O ex-ditador argentino Jorge Videla deu novas informações a uma revista de Córdoba sobre a cumplicidade da Igreja Católica com a ditadura militar. Falou sobre como os bispos Pio Laghi (ex-núncio apostólico) e Raúl Primatesta, entre outros, ajudaram a ditadura. Não só assessoraram os militares sobre como lidar com a questão dos desaparecidos. Também ofereceram seus “bons ofícios” para informar a algumas famílias do assassinato dos filhos, garantindo-lhes que não os tornariam públicos. Compreende-se por que até hoje a Igreja não excomungou Videla. O artigo é de Horácio Verbitsky, do Página/12.
Horácio Verbitsky - Página/12
Buenos Aires - O ex-ditador Jorge Videla disse que o ex núncio apostólico Pio Laghi, o ex-presidente da Igreja Católica da Argentina Raúl Primatesta, e outros bispos da Conferência Episcopal assessoraram o seu governo sobre a forma de manejar a situação das pessoas detidas-desaparecidas. Segundo Videla, a Igreja “ofereceu seus bons ofícios” para que o governo de fato informasse da morte de seus filhos a famílias que não vieram a público, de modo que pararam de buscá-los.
Isso confirma o conhecimento em primeira mão que essa instituição tinha sobre os crimes da ditadura militar, como consta nos documentos secretos cuja autenticidade o Episcopado reconheceu, perante a Justiça, há dois meses. Além disso, mostra o envolvimento episcopal ativo para que essa informação não viesse a público, por meio de comentários dos familiares das vítimas; a Igreja era garante desse silêncio.
Diálogos no cárcere
A reportagem com a revista cordobesa El Sur, que a Río Cuarto Henán Vaca Narvaja edita, realizou-se antes das entrevistas concedidas ao jornalista espanhol Ricardo Angoso e ao argentino Ceferino Reato, mas só foi divulgada na última semana. Foi realizada em três partes, pelo jornalista Adolfo Ruiz, na penitenciária de segurança máxima de Bouwer, onde o ex-chefe da Junta Militar esteve detido entre 26 de junho e 23 de dezembro de 2010, enquanto duravam as audiências do processo por crimes contra a humanidade cometidos na prisão de Córdoba, conhecida como UP1.
Videla foi condenado nesse processo à prisão perpétua pelos assassinatos de 31 prisioneiros dentro do cárcere, ou mediante tentativas forjadas de resgate em traslados de uma prisão a outra. Videla recebeu Ruiz em 6 e 13 de agosto e em 18 de outubro de 2010, no locutório da prisão de Bouwer, cujos dois mil presos superam o número de habitantes dessa pequena cidade, que até há dois anos foi o depósito de lixo doméstico de Córdoba. Antes de começar, impôs a condição de que suas palavras fossem difundidas quando deixasse a província, como se pode ler na carta anexada a esta reportagem.
Como naquelas outras entrevistas e em suas alegações judiciais, Videla justificou o plano que a Junta Militar aplicou com os “decretos de aniquilação” assinados pelo ex-presidente interino Italo Luder, que constituíram “uma licença para matar concedida por um governo democrático”. Quando o jornalista perguntou-lhe se essa licença incluria as torturas, o roubo de bebês e o saqueio dos bens das vítimas, disse que essas “baixezas humanas” deveram-se ao grande “poder e liberdade de ação outorgados ao exército”, situação na qual “é inevitável que muitos utilizem essas liberdades em benefício próprio”. Acrescentou que, com os processos, ele e seus camaradas pagam o preço por não “terem limpado” os métodos de então. Videla sustenta que “até o fim de meu mandato, entre 80 e 81, chegou-se a avaliar a possibilidade de publicar a lista, tornar público quem eram os desaparecidos”.
Explica que “não era tão fácil, porque, além do mais, ficaríamos expostos à contra-pergunta. Se dizíamos a uma mãe que o seu filho estava na lista, ninguém a impediria de perguntar “onde está enterrado, para levar-lhe uma flor?, Quem o matou? Por que? Como o mataram? Não havia respostas para cada uma dessas perguntas, e acreditávamos que fazê-lo seria complicar ainda mais essa realidade, e que só conseguiríamos afetar a nossa credibilidade. Então, nesse momento se quis correr esse risco”.
