticano, e o segundo, no recôndito das Catacumbas do início do cristianismo. Perseguidos os cristãos pelos imperadores romanos, o povo fiel se reunia secretamente nos subterrâneos da cidade. Aí também enterrava seus mártires. Esse segundo encerramento organizado por Dom Hélder Câmara reuniu em torno de uma centena de bispos do mundo inteiro e passou para a história com o nome de Pacto das Catacumbas.
Estabeleceram entre si um pacto destinado a transformar a Igreja universal em autêntica Igreja Pobre com total opção pelos pobres. Com o Pacto das Catacumbas Dom Hélder profetizou a leva de mártires que a Igreja do Brasil e de todo o continente latino-americano forneceria para enriquecimento do martirológio da Igreja Católica.
IHU On-Line – O que foram as fichas catequéticas e por que incomodavam tanto os militares? Essa “Catequese Nova e Libertadora”, como o senhor mesmo definiu e propôs, foi a razão de suas prisões?
Antônio Cechin - Foi no início da década de 1950 que Dom Hélder, quando bispo auxiliar do cardeal do Rio de Janeiro, começou um discurso inteiramente novo. Mirrado que era Dom Hélder fisicamente, fazia discursos tonitruantes que ecoavam pelo mundo inteiro. Com argumentos irrefutáveis, tomando até Jesus Cristo, Filho de Deusencarnado como modelo da opção pelos pobres, pregava a obrigação que tínhamos para com os “últimos” que compõem a imensa maioria da população brasileira em situação de fome e miséria.
Aconteceu então o mergulho da Igreja nas periferias, nos grotões dos campos interioranos e nos meios urbanos mais afastados dos centros das cidades. Foi a chamada Inserção da Igreja nas periferias, empenhada na organização das Comunidades Eclesiais de Base entre os pobres. Trabalhava-se em duas dimensões, a exemplo de Jesus de Nazaré, que dedicava grande parte de seu tempo à pequena comunidade dos 12 apóstolos, com a finalidade de servirem de fermento das massas ou multidões.
Paulo Freire, militante cristão da diocese de Dom Hélder na cidade de Recife, inventou também seu método de educação começando com essa imensa população mais abandonada e analfabeta. Esse método se chama de“Educação para a Prática da Liberdade” ou “Pedagogia do Oprimido”. Pelos grotões dos campos, no interior, e na cidade escalando morros, buscavam-se: as “palavras geradoras” para a alfabetização e os “temas geradores” para a educação.
As Fichas Catequéticas, com base no método Paulo Freire, inauguraram no Brasil a chamada Catequese Libertadora, à qual se seguiu a Teologia da Libertação. Começou-se com Fichas a serem utilizadas nas aulas de Religião das escolas religiosas e leigas ou públicas e estatais, porque todas as escolas podiam optar pelo ensino religioso, que era facultativo. Num segundo momento, estendemos essa Catequese Libertadora às próprias Comunidades de Base que se constituíam na nova base da Igreja e também da nova sociedade. A Catequese Libertadora para a América Latina havia sido urgida na grande Assembleia do episcopado latino-americano realizado na cidade de MedellínColômbia, no ano de 1968.

“As Fichas Catequéticas, com base no método Paulo Freire inauguraram no Brasil a chamada Catequese Libertadora, à qual se seguiu a Teologia da Libertação”

