O servidor público Antônio Carlos Gonçalves dos Reis teve de esperar cerca de um ano para começar a receber do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, no Rio de Janeiro, uma pensão de dois salários mínimos que ele requeria. Para conseguir a pensão, Gonçalves teve de ir à Justiça. No início deste ano, ele afinal conseguiu seu pleito, depois de uma decisão em seu favor proferida pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Como o pagamento é retroativo a novembro de 2009, Gonçalves teve o direito de receber uma indenização de R$ 15 mil.
Em que momento a pendenga judicial de Antônio Carlos Gonçalves dos Reis virou um caso de calamidade pública ou, pelo menos, de emergência, para o governo federal, é algo difícil de saber. Porque só a transformação da pensão de Gonçalves num desses casos extremíssimos é que poderia justificar, pela Constituição, a sua presença como personagem central de uma medida provisória editada em dezembro do ano passado pelo então presidente Lula. São os R$ 15 mil de Gonçalves que dão título à MP 515, que o Senado aprovou no dia 24 de maio deste ano: “Abre crédito em favor da Justiça do Trabalho e outros órgãos do Poder Executivo”. Pois o “crédito em favor da Justiça do Trabalho”, que não é órgão do Poder Executivo, como faz pensar o texto da MP, mas do Judiciário, são os R$ 15 mil de Gonçalves. E eles puxam um novelo de dinheiro público que, ao final, soma nada menos que R$ 26 bilhões.
O artigo 62 da Constituição versa sobre o uso das medidas provisórias, instrumento que dá ao presidente da República no país a possibilidade de legislar, como está escrito logo no início, “em caso de relevância e urgência”. Eis aí já o primeiro ponto controverso: se Gonçalves pode esperar desde 2009 pela decisão judicial que lhe favoreceu, por que o pagamento da sua pensão de uma hora para outra tornou-se relevante e urgente? Mas o parágrafo primeiro do artigo 62 estabelece os pontos em que é vedado o uso de medidas provisórias para legislar. E o ponto contido na alínea “d” diz que não pode haver MP que trate de “planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares”. Ou seja: em princípio, pelo que diz a Constituição, nem os R$ 15 mil de Gonçalves nem todo o restante que soma R$ 26 bilhões poderia ter sido enviado ao Congresso Nacional como medida provisória. E o Congresso, ao examinar a admissibilidade da MP, deveria tê-la devolvido ao Poder Executivo.
O parágrafo terceiro do artigo 167, no entanto, abre uma exceção: diz que o governo pode editar MP que fale de créditos orçamentários caso eles sejam feitos para cobrir despesas com calamidades públicas e emergências. Assim, para ser constitucional, a indenização de Antônio Carlos Gonçalves teria de se encaixar em uma dessas duas condições. Não só a indenização de Gonçalves, mas todo o restante de pagamentos que a MP autoriza, que incluem, entre outras coisas, R$ 2,2 milhões para adquirir “bens” para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); R$ 4,1 milhões para o início e aperfeiçoamento de carreiras na Escola Nacional de Administração Pública; R$ 20 milhões para a concessão de Bolsa-Atleta pelo Ministério dos Esportes; R$ 127 milhões para bolsa-formação de policias e agentes penitenciários, e R$ 22,3 bilhões para que o Ministério das Minas e Energia, a partir de suas empresas e órgãos, como a Petrobras, invista em pesquisa e prospecção de combustíveis minerais e energia como um todo.
Estudo de caso
A “MP do Gonçalves” tem sido tratada pelos consultores legislativos do Senado como um estudo de caso do que o governo não poderia fazer com uma medida provisória. De como o Executivo vem abusando do uso do instrumento legal que lhe foi conferido pela Constituição. E de como o Congresso Nacional vem se tornando subserviente ao aceitar sem questionar o que lhe vem sendo mandado pelo governo.
Em primeiro lugar, ela cria uma série de gastos para o governo que não estavam originalmente previstos no orçamento, algo que a Constituição veda expressamente, a não ser em casos de calamidade e emergência. Se tal situação justifica esses gastos, essa justificativa deveria estar claramente colocada na exposição de motivos da MP, o que não acontece. Em terceiro lugar, o título da MP, ao puxar pelo menor dos gastos previstos – a indenização paga pela Justiça do Trabalho a Gonçalves – esconde a razão dos gastos maiores, como os R$ 22 bilhões para o Ministério das Minas e Energia. Em quarto lugar, a MP trata de dezenas de créditos extraordinários diferentes. O Congresso deveria ter tido tempo de analisar cada um deles com cuidado para saber se eram de fato importantes, e mais, se eram “urgentes e relevantes” para constarem de uma medida provisória.