O raciocínio é idêntico ao que Videla usou na Comissão Executiva do Episcopado, quando os bispos disseram-lhe que o método de desaparição de pessoas produziria, no longo prazo, “efeitos ruins”, dada a “amargura que deixa em muitas famílias”. Mas a data é muito anterior à que o ditador menciona. Esse diálogo teve lugar em 10 de abril de 1978, durante um almoço de Videla com a comissão executiva do Episcopado, presidido pelo arcebispo de Córdoba, Primatesta do qual também participaram os arcebispos de Santa Fé e da Capital Federal, Vicente Zazpe e Juan Aramburu, como vice-presidentes.
Primatesta fez referência às desaparições produzidas durante a páscoa de 1978, “em um procedimento muito similar aquele utilizado quando sequestraram as duas religiosas francesas”. Videla respondeu que “seria o mais óbvio dizer que esses já estão mortos, trataríamos de passar uma linha divisória e estes estão desaparecidos e não estão [mortos]. No entanto, mesmo que isso parece o mais claro, dá espaço a uma série de perguntas sobre onde estão os sepultados: em uma fossa comum? Neste caso, que os pôs nesta fossa? Uma série de perguntas que a autoridade do governo não pode responder sinceramente por conta das consequências sobre as pessoas”, quer dizer, para proteger os sequestradores e assassinos.
O detalhe desse diálogo consta numa minuta que os três arcebispos redigiram na sede do Episcopado quando concluíram o almoço, para enviá-la ao Vaticano. A autenticidade desse texto foi reconhecida pela Conferência Episcopal, que hoje o arcebispo de Santa Fé, José Arancedo, preside, diante da consulta da juíza federal de San Martín, Martina Forns, depois de sua publicação aqui. Mas na reportagem com o El Sur, Videla descreve um grau de cumplicidade da Igreja Católica com os crimes de seu governo superior ao que se conhecia e com um caráter institucional que compreende tanto o Episcopado local como a sede central, em Roma. Não se trata apenas de calar o que sabiam para “não causar dano ao governo”, como disse Primatesta naquele dia, em 1978, mas inclusive de assessorar a Junta Militar e garantir que tampouco os familiares das vítimas contariam o que tinha ocorrido aos seus filhos. A seguir há a transcrição textual do tratamento do tema, na entrevista.
– Não deixa de chamar a atenção a forma como se refere à situação dos desaparecidos. Parece que para você é um tema pendente.
– O desaparecimento de pessoas foi uma coisa lamentável nessa guerra. Até o dia de hoje seguimos discutindo o assunto. Na minha vida falei com muita gente a respeito. Com Primatesta, muitas vezes. Com a Conferência Episcopal Argentina, não totalmente, mas com alguns bispos. Com eles tivemos muitas conversas. Com o núncio apostólico Pio Laghi. Tratou-se como uma situação muito dolorosa e nos assessoraram sobre a forma de lidar com ela. Em alguns casos, a Igreja ofereceu os seus bons ofícios, e frente a familiares que se tinha certeza que não fariam uso político da informação, diziam-lhes que não buscassem mais o seu filho porque estava morto.
–Não parece suficiente.
– É que a pergunta é um direito que todas as famílias têm. Isso a Igreja compreendeu bem e também assumiu os riscos.
Até a expressão impessoal escolhida por Videla (“levantou-se a questão”, “disse-lhes”) deixa nítida a identidade entre Igreja e Ditadura.
O papel de Laghi
A minuta para o Vaticano também mostra o conhecimento da Igreja sobre o sequestro das religiosas francesas Alice Domon e Léonie Duquet. No entanto, quando a superiora das monjas na Argentina, Evelyn Lamartine, e a religiosa Montserrat Bertrán recorreram a Laghi, o núncio as olhou “como se fôssemos bichos asquerosos, e nos disse: ‘Nós não sabemos nada, algo terá sido’. Ele a afastou instintivamente, descreve Evelyn, que então pensou: ‘Deus não se esquece do que disseste’”. Seu testemunho foi recolhido por Maria Arce, Andrea Basconi e Florencia Bianco, cuja investigação foi publicada pelo Clarín, em 2007.