Material Subversivo
No ano de 1969, em plena ditadura, os militares de plantão emBrasília, a cada novo ano, sempre na semana que precedia ao 1° de abril, celebravam em todo o Brasil o aniversário da “revolução”. No ano de 1969, no dia reservado ao Ministério da Educação, apresentou-se na televisão o próprio titular da pasta, o General Jarbas Passarinho.
Em longa palestra, com nossas Fichas Catequéticas em punho, lia partes, comentando sempre. Até o final, acabou lendo por inteiro duas aulas do feixe de fichas correspondentes à primeira série ginasial, intituladas Rumo à Terra Prometida. Encucado estava o general com essa tal de Terra Prometida, porque a linguagem de todas as Fichas, sempre segundo ele, propositalmente era nebulosa, quando não linguagem cifrada. Que Terra seria essa? Interrogava a si mesmo e aos telespectadores. Não seria o paraíso comunista?... Fazendo ilações de todo o tipo, ao fim e ao cabo, asseverou: Este material é altamente subversivo. Lastimava que colégios públicos e católicos tivessem a coragem de utilizar tal material didático com vistas a comunizar o Brasil, corroendo inteiramente o futuro da juventude. Arrematou referindo-se a Colégios Católicos particulares que até subvenções em dinheiro do governo recebiam anualmente e cometiam o pecado de ingratidão utilizando esse material em salas de aula.
Nós, os autores, ficamos estarrecidos diante do que poderia nos acontecer. Naturalmente a corrida atrás das Fichasse deu no mesmo instante, a começar pelos biófilos ou amantes da Vida, como um precioso e raro material para ler e conhecer em profundidade, motivados que estavam pela ira que tinham contra os militares, e, também, não poucos, viram no fato uma glória para a Igreja da Catequese e da Teologia da Libertação. Mas a procura se deu também pelos necrófilos, ou amigos da morte; estes tendo a polícia como testa de ferro, bateram em todos os colégios que utilizavam nosso material “altamente subversivo” a fim de recolher tudo.
Catequese da discórdia
Nossas Fichas, naturalmente, como Catequese oficial da Igreja tinham o “nada obsta” (nihil obstat) da autoridade eclesiástica, bem como o “imprima-se” (imprimatur) do Arcebispo Metropolitano de Porto Alegre. O rebu causado pelas Fichas, simples, modestas e inocentes que se nos afiguravam, foi de arrepiar. Todo mundo, através da mídia falada, escrita e televisionada achou por bem entrar com seu pitaco sobre o assunto. Gente ilustre e gente menos ilustre. Professores e religiosos. Bispos e padres. Sociólogos e psicólogos. Todo mundo procurou entrar com sua colher torta no assunto, fosse entendido ou não em Catequese ou Pastoral.
O grande teatrólogo considerado o maior, Nélson Rodrigues, se ocupou do assunto a fim de execrar o nosso material didático. Gustavo Corção, o grande escritor católico, não se conteve e teceu comentários altamente destrutivos em relação à “Igreja de Passeatas” à qual ligava nosso material escrito.
Interrogatório
A Nunciatura me chamou para interrogatório, e nossas Fichas foram parar no Vaticano. Minha prisão e tortura, ao lado de outros fatores, estou convencido de que aconteceram porque fui um Catequista da Libertação. Aliás, tinha sido eu que apresentara, em Medellín, no Congresso Internacional de Catequese, poucos dias antes da Assembleia dos Bispos, os Princípios Orientadores, bem como o método dessa nova catequese libertadora, própria para “países subdesenvolvidos”, como eram caracterizadas na época, as nações do continente latino-americano. Nessa apresentação em Medellín tive a assessoria do teólogo da libertação Hugo Assmann e o apoio de toda a Equipe de Catequese da CNBB.
IHU On-Line – Em diversos momentos o senhor já manifestou gratidão a Dom Vicente Scherer, que lhe salvou a vida quando foi preso em duas ocasiões. Qual a importância de Scherer no contexto do regime?

