Ofensas a Constituição Federal no decreto que instituiu a Lei 7.960/89
É preciso diferenciar a preocupação com a condenação e a efetiva aplicação da lei penal da prisão processual usada como forma de satisfazer os anseios da população por um espetáculo que sirva a uma ilusão de eficácia da Justiça.
DA INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI 7960/89
Destaca-se que a introdução do instituto da prisão temporária pela lei 7960/89 é originária de medida provisória, implicando em invasão da reserva feita pela Constituição da República quanto à edição dos mecanismos de coerção pessoal. Só através de lei em sentido estrito, e não de medida provisória, poderia ser a matéria disciplinada. E a lei de conversão não apaga o vício de origem[1]
Acaso o entendimento seja de o instituto da prisão temporária preencher alguma “lacuna” não alcançada pela tradicional prisão preventiva, prevista no Código de Processo Penal, não teve força de fazê-lo validamente porque em desacordo com a ordem constitucional. De outra forma, se se entender devam ser plenamente observados, quando da decretação de prisões temporárias, os requisitos da tutela cautelar – implícitos nas fórmulas da Lei 7.960/89 -, já não se encontra razão para a nova espécie de encarceramento: poderia, como alhures, ser utilizada a prisão preventiva.
Não é permitida idêntica conclusão no que toca à prisão provisória, isto porque o constrangimento à liberdade, embora possível, há que ser feito por critério de necessidade devidamente fundamentada, relacionada ao desenvolvimento do processo ou à sua finalidade, com rigorosa cautela na apreciação dos fatos, tanto que a presunção não é apenas de não culpabilidade e sim de inocência do acusado.
O fumus boni Iuris, no caso das cautelas processuais penais, se traduz na comprovação da materialidade do delito e indícios suficientes de autoria; além do periculum in mora, pois, são necessários os dois mencionados indicativos do bom direito para que se decreta a prisão provisória.
A lei que instituiu a prisão temporária fala em “fundadas razões de autoria”, que evidentemente e refere a um fato comprovadamente existente, definido como crime[2].
Parece, pois, que em tudo se identificam os requisitos da prisão preventiva e da prisão temporária, ao menos numa ótica de interpretação que preserva as garantias constitucionais.
A pergunta que se poderia fazer, pois, nesta linha, é a seguinte: Qual a finalidade desta última?
Ao que parece, a prisão temporária veio para consagrar, “legalizando”, as tais prisões para averiguações, arbitrárias, feitas pela polícia. Só que agora, aumentando a gravidade atentatória do Estado Democrático de Direito, é o Poder Judiciário que as tem deferido, de regra, como base exclusiva na afirmação de imprescindibilidade feita pela autoridade policial.
A inconstitucionalidade do decreto de prisão temporária advém de uma simples realidade: A Constituição da República garante que o Judiciário aprecie qualquer lesão ou ameaça de direito (Art. 5º, XXXV), devendo o juiz decidir, outrossim, fundamentadamente (art. 5º, LXI e 92, IX).
Argumente-se que os juízes são criteriosos no deferimento de tais prisões. Mas que critérios poderiam ter se os delegados de polícia não contam, normalmente, com mais que sua afirmativa de necessidade para requerê-las? Tivessem mesmo todos os requisitos exigidos no texto legal, compatíveis com o provimento cautelar e com os princípios constitucionais, representariam logo pela prisão preventiva.
Se não o fez é porque ainda terá que procurar o fumus boni iuris; e para tal procura, não é permitido, ainda, prender alguém.
Aliás, Pedro Armando Egídio de Carvalho propôs interessante “tradução” do art. 5º, LXI, da Constituição da República, que, segundo ele, deveria conter a seguinte clara expressão: “Não existe prisão para saber se alguém é ou não criminoso”[3]
Emerge o texto constitucional que a prisão preventiva e a prisão em flagrante mantida pelo juiz constituem as únicas formas pelas quais será alguém submetido a prisão processual em nosso ordenamento jurídico. Tanto que, em contrapartida, se não presente aqueles requisitos, tem o indivíduo direito à liberdade provisória, conforme se deflui do Art. 310, §único, do referido estatuto, lido em harmonia com a Constituição da República aberta em seu art. 5º, I: “Ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”.
São aceitas sem contestação pela doutrina duas finalidades cautelares da prisão processual: para assegurar a instrução do processo ou a aplicação da lei penal.
Em relação à primeira finalidade, prende-se uma pessoa para evitar perda da prova ou para assegurar a sua produção, sendo exemplos mais comuns a prisão de alguém que ameaça testemunhas ou destrói fontes de prova.
Quanto à outra finalidade, ou seja, a de garantir a aplicação da lei penal, prende-se o investigado ou acusado para que, se condenado, cumpra a pena, sendo exemplo clássico o da prisão para evitar a fuga.
Contudo, a prisão processual exerce entre nós, funções anômalas, merecendo destaque três delas: a) servir para antecipação de pena, para pedir o exercício do direito ao recurso e para o espetáculo público.m
O instituto da temporária vem sendo invocado de forma anômala, qual seja, apresentar o indicado à população, de preferência algemado, sendo exposto pela mídia para satisfação e alegria do povo. E, nessa exposição, para haver um belo espetáculo, o preso tem que estar algemado. Sem a colocação de algemas, a cena de prisão apresentada fica enfraquecida e perde o espetáculo.
Note-se que não há preocupação com a condenação e a efetiva aplicação da lei penal, o importante é a prisão processual, usada como forma de satisfazer os anseios da população por respostas e como forma de espetáculo público, dando ao povo a ilusão de que a justiça atua de maneira eficaz.
Tal questão, já amplamente debatida no meio jurídico, se mostra descabida e monstruosa nos constantes abusos sustentados pela malograda prisão temporária.