Um bispo e uma madre superiora chegaram da França para investigarem os desaparecimentos de Alice e Léonie, mas Primatesta ordenou desmenti-lo e explicar que só tinham vindo passar o natal na Argentina. Em 1995, sob a comoção das revelações do ex-capitão Adolfo Scilingo sobre o assassinato de prisioneiros jogados ao mar, a esposa do jornalista sequestrado Julián Delgado, María Ignacia Cercós, contou que o Comandante em Chefe da Armada, Armando Lambruschini reuniu-se com Laghi para tratar do destino de 40 detidos-desaparecidos na ESMA, que o seu antecessor, Emilio Massera, lhe havia entregue ao se retirar do cargo. Lambruschini não queria mata-los, mas temia que se os deixasse em liberdade contariam o que tinha passado na ESMA, tal como ocorreu e perguntou a Laghi o que fazer. Segundo Cercós, o conhecimento de Laghi do que acontecia naquele campo de concentração chegava até o conhecimento do nome dos prisioneiros que ainda estavam com vida. Diante do pedido de Maria Ignacia, Laghi consultou essa lista e “me disse que Julián não estava entre eles. Quer dizer, que tinha pleno acesso à informação”.
Naquele momento, o próprio Massera defendeu Laghi de tais “notícias caluniosas” e disse que se preocupou de forma permanente com o destino dos “chamados desaparecidos”. O problema é que Laghi tinha eleito a estratégia oposta: negar que houvesse conhecido a índole e a extensão das violações aos direitos humanos. Disse que “não tinha nem microfones nem espiões que fossem aos quartéis para ver o que os militares faziam”. Seus amigos Oscar Justo Laguna (que, ao morrer neste ano não estava processado pela justiça federal de San Nicolás, por ter mentido em seu testemunho sobre o assassinato de seu colega Carlos Horácio Ponce de León), Alcides Jorge Pedro Casaretto, Carlos Galán, Domingo Castagna e Emilio Bianchi di Carcano sustentaram que as declarações como as de Maria Ignacia Cercós poderiam “reinstalar entre nós não já a violência das armas, mas a da vingança”.
A esposa de Julián Delgado disse então que, durante anos foi grata a Laghi por suas gestões. “Mas agora sei que não posso perdoar o seu silêncio cúmplice. Sinto-me um monstro por ter escutado essas coisas sem reagir”. O próprio chefe máximo daquela Junta Militar, sem o menor indício de crítica, confirma três décadas depois do assessoramento de Laghi o segredo mais horrendo e guardado da ditadura.
A Eucaristia
Muitos sacerdotes que frequentaram Laghi tem recordações coincidentes, daqueles anos. Um deles, Hugo Collosa, de Rafaela, disse ao jornalista Carlos del Frade que Laghi visitou essa cidade santafesina depois da morte de seu bispo, Antonio Alfredo Brasca, tomado por um câncer, em 1976. A doença se adiantou às Forças Armadas, que o tinham em sua lista curta de aversões. No bispado se reuniam as agrupações laicas que militavam nos bairros mais humildes e as do peronismo revolucionário, que tinha alguns membros em comum, entre eles um sacerdote.
Brasca tinha manifestado o seu apoio ao movimento de Sacerdotes pelo Terceiro Mundo junto aos bispos Enrique Angelelli, Ponce de León e Alberto Devoto. “Laghi veio nos maltratar”, dissee Collosa, que já não é mais sacerdote. “Não tinha nenhuma intenção de discutir o perfil de novo bispo nem muito menos algum que seguisse a linha de Brasca. Chegamos a almoçar num refeitório para meninos da cidade e ali, a vários sacerdotes, contou-nos sobre os voos da morte, dos sequestros, das desaparições e das torturas. Quer dizer, eles sabiam o que estava se passando com riqueza de detalhes, muito antes de 1978. E falava com fundamento do que fazia cada uma das três forças armadas. Nós já havíamos sofrido o sequestro do padre Raúl Troncoso que militava no bairro Fátima, e estávamos muito preocupados. Depois o mandaram a Cassaretto, que fez uma pastoral totalmente distinta da de Brasca e bem próxima dos setores dominantes da cidade”.