Antônio Cechin - Dom Vicente Scherer (foto) foi meu amigo a vida inteira. Conheci-o quando era pároco na Igreja São Geraldo. Quando morreu seu antecessor Dom João Becker, monsenhor Vicente Scherer, simples sacerdote, foi eleito pelo cabido da Arquidiocese como Vigário Capitular na arquidiocese vacante. Quando menos se esperava, a Santa Sé o escolheu para o episcopado e o nomeou logo como Arcebispo. De simples padre, Dom Vicente passou a arcebispo.
Como sacerdote e pároco que comecei a conhecer e depois como arcebispo, Dom Vicente foi sempre um pastor muito zeloso. A paróquia que ele dirigia, de São Geraldo, tinha um dos melhores grupos de jovens de toda a arquidiocese que até forneceram vocações sacerdotais gestados em seu seio. Um exemplo emblemático do extraordinário zelo apostólico aconteceu uns anos antes da ditadura militar no Brasil.
Francisco Julião, advogado nordestino, começou a organizar a população pobre do nordeste para a Reforma Agrária. A mídia dava a impressão que Julião havia "enfogueirado" as regiões mais pobres do Brasil. Dom Vicente, em reunião com clero e religiosos, declarou que o comunismo estava incendiando o Norte-Nordeste do Brasil e que dentro em pouco o comunismo desceria até o Rio Grande do Sul, e nós, como Igreja, perderíamos nossos viveiros vocacionais de sacerdotes e religiosos fornecidos pelas catolicíssimas famílias interioranas.
Imediatamente partiu para a ação. Visitou os párocos de toda a Arquidiocese, dando ordens a que cada pároco convidasse todos os colonos do município a fim de criarem em todos o seu sindicato rural. Com essa leva de sindicatos rurais, encarregou o bispo auxiliar D. Edmundo Kunz para ser o presidente da Federação Agrária Gaúcha - FAG. Mais tarde, a FAG se transformou em Federação dos Trabalhadores da Agricultura - FETAG.
IHU On-Line – Qual foi a postura de Dom Vicente em relação aos religiosos católicos presos e aos demais presos?
Antônio Cechin - No dia em que fui preso, depois de a quadra em que eu estava com meus manos ser cercada com camburões em todas as esquinas e de me introduzirem no DOPS, a casa dos meus manos foi devassada peloDiretor do DOPS, que se demorou no apartamento das 16 horas até às 22 horas, esmiuçou até a cesta do lixo para juntar papeizinhos rasgados. Saindo do apartamento com os auxiliares, levou mais de 100 livros da biblioteca, certamente por achá-los subversivos. Alguns até eram contra o comunismo. Minha mana, em prantos,  imediatamente correu até a cúria metropolitana a fim de pedir o auxílio de D. Vicente. Da primeira vez em que estive na cadeia, acabei ficando apenas dois dias incompletos para, ao final do segundo dia, o próprio secretário de Segurança do Estado,Coronel Jaime Mariath, em seu próprio automóvel  ele de motorista e eu de único passageiro , levar-me até a cúria, moradia de D. Vicente, e a ele me entregar.
IHU On-Line – Aliás, podemos entender as figuras de Dom Hélder Câmara e Dom Vicente Scherer como antípodas? No que se assemelhavam e no que se diferenciavam?

Antônio Cechin - Os dois, Dom Hélder e Dom Vicente, tinham posições muito diferentes em relação não só à ditadura militar, mas também em relação à Pastoral, à própria teologia e à Catequese.
A qualidade boa de Dom Vicente é que não era “espiculão”, como diziam os jovens da JEC com os quais eu trabalhava. Isto é, ele deixava trabalhar sem procurar vigiar ninguém. Quando, em um colossal êxodo rural, chegaram a Canoas nada menos de 13 mil operários para a construção do Polo Petroquímico de Triunfo, enchendo todas as periferias da cidade, em beiras de ruas e estradas. Então, no Natal de 1979, ocupamos os latifúndios pertencentes aos herdeiros do sesmeiro Matias Velho, local que o padre vigário não botava o pé, considerado por ele como invasão e roubo de terra do próximo.
Na visita que Dom Vicente fazia uma vez a cada ano aos padres, ele me mandou avisar o vigário que, no domingo seguinte, o próprio Dom Vicente iria pessoalmente celebrar a missa para os “invasores” na capela que havia sido levantada em mutirão. Mandou ainda que eu advertisse o pároco para que estivesse pessoalmente ao lado dele na celebração.