A despeito de tudo isso, a MP foi aprovada sem problemas pelo Senado. No dia 24 de maio, presentes 64 senadores, 46 disseram sim à MP, 17 disseram não, e o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), como prevê o regimento, não votou.
Adin
Como fez também com outras medidas provisórias aprovadas este ano, o PSDB ingressou no STF com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) contra a MP 515. “Isso é a degenerescência do Poder Legislativo”, protesta o senador Alvaro Dias (PSDB-PR). “As MPs se tornaram um instrumento de malandragem. O governo não cumpre os requisitos previstos pela Constituição. E, quando a MP chega na Câmara, a base ainda embute, por orientação do governo, os chamados ‘jabutis’. A medida provisória chega ao Senado na véspera de expirar seu prazo de vigência e aí é aprovada de afogadilho, de qualquer jeito”, comenta o senador paranaense.
Os ‘jabutis’ ou ‘contrabandos’ são acréscimos à MP original que, na verdade, em muitos momentos a alteram totalmente. O Regime Diferenciado de Contratação (RDC), um sistema simplificado de licitação para a Copa do Mundo e as Olimpíadas, esteve primeiro numa MP que tratava de pagamento de salário para médicos residentes, e acabou aprovada como emenda numa MP que tratava da criação da Secretaria da Aviação Civil.
No primeiro semestre, os problemas relativos à tramitação das MPs geraram alguns dos debates mais intensos no Congresso, especialmente no Senado. Mesmo aliados do governo, como o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), entendem que há abuso na utilização dessa ferramenta. A situação irrita especialmente os senadores porque as MPs têm chegado para votação no Senado nos seus últimos dias de vigência, inviabilizando qualquer análise mais aprofundada.
Por conta disso, o próprio presidente Sarney apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que altera o rito de tramitação das MPs. Ela estabelece um prazo fixo para a análise das medidas provisórias tanto na Câmara como no Senado. Serão, se a PEC for aprovada, 50 dias na Câmara e 45 dias de análise no Senado. “É preciso que se estabeleça esse prazo: o mínimo de tempo necessário para a análise de uma medida provisória deveria ser de dez dias”, diz Sarney. Por isso, ele promete que no segundo semestre devolverá ao Executivo MPs que cheguem ao Senado com menos de cinco dias a mais de vigência enquanto sua PEC não é votada.
Ao ser analisada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, a PEC de Sarney ganhou um aditivo que a torna mais rigorosa. Foi aprovado um texto substitutivo do senador Aécio Neves (PSDB-MG), que cria uma comissão de deputados e senadores que analisará previamente se a MP atende aos requisitos de relevância e urgência. Hoje, uma MP começa a valer no momento em que é editada pela presidenta. Pela proposta de Aécio, ela só entraria em vigência depois que essa comissão a aprovasse. “Isso faria o governo tomar mais cuidado ao analisar os aspectos constitucionais antes de enviar para o Congresso uma medida provisória”, entende Aécio.
Reação no governo
O governo não aceita o substitutivo de Aécio, e já trabalha para derrubá-lo quando a PEC de Sarney for votada em plenário, o que acontecerá neste semestre. “O governo aceita os argumentos de que o Senado precisa de mais tempo para analisar as medidas provisórias e, por isso, aceita a PEC do presidente Sarney”, disse a assessoria do Ministério das Relações Institucionais ao Congresso em Foco. Assim, quanto ao rito com prazos determinados para a análise na Câmara e no Senado, não há oposição por parte do governo. “Mas o governo não pode aceitar o substitutivo do senador Aécio Neves, porque ele, na verdade, retira da presidenta uma prerrogativa que a Constituição lhe dá”, completa a assessoria. No entendimento do governo, ao estabelecer uma comissão que dará a palavra final sobre a validade da MP, a proposta de Aécio transfere para o Congresso o instrumento. Torna-o equivalente ao projeto de lei.
Mas o próprio governo esquiva-se quando a questão é defender os aspectos constitucionais das MPs que edita. Diante de perguntas sobre situações específicas que estão sendo questionadas, como no caso da MP do Gonçalves, a resposta da assessoria do Ministério das Relações Institucionais foi de que tais casos tinham de ser perguntados à Casa Civil, que é quem faz a análise final das medidas provisórias antes da sua edição pela presidenta. O Congresso em Foco entrou em contato com a assessoria da Casa Civil, que pediu à reportagem que enviasse os questionamentos por e-mail. Até as 22h de ontem, nenhuma resposta havia sido enviada. Segue, assim, sendo um mistério que calamidade pública ou emergência envolve o pagamento da indenização para o senhor Gonçalves.
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