Sobre a questão, pronunciou o Ministro Marco Aurélio ao proferir seu voto no HC 105.833 São Paulo:
Devem-se lançar algumas premissas quanto à espécie de prisão precária e efêmera que é a temporária. Não se pode cogitar da medida a partir da simples gravidade do crime supostamente praticado pelo cidadão. A ordem jurídica em vigor não agasalha a automaticidade que, do entendimento contrário, ocorreria. Também não cabe determinar a custódia para intimidar, ou melhor, fragilizar o acusado. Mostra-se necessário que o contexto revele ser imprescindível a apuração dos fatos, cumprindo mencionar o móvel a conduzir à exceção – prender-se temporariamente quando ainda se está na fase de inquérito.
Ao decidir o mesmo Writ, o Ministro Marco Aurélio reconhece a ilegalidade do instituto mesmo naqueles casos em que existem receios de intimidação de testemunha, frisando-se, que tal, não reveste da legalidade necessária para segregação:
Vale consignar, aliás, que o que assentado resulta da capacidade intuitiva do autor da decisão. A possibilidade de cidadão sob investigação criminal vir a influenciar ou a intimidar testemunhas não serve a respaldar a prisão, no que se apresenta sem ter-se a culpa formada. Faz-se indispensável a concretude de atos à margem da ordem jurídica visando embaralhar as investigações e disso não há notícia na situação concreta. Em síntese, o pronunciamento está fundamentado em generalidade incompatível com a constrição formalizada.
E não é só, o STJ, através do voto da Ministra Marilza Maynard (Desembargadora convidada do TJ/SE) no voto do HC 236.328-MG concedeu ordem de Habeas Corpus com a seguinte fundamentação:
A jurisprudência desta Corte tem proclamado que a prisão cautelar, como medida de caráter excepcional, deve ser imposta, ou mantida, apenas quando atendidas, mediante decisão judicial fundamentada (art. 93, IX , da CF) as exigências legais. Isso porque a liberdade, antes de sentença penal condenatória definitiva, é a regra, e o enclausuramento provisório, a exceção, como têm insistido esta Corte e o Supremo Tribunal Federal em inúmeros julgados, por força do princípio da presunção de inocência, ou da não culpabilidade
E mais, a Ministra Maria Thereza de Assis Moura, ainda no mesmo HC, reconheceu o Constrangimento Ilegal, evidenciando a seguinte ementa:
PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE, GENOCÍDIO E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. DECRETO DE PRISÃO TEMPORÁRIA. SEGREGAÇÃO PROVISÓRIA JUSTIFICADA NA EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DE AUTORIA DE CRIMES ELENCADOS NO INCISO III DO ART. 1º DA LEI 7.960⁄89. IMPRESCINDIBILIDADE NÃO CONFIGURADA. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. ORDEM CONCEDIDA.
E conclui a i. Ministra:
A necessidade da prisão cautelar deve ser demonstrada com base em fatos concretos e na existência de indícios suficientes de autoria. Decisão que se limita a fatos genéricos, sem indicar nenhum indício de participação ou autoria dos pacientes, na prática dos crimes investigados, não deve subsistir, pois desprovida de fundamentação idônea. 5. A mera referência aos dispositivos legais não é suficiente para autorizar a segregação provisória. Necessária se faz a efetiva demonstração de que a custódia dos indiciados é imprescindível para o êxito das investigações, o que não ocorreu na espécie. 6. Ordem concedida. (GN)
E como não bastasse, O STJ, através da 5ª Turma, demonstrou a necessidade de fundamentação idônea para subsistir a decretação da prisão temporária, produzindo-se no julgamento do HC-250650-SP, a seguinte ementa:
HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PRISÃO TEMPORÁRIA. WRIT IMPETRADO CONTRA DECISÃO QUE INDEFERIU LIMINAR. EXCEPCIONALIDADE DA MEDIDA EXTREMA. SUPERAÇÃO DA SÚMULA 691 DO STJ. FLAGRANTE ILEGALIDADE. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS MÍNIMOS DE AUTORIA E MATERIALIDADEDO DELITO. ORDEM DE HABEAS CORPUS CONCEDIDA. 1. Flagrante ilegalidade do decreto de prisão temporária evidenciado pela carência de elementos mínimos que demonstrem a autoria e materialidade do delito em questão. 3. Habeas Corpus concedido para, confirmando a liminar deferida, revogar a prisão temporária do Paciente. (STJ - HC: 250650 SP 2012/0163070-4, Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 18/04/2013, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/04/2013)
E ainda, quanto à necessidade de fundamentação idônea, a 6ª Turma do STJ, ao julgar o HC 10409-MA, combateu veementemente a sua ausência, consagrando o entendimento de que é imprescindível que a prisão temporária se dê mediante requisitos legais notadamente previstos na lei que regula a espécie:
PROCESSUAL PENAL. PRISÃO TEMPORÁRIA. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. AUSÊNCIA.ORDEM CONCEDIDA. 1. Não demonstrados elementos concretos dos autos, com idoneidade suficiente a supedâneo a prisão temporária, a restrição da liberdade do ora paciente não se mostra adequada. Ordem concedida para, confirmando a liminar, cassar a prisão temporária. (STJ - HC: 130409 MA 2009/0039509-7, Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Julgamento: 26/04/2011, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 04/05/2011)
NOTAS
[1] Cf.Silva Franco, Crimes Hediondos, 3ª ed., RT, p. 241; Maria Lucia Karam, “Prisão e Liberdade Processuais em RBCCrim 2/88).
[2] Cf. Rui Cascaldi, “Prisão Temporária: Inconstitucionalidade” em RT 667/259
[3] Cf. “Reescrever o artigo 5º da Constituição da República”, em RBCCrim 3/151).
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