Por Especial para Ponte
Leia análise sobre a reportagem “Em um ano e meio, 721 detentos morreram no Estado de São Paulo”.
Por Camila Nunes Dias, socióloga, professora da UFABC (Universidade Federal do ABC) e pesquisadora-colaboradora do NEV-USP (Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo)
Os dados e as informações trazidas na reportagem impressionam tanto pelo seu “conteúdo” quanto pela sua “forma”. Inicialmente, teço alguns comentários sobre a descrição do jornalista a respeito do acesso (ou da falta de) aos dados.
Em um ano e meio, 721 detentos morreram no Estado de São Paulo
Não é de hoje que o Governo Geraldo Alckmin tem se destacado pela falta de transparência no que diz respeito ao acesso aos dados sobre áreas estratégicas e importantes como àqueles relativos ao transporte metropolitano (Metrô e CPTM) e ao abastecimento de água.
Lembremos da recente imposição de sigilos/secretos a dados que os deixaram indisponíveis por 50 ou 100 anos. E, mais importante: trata-se de área em relação as quais problemas de gestão (a grave crise hídrica de São Paulo que tem na má gestão da SABESP uma das linhas de explicação) e de graves suspeitas de corrupção de formação de cartéis nas duas companhias de transporte estaduais.
E há os sigilos sobre os dados relativos à segurança pública, discussão que não retomarei aqui já que ela já tem ocupado, em alguma medida, os noticiários de parte da imprensa.
No que diz respeito ao fato de que transcorreu, simplesmente, 1 ano e meio para que se obtivessem dados da SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) sobre presos mortos através da Lei de Acesso à Informação, nada de novo para quem lida de alguma forma com o sistema prisional paulista.
É conhecido e notório que se trata de uma verdadeira caixa-preta. O acesso a dados e às unidades prisionais para realização de pesquisa ou para o jornalismo… qualquer tipo de acesso é absolutamente restrito e controlado com mãos de ferro.
Essa é a forma de atuação deste Governo e, em especial, em relação ao sistema prisional, onde os dados são ainda mais opacos, inacessíveis.
Quando olhamos os números de pessoas que perdem suas vidas enquanto estão sob custódia do Estado de SP compreendemos, em parte, a resistência em atuar de forma transparente e democrática no que diz respeito a essas informações. Parece haver, de fato, muitos motivos para esconder, para não revelar.
Em relação ao ano de 2014, temos quase 1 morte e meia por dia. No ano de 2015, a mesma tendência se apresenta no 1º semestre. (Aliás, a falta de dados de pessoas mortas que o ESTADO CUSTODIA é algo assombroso. Quer dizer que a SAP não sabe quantos presos que estão sob a sua responsabilidade morreram em 2015? O que dizer de uma gestão como esta?).
Voltando aos números: vemos que há uma pequena parcela de mortes classificadas como homicídios, uma parte expressiva de suicídios e uma maioria absoluta das mortes que é classificada como “morte natural”.
Mas, o que é, afinal, a morte natural? Como o Sr. Secretário Lourival Gomes e o Sr. Governador Geraldo Alckmin podem explicar um número tão alto de “mortes naturais” dentro de uma população composta majoritariamente por pessoas jovens?
A compreensão das mortes naturais passa pelas dinâmicas prisionais.
Um primeiro ponto: a específica configuração de poder nas prisões de São Paulo é o que nos permite entender parte destes números altos de “mortes naturais”.
Em São Paulo, apenas um grupo de presos – o Primeiro Comando da Capital (PCC) – detém ampla hegemonia no sistema, impõe um forte controle social sobre a população carcerária e é capaz de manter a ordem nas prisões (ausência de rebeliões) a partir de complexas acomodações com diversos atores políticos.
E não é de hoje que o PCC praticamente aboliu os homicídios de presos cometidos com facas e outros objetos pontiagudos. A despeito da efetiva redução de homicídios entre presos, é também bastante conhecida entre pesquisadores e funcionários do sistema a utilização do “método gatorade” quando se trata de eliminar alguém.
Trata-se de uma mistura fatal de cocaína, estimulante sexual e alcool que a vítima é forçada a ingerir e que provoca uma parada cardio-respiratória. Evidentemente, com a forma com a qual a SAP lida com os números de presos mortos no sistema nos deixa entrever, não há investigação rigorosa quando um preso morre, seja lá pelo for (vide a informação do reportagem que dá conta de que a SAP não sabe o local onde da morte da grande maioria de presos!!!!!!). Portanto, a morte através do gatorade, em regra, conta nas estatisticas como “morte natural”.
O segundo (e o que considero o mais importante) ponto: as “mortes naturais” são compostas majoritaramente por casos de negligência no atendimento médico e pela inexistência de atenção à saúde do preso.
Relatórios de entidades que inspecionam as unidades prisionais do Estado (por exemplo, CONDEPE, Defensoria Pública, Conselhos da Comunidade) estão repleto de casos que reinvindicam assistência médica em caráter de urgência para detentos com doenças graves; muitas vezes, estão em estado terminal; muitas vezes, trata-se de doenças infecto-contagiosas.
Há um perverso ciclo de negligências que vão da ausência de médicos nas unidades prisionais, à dificuldade de atendimento nos hospitais públicos e, especialmente, ao pouco caso da SAP no que diz respeito às escoltas para a saída de presos para atendimento hospitalar.
Explica-se: para que um preso possa ser levado a um hospital, é necessário que haja escolta para o seu transporte. E os problemas de ausência de escolta – e, então, de cancelamento das idas aos hospitais – é rotineiro, diário, banal. É a regra em São Paulo.
Nesta dinâmica perversa, o preso vai simplesmente mofando, apodrecendo, morrendo… naturalmente… dentro das masmorras paulistas.
Certamente, este é o significado mais apropriado para compreendermos a expressão “morte natural” para a classificação das mortes de presos em São Paulo.
Deixados à própria sorte ou nas mãos de facções que ditam as regras do cotidiano prisional, sem acesso à remédios, sem atendimento médico de qualquer espécie na unidade, impedidos de receber atendimento em unidades hospitalares, confinados em ambientes absolutamente insalubres, com uma alimentação de péssima qualidade (cf. reportagens recentes sobre o assunto, inclusive envolvendo corrupção): a morte é mesmo natural.
Nada mais natural do que morrer nestas condições. O Estado mata, simplesmente deixando morrer (para relembrar Michel Foucault).
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