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segunda-feira, 2 de maio de 2011

Em que cremos? Redescubramos a ética.

"A confusão entre aquilo que podemos crer, esperar e amar e aquilo que temos de considerar verdadeiro hoje nos paralisa", afirma Giorgio Agamben, em entrevista concedida a Franco Marcoaldi e publicada pelo jornal La Repubblica, 08-02-2011.
A tradução é do Prof. Selvino J. Assmann, professor da UFSC.
Em que acreditamos? Quais são as crenças civis, religiosas, políticas, científicas, nas quais se baseia a sociedade?
A resposta torna-se especialmente difícil num mundo como o nosso, que vê as crenças tradicionais – objeto de uma constante erosão – transformarem-se em substitutivos, tendo como conseqüência a expansão das mais diferentes formas de superstição.Ou então, pelo contrário, vemos o triunfo de um ceticismo e de uma indiferença  que roçam o niilismo. Pretendemos tratar a questão “crer,crença”, enfrentando-a sob diversos pontos de vista. E começaremos pedindo a ajuda de um filósofo italiano