por Helder Lima, da RBA
ANDRÉ BUENO / CMSP
Os jornalistas Audálio Dantas e Caco Barcellos: identificação de corpos ainda representa desafio
São Paulo – O jornalista Caco Barcellos disse ontem (2) que a descoberta da vala clandestina no cemitério de Perus, distrito na região noroeste da capital paulista, foi um desdobramento de investigações que fez durante sete anos sobre crimes da Polícia Militar. “São crimes contra negros e pobres e não damos a mesma importância”, afirmou. Barcellos relatou ter vasculhado “uma montanha” de papéis do Instituto Médico Legal (IML).
Depois de cruzar as informações que levantou com notícias – sobretudo do extinto Notícias Populares, do grupo Folha, que elogiava a polícia pelas mortes realizadas – e depoimentos dos familiares, o jornalista conseguiu identificar quem era e quem matou, desvendando a ação violenta da Rota, o batalhão de elite da Polícia Militar, que também praticou execuções a serviço da ditadura civil-militar.
Barcellos deu seu testemunho durante audiência à Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, criada em 2014 com intenção de aprofundar a investigação de crimes da ditadura na cidade. Um dos objetivos da comissão é a identificação dos corpos localizados na vala, no início dos anos 1990 – foram 1.049 ossadas de adultos e cerca de 500 restos mortais de crianças menores de 10 anos.
“A descoberta da vala foi uma das maiores matérias da época. Na vala, pessoas foram enterradas com nomes falsos, e o Caco recebeu colaboração dos familiares. Mas a maioria ainda hoje aguarda a identificação”, afirmou o jornalista Audálio Dantas, um dos cinco responsáveis pela coordenação dos trabalhos da comissão. O trabalho de Caco Barcellos resultou no livro Rota 66 – A História da Polícia que Mata, lançado em 1992.
Alguns dos papéis a que teve acesso vinham sujos de sangue, porque ficavam presos ao pulso dos cadáveres. Outros traziam a letra “T”, em vermelho, designação de terroristas feita pelos assassinos. Também entre os documentos havia avaliações de legistas, que permitiam ver que maioria das vítimas era de negros e pardos.
“A Rota, quando mata, esconde o cadáver no hospital”, afirmou Barcellos ao comentar que se impressiona com o fato de os médicos aceitarem até hoje que hospitais sejam usados para esse fim. Essa prática é coberta pela justificativa de prestar socorro à vítima, mas na verdade é para esconder as provas da cena do crime. “Não é gesto humanitário, mas um ato perverso de levar para os hospitais."
“A regra é o silêncio, que ao mesmo tempo impede uma investigação científica séria”, disse Barcellos, destacando também que muitas pessoas têm seus documentos destruídos para serem classificadas como indigentes. “E eles (a PM) contam com o descaso da origem do preconceito de classe, que faz com que determinada pessoa não mereça um tratamento cidadão. Nunca em toda a história nenhum cidadão bem situado economicamente foi morto”, afirmou.
Proibição de socorro pela PM
No depoimento, Barcellos também lembrou portaria estadual de janeiro de 2013, do então secretário de Segurança Pública de São Paulo, Fernando Grella Vieira, que proibia a Polícia Militar de prestar socorro a vítimas de crimes ou de confrontos com a própria polícia, os chamados autos de resistência (resistência seguida de morte). A medida reduziu as mortes nesses casos em 38%, mas depois que Grella foi demitido, em dezembro de 2014, as mortes voltaram a subir. “Boa parte da sociedade apoia a ação violenta da polícia. Há quem ache que isso é legítimo”, disse Barcellos. “Por que só os pobres precisam ser executados?”, indagou.
O jornalista também criticou a ação da mídia, principalmente dos programas policiais, que acabam legitimando a matança pela PM. “Tem jornalistas que multiplicam o ódio, exigem que a polícia vá lá e mate.” E continuou: “Preocupa a existência de tanta gente com sua filosofia de barbárie. Eu acho que essa cultura da violência está profundamente incorporada ao cidadão brasileiro”.
Barcellos também destacou que entre as mortes por violência, os criminosos respondem por 5%, a Polícia, por 20%, e o restante (75%) é cometido por cidadãos comuns. “Há quem mate porque o seu carro foi arranhado; a pessoa compra uma arma para se defender de delinquentes, é o cidadão de bem”, afirmou, ao destacar que a violência é profundamente arraigada na sociedade brasileira.
Vala de Perus
A Comissão da Verdade da capital paulista é presidida por Tereza Lajolo (ex- vereadora e professora, atuou na Secretaria Municipal de Transportes na gestão de Luiza Erundina, 1989-1992). Além dela e Audálio Dantas, integram a comissão o ex-deputado estadual Adriano Diogo, o advogado Fermino Fecchio, que foi ouvidor da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, e o jornalista Camilo Vannuchi.
Adriano Diogo elogiou a participação de Caco Barcellos e lamentou que muitas perguntas ainda permanecem sem respostas. “Nós, aqui da comissão, temos uma ênfase total em cima da vala, porque ela não foi uma falha geológica, que um dia caiu um raio lá e abriu e 1.500 ossadas foram enterradas lá. Claro que não. A vala foi feita por alguém da prefeitura à época, um prefeito mandou, um diretor do serviço funerário, enfim, muita gente participou, e as perguntas não foram respondidas até hoje”, afirmou.
O cemitério Dom Bosco, em Perus, foi construído pela prefeitura, em 1971, na gestão de Paulo Maluf e, no início, recebia cadáveres de pessoas não identificadas, indigentes e vítimas da repressão política. Fazia parte de seu projeto original a implementação de um crematório, o que causou estranheza e suspeitas até da empreiteira chamada para construí-lo. Este projeto de cremação dos cadáveres de indigentes, do qual só se tem notícia através da memória dos sepultadores, foi abandonado em 1976. As ossadas exumadas em 1975 foram amontoadas no velório do cemitério e, em 1976, enterradas em vala clandestina. Descobertas em setembro de 1990, atualmente encontram-se sob a guarda do Ministério Público Federal em São Paulo.
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