Em um texto publicado em 1982, o antropólogo Roberto da Matta dizia: “O discurso sobre a violência é, em geral, um discurso escandaloso. Se não é denúncia, é elogio. Não pode ser um discurso interrogativo e relativizador, pois que se toma como perversão qualquer tentativa de ver a violência como fenômeno social.” Na mesma década, o sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro, ao comentar uma dessas pesquisas cujo resultado era favorável à pena de morte, dizia que no Brasil a pena de morte já existia, só não estava institucionalizada. Ele se referia às mortes perpetradas pela polícia. Mais de duas décadas depois, a violência homicida cresceu de forma extraordinária, em grande parte devido à forma de organização do próprio crime. Para se ter uma dimensão mais concreta, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes, segundo os dados do Mapa da Violência 2012, em 1980 era de 11,7 e em 2010, 26,2. Ou seja, a taxa de risco de ser vítima de homicídio mais que duplicou nos últimos trinta anos.
Controle de faz de conta
Esse é o tema geral deste artigo, mas o que o motivou foi uma série de comentários sobre mais uma dessas pesquisas em que a pena de morte e a tortura para a obtenção de confissões era defendida pela população entrevistada. Pesquisa que, como comentado acima, deve ser relativizada ou debatida, mais do que defendida. No entanto, o que se vê por parte de alguns comentaristas e de alguns veículos de comunicação é a oportunidade para bradar por mais repressão e/ou mais violência e, de sobra, atacar sociólogos e pesquisadores como protetores de bandidos. Um problema tão sério como a perda de vidas deveria merecer um tratamento mais qualificado e digno.
Nossa longa tradição autoritária produziu instituições de controle social, como as polícias, que foram e são estimuladas a garantir a lei e a ordem a qualquer custo. Muitas vezes, na prática, isso significa fazer “aquilo que ninguém tem coragem de fazer”. Ao invés do recurso à Justiça, nos moldes dos países democráticos, aqui nossas polícias definem a fronteira cotidiana entre o legal e o ilegal. Paradoxalmente, a opinião pública é cambiante, dependendo se o castigo e a punição estão mais ou menos direcionados ao controle dos “bandidos” – palavra cada vez mais usada pela mídia para estigmatizar quaisquer indivíduos que cometem crimes, independentemente de intensidade, culpabilidade, circunstâncias etc. Interessante observar que dessa maneira a punição tem como alvo pessoas e grupos, e não os atos infracionais.
O mais dramático, nesse dantesco quadro, é que existe um pacto de silêncio e conivência, associado a um comportamento dúbio, por parte da sociedade nos seguintes moldes: às vezes exige-se da polícia um comportamento republicano e democrático (principalmente quando a ação discricionária da polícia atinge “gente de bem”). Outras vezes, discricionariamente, aceita-se como natural que essa mesma polícia faça conchavos, tome medidas extralegais para combater o crime ou não preste contas à sociedade dos atos praticados. Controle externo das organizações policiais – institucionalizado em países democráticos há décadas –, no Brasil é faz de conta.
Os “outros” se tornam ameaçadores
Para tornar a situação ainda mais caótica, a partir do consenso segundo o qual o Estado detém o monopólio do uso da força, alguns estudiosos têm defendido o argumento que aponta para uma tendência de endurecimento dos mecanismos de controle social estatais, tornando a segurança um poderoso instrumento de segregação socioespacial de imensas camadas sociais, aumentando o poder punitivo do Estado, caracterizado pelo recrudescimento legal e pelo aumento das prisões.
Como afirma Luiz Eduardo Soares, a segurança pública é a estabilização de expectativas positivas quanto à ordem e à vigência de uma sociabilidade cooperativa. Portanto, a segurança pública demanda o equilíbrio de expectativas em duas vertentes: na esfera dos fenômenos, ou seja, na redução da quantidade de práticas violentas, especialmente aquelas que se classificam como criminosas (ameaça a vida ou são letais) e também na esfera dos sentimentos e percepções, relacionadas não somente àquilo que é vivenciado pelas vítimas, mas às experiências vividas por parentes, amigos e aquelas divulgadas nos meios de comunicação social e, neste caso, impõe-se reduzir o medo, a sensação de insegurança e a instabilidade de expectativas.
Num mundo volátil e mutante, as pessoas são induzidas a um investimento naquilo que supõem controlar, tendo em vista a sua autopreservação. Para tanto, o paliativo para a insegurança é a busca por segurança que tem a ver com a integridade corporal, a defesa da propriedade e uma ideia de “comunidade” que faz do estranho o inimigo a ser evitado ou combatido. Por este motivo, as pessoas constroem muros e compram vigilância privada, já que a (segurança) pública deixa a desejar. Nesse movimento há um evidente contrassenso: ao incrementar o arsenal de segurança, há um sempre crescente sentimento de insegurança; e mais: os “outros” se tornam ameaçadores. Para eles, os outros, não há lei. Desde que sejam “os outros”, a polícia teria autorização para fazer o que quiser.
Respeito aos direitos humanos
Não é possível, racional, nem eticamente aceitável que formadores de opinião ratifiquem práticas que afrontam contra a dignidade humana. A segurança pública constitui-se como direito de cidadania, uma política fundada na observância das garantias fornecidas no âmbito do Estado de Direito, baseadas em princípios e valores que fortaleçam a segurança democrática. Para tanto, não é possível a conivência e a apologia com os vícios da desresponsabilização dos vários atores institucionais responsáveis pela política, nem com a análise simplista que ratifica práticas atentatórias aos direitos humanos.
Se a cidade que queremos é aquela em que a violência seja algo excepcional, que o patrimônio não precise ser protegido como um bunker e que os espaços públicos sejam lugares do encontro e não do medo e do abandono, não é sobre os valores da defesa da tortura e do extermínio de “bandidos” que essa cidade deve ser construída. Para essa (re)construção, os meios de comunicação devem desempenhar um papel fundamental na difusão dos valores democráticos e de exemplos de enfrentamento da violência com respeito aos direitos humanos. Discursos violentos podem, sim, aumentar os índices de audiência via defesa da barbárie, mas será esse o papel público e social dos meios de comunicação?
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[Luciana Andrade é doutora em sociologia e coordenadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Minas e do Observatório das Metrópoles – Núcleo Minas Gerais; Robson Sávio é doutorando em Ciências Sociais; coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas e associado pleno do Fórum Brasileiro de Segurança Pública]
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