A primeira entrevista de Videla com o jornalista cordobês interrompeu-se quando ele foi trasladado ao Hospital Militar para tratar de uma bronquite inicial. Formava parte da comitiva que buscou Videla “um homem de cabelos brancos que vinha, com o cálice e a hóstia na mão, dar-lhe a Eucaristia”. Quer dizer, em que pese as sucessivas condenações pelos mais graves delitos, a Igreja Católica não considerou necessário excomungá-lo, a pena eclesiástica que impede a recepção dos sacramentos e se aplica aos pecados graves. Não considerar como tais os delitos de Videla certifica a prolongação no tempo da cumplicidade eclesiástica com eles.
Tradução: Katarina Peixoto
Isso confirma o conhecimento em primeira mão que essa instituição tinha sobre os crimes da ditadura militar, como consta nos documentos secretos cuja autenticidade o Episcopado reconheceu, perante a Justiça, há dois meses. Além disso, mostra o envolvimento episcopal ativo para que essa informação não viesse a público, por meio de comentários dos familiares das vítimas; a Igreja era garante desse silêncio.
Diálogos no cárcere
A reportagem com a revista cordobesa El Sur, que a Río Cuarto Henán Vaca Narvaja edita, realizou-se antes das entrevistas concedidas ao jornalista espanhol Ricardo Angoso e ao argentino Ceferino Reato, mas só foi divulgada na última semana. Foi realizada em três partes, pelo jornalista Adolfo Ruiz, na penitenciária de segurança máxima de Bouwer, onde o ex-chefe da Junta Militar esteve detido entre 26 de junho e 23 de dezembro de 2010, enquanto duravam as audiências do processo por crimes contra a humanidade cometidos na prisão de Córdoba, conhecida como UP1.
Videla foi condenado nesse processo à prisão perpétua pelos assassinatos de 31 prisioneiros dentro do cárcere, ou mediante tentativas forjadas de resgate em traslados de uma prisão a outra. Videla recebeu Ruiz em 6 e 13 de agosto e em 18 de outubro de 2010, no locutório da prisão de Bouwer, cujos dois mil presos superam o número de habitantes dessa pequena cidade, que até há dois anos foi o depósito de lixo doméstico de Córdoba. Antes de começar, impôs a condição de que suas palavras fossem difundidas quando deixasse a província, como se pode ler na carta anexada a esta reportagem.
Como naquelas outras entrevistas e em suas alegações judiciais, Videla justificou o plano que a Junta Militar aplicou com os “decretos de aniquilação” assinados pelo ex-presidente interino Italo Luder, que constituíram “uma licença para matar concedida por um governo democrático”. Quando o jornalista perguntou-lhe se essa licença incluria as torturas, o roubo de bebês e o saqueio dos bens das vítimas, disse que essas “baixezas humanas” deveram-se ao grande “poder e liberdade de ação outorgados ao exército”, situação na qual “é inevitável que muitos utilizem essas liberdades em benefício próprio”. Acrescentou que, com os processos, ele e seus camaradas pagam o preço por não “terem limpado” os métodos de então. Videla sustenta que “até o fim de meu mandato, entre 80 e 81, chegou-se a avaliar a possibilidade de publicar a lista, tornar público quem eram os desaparecidos”.
Explica que “não era tão fácil, porque, além do mais, ficaríamos expostos à contra-pergunta. Se dizíamos a uma mãe que o seu filho estava na lista, ninguém a impediria de perguntar “onde está enterrado, para levar-lhe uma flor?, Quem o matou? Por que? Como o mataram? Não havia respostas para cada uma dessas perguntas, e acreditávamos que fazê-lo seria complicar ainda mais essa realidade, e que só conseguiríamos afetar a nossa credibilidade. Então, nesse momento se quis correr esse risco”.
O raciocínio é idêntico ao que Videla usou na Comissão Executiva do Episcopado, quando os bispos disseram-lhe que o método de desaparição de pessoas produziria, no longo prazo, “efeitos ruins”, dada a “amargura que deixa em muitas famílias”. Mas a data é muito anterior à que o ditador menciona. Esse diálogo teve lugar em 10 de abril de 1978, durante um almoço de Videla com a comissão executiva do Episcopado, presidido pelo arcebispo de Córdoba, Primatesta do qual também participaram os arcebispos de Santa Fé e da Capital Federal, Vicente Zazpe e Juan Aramburu, como vice-presidentes.
Primatesta fez referência às desaparições produzidas durante a páscoa de 1978, “em um procedimento muito similar aquele utilizado quando sequestraram as duas religiosas francesas”. Videla respondeu que “seria o mais óbvio dizer que esses já estão mortos, trataríamos de passar uma linha divisória e estes estão desaparecidos e não estão [mortos]. No entanto, mesmo que isso parece o mais claro, dá espaço a uma série de perguntas sobre onde estão os sepultados: em uma fossa comum? Neste caso, que os pôs nesta fossa? Uma série de perguntas que a autoridade do governo não pode responder sinceramente por conta das consequências sobre as pessoas”, quer dizer, para proteger os sequestradores e assassinos.
O detalhe desse diálogo consta numa minuta que os três arcebispos redigiram na sede do Episcopado quando concluíram o almoço, para enviá-la ao Vaticano. A autenticidade desse texto foi reconhecida pela Conferência Episcopal, que hoje o arcebispo de Santa Fé, José Arancedo, preside, diante da consulta da juíza federal de San Martín, Martina Forns, depois de sua publicação aqui. Mas na reportagem com o El Sur, Videla descreve um grau de cumplicidade da Igreja Católica com os crimes de seu governo superior ao que se conhecia e com um caráter institucional que compreende tanto o Episcopado local como a sede central, em Roma. Não se trata apenas de calar o que sabiam para “não causar dano ao governo”, como disse Primatesta naquele dia, em 1978, mas inclusive de assessorar a Junta Militar e garantir que tampouco os familiares das vítimas contariam o que tinha ocorrido aos seus filhos. A seguir há a transcrição textual do tratamento do tema, na entrevista.
– Não deixa de chamar a atenção a forma como se refere à situação dos desaparecidos. Parece que para você é um tema pendente.
– O desaparecimento de pessoas foi uma coisa lamentável nessa guerra. Até o dia de hoje seguimos discutindo o assunto. Na minha vida falei com muita gente a respeito. Com Primatesta, muitas vezes. Com a Conferência Episcopal Argentina, não totalmente, mas com alguns bispos. Com eles tivemos muitas conversas. Com o núncio apostólico Pio Laghi. Tratou-se como uma situação muito dolorosa e nos assessoraram sobre a forma de lidar com ela. Em alguns casos, a Igreja ofereceu os seus bons ofícios, e frente a familiares que se tinha certeza que não fariam uso político da informação, diziam-lhes que não buscassem mais o seu filho porque estava morto.
–Não parece suficiente.
– É que a pergunta é um direito que todas as famílias têm. Isso a Igreja compreendeu bem e também assumiu os riscos.
Até a expressão impessoal escolhida por Videla (“levantou-se a questão”, “disse-lhes”) deixa nítida a identidade entre Igreja e Ditadura.
O papel de Laghi
A minuta para o Vaticano também mostra o conhecimento da Igreja sobre o sequestro das religiosas francesas Alice Domon e Léonie Duquet. No entanto, quando a superiora das monjas na Argentina, Evelyn Lamartine, e a religiosa Montserrat Bertrán recorreram a Laghi, o núncio as olhou “como se fôssemos bichos asquerosos, e nos disse: ‘Nós não sabemos nada, algo terá sido’. Ele a afastou instintivamente, descreve Evelyn, que então pensou: ‘Deus não se esquece do que disseste’”. Seu testemunho foi recolhido por Maria Arce, Andrea Basconi e Florencia Bianco, cuja investigação foi publicada pelo Clarín, em 2007.
Um bispo e uma madre superiora chegaram da França para investigarem os desaparecimentos de Alice e Léonie, mas Primatesta ordenou desmenti-lo e explicar que só tinham vindo passar o natal na Argentina. Em 1995, sob a comoção das revelações do ex-capitão Adolfo Scilingo sobre o assassinato de prisioneiros jogados ao mar, a esposa do jornalista sequestrado Julián Delgado, María Ignacia Cercós, contou que o Comandante em Chefe da Armada, Armando Lambruschini reuniu-se com Laghi para tratar do destino de 40 detidos-desaparecidos na ESMA, que o seu antecessor, Emilio Massera, lhe havia entregue ao se retirar do cargo. Lambruschini não queria mata-los, mas temia que se os deixasse em liberdade contariam o que tinha passado na ESMA, tal como ocorreu e perguntou a Laghi o que fazer. Segundo Cercós, o conhecimento de Laghi do que acontecia naquele campo de concentração chegava até o conhecimento do nome dos prisioneiros que ainda estavam com vida. Diante do pedido de Maria Ignacia, Laghi consultou essa lista e “me disse que Julián não estava entre eles. Quer dizer, que tinha pleno acesso à informação”.
Naquele momento, o próprio Massera defendeu Laghi de tais “notícias caluniosas” e disse que se preocupou de forma permanente com o destino dos “chamados desaparecidos”. O problema é que Laghi tinha eleito a estratégia oposta: negar que houvesse conhecido a índole e a extensão das violações aos direitos humanos. Disse que “não tinha nem microfones nem espiões que fossem aos quartéis para ver o que os militares faziam”. Seus amigos Oscar Justo Laguna (que, ao morrer neste ano não estava processado pela justiça federal de San Nicolás, por ter mentido em seu testemunho sobre o assassinato de seu colega Carlos Horácio Ponce de León), Alcides Jorge Pedro Casaretto, Carlos Galán, Domingo Castagna e Emilio Bianchi di Carcano sustentaram que as declarações como as de Maria Ignacia Cercós poderiam “reinstalar entre nós não já a violência das armas, mas a da vingança”.
A esposa de Julián Delgado disse então que, durante anos foi grata a Laghi por suas gestões. “Mas agora sei que não posso perdoar o seu silêncio cúmplice. Sinto-me um monstro por ter escutado essas coisas sem reagir”. O próprio chefe máximo daquela Junta Militar, sem o menor indício de crítica, confirma três décadas depois do assessoramento de Laghi o segredo mais horrendo e guardado da ditadura.
A Eucaristia
Muitos sacerdotes que frequentaram Laghi tem recordações coincidentes, daqueles anos. Um deles, Hugo Collosa, de Rafaela, disse ao jornalista Carlos del Frade que Laghi visitou essa cidade santafesina depois da morte de seu bispo, Antonio Alfredo Brasca, tomado por um câncer, em 1976. A doença se adiantou às Forças Armadas, que o tinham em sua lista curta de aversões. No bispado se reuniam as agrupações laicas que militavam nos bairros mais humildes e as do peronismo revolucionário, que tinha alguns membros em comum, entre eles um sacerdote.
Brasca tinha manifestado o seu apoio ao movimento de Sacerdotes pelo Terceiro Mundo junto aos bispos Enrique Angelelli, Ponce de León e Alberto Devoto. “Laghi veio nos maltratar”, dissee Collosa, que já não é mais sacerdote. “Não tinha nenhuma intenção de discutir o perfil de novo bispo nem muito menos algum que seguisse a linha de Brasca. Chegamos a almoçar num refeitório para meninos da cidade e ali, a vários sacerdotes, contou-nos sobre os voos da morte, dos sequestros, das desaparições e das torturas. Quer dizer, eles sabiam o que estava se passando com riqueza de detalhes, muito antes de 1978. E falava com fundamento do que fazia cada uma das três forças armadas. Nós já havíamos sofrido o sequestro do padre Raúl Troncoso que militava no bairro Fátima, e estávamos muito preocupados. Depois o mandaram a Cassaretto, que fez uma pastoral totalmente distinta da de Brasca e bem próxima dos setores dominantes da cidade”.
A primeira entrevista de Videla com o jornalista cordobês interrompeu-se quando ele foi trasladado ao Hospital Militar para tratar de uma bronquite inicial. Formava parte da comitiva que buscou Videla “um homem de cabelos brancos que vinha, com o cálice e a hóstia na mão, dar-lhe a Eucaristia”. Quer dizer, em que pese as sucessivas condenações pelos mais graves delitos, a Igreja Católica não considerou necessário excomungá-lo, a pena eclesiástica que impede a recepção dos sacramentos e se aplica aos pecados graves. Não considerar como tais os delitos de Videla certifica a prolongação no tempo da cumplicidade eclesiástica com eles.
Tradução: Katarina Peixoto
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