“Dom Vicente foi um excelente sacerdote e arcebispo em condições de dar um salto”

Pastor zeloso
Para mim, Dom Vicente foi um Pastor zelosíssimo daquilo que hoje considero o modelo europeu de catolicismo que chegou da Europa através de Portugal em 1500. Modelo esse que se esgotou com o Concílio Vaticano IIDom Hélderfoi o iniciador de um novo modelo de Igreja tipicamente latino-americano, aprovado no Concílio Vaticano II e a partir desse evento, convocado por João XXIII. A este novo modelo de Igreja deve corresponder uma nova catequese, uma nova teologia, um novo tipo de vida, religião, etc. Estamos hoje bem avançados no mundo a ponto de Papa Francisco ser hoje o primeiro papa do nosso novo modelo, da Igreja da Catequese e Teologia da Libertação.
Dom Vicente foi um excelente sacerdote e arcebispo em condições de dar um salto, porque já diziam os latinos, “a natureza não dá saltos” (natura non facit saltus). Dom Hélder foi o iniciador da Igreja do Brasil e com ele retornamos ao modelo de Igreja dos Primórdios, porque “Deus é para nós o único absoluto, porém o absoluto de Deus são os pobres”, e John Sobrino diz que nossa missão como cristão é de despregar da cruz os pobres de hoje, na qual estão crucificados.
IHU On-Line – Qual foi a importância dos movimentos de resistência popular capitaneados pela Igreja, organizados pela Ação Católica?
Antônio Cechin - A caminhada dos movimentos de resistência da Ação Católica Epecializada, isto é, dos jovens agricultores, estudantes secundaristas, independentes (profissões liberais), operários e universitários, apesar de ter sido uma caminhada de muito sofrimento, foi também de muita alegria e de grande entusiasmo. Há uma frase que ouvi na França e que nunca esqueci: “Quando a juventude perde o seu entusiasmo, o mundo bate os dentes de frio”. As saudades desses movimentos de muita militância são enormes. Foram a base da Igreja da Libertação, com suas espetaculares CEBs , nova base de Igreja e de nova sociedade; foram a base do Partido dos Trabalhadores, que foi fundado por esses movimentos e só depois é que se somaram outras forças a esse partido que transformou o Brasilmedieval em que vivíamos um Brasil da modernidade.
É uma pena que os percalços da Caminhada, em grande parte devido ao hiato na continuidade atribuído aos dois papas: João Paulo II e Bento XVI, nos tenha interrompido o processo, porque lembro quando foi dado por encerrado oVaticano II, lendo os documentos produzidos, dizíamos: “o Vaticano está lindo, maravilhoso porque ajustou a Igreja Universal ao que até hoje construímos no Brasil. Absolutamente nada de novo acima do que nós conseguimos estar vivendo aqui”.

Saudade
Não raro me encontro com jovens daqueles tempos memoráveis, hoje gente de idade, e não encontrei um só que não esteja com saudade com expressões do gênero: “A JEC me deu embocadura para a vida inteira! Que maravilha!”. O mesmo não acontece com quem foi de movimentos outros de caráter conservador, que se ocupavam exclusivamente do religioso propriamente dito sem abertura alguma para o social, que acima caracterizamos como do modelo vindo da Europa no início do Brasil propriamente dito. Pergunto hoje a alguém: Foste cursilhista no passado, que tal?! Como vês hoje aqueles tempos e com aqueles movimentos? Em geral todos me respondem que têm vergonha de ter perdido tempo com aquele tipo de Igreja.
IHU On-Line – Como avalia o trabalho da Comissão Nacional da Verdade? Por que resgatar a memória desse período é, mais que um gesto político, uma maneira de valorizar a liberdade e a vida?
Antônio Cechin - Acho espetacular que tenhamos chegado finalmente à Comissão Nacional da Verdade, apesar do rugir de dentes das forças armadas, hoje bem aposentadas monetariamente, mas com as consciências sempre mais indormidas e sobressaltadas. Quem não tem história, não viveu. Apenas vegetou. Sem processo histórico, não há nem salvação, porque a História da Salvação é sinônimo de Bíblia, e o nosso Deus dos cristãos é um Homem, oJesus de Nazaré, com uma Caminhada Histórica, a mais fantástica e inimaginável do mundo.
(Por Ricardo Machado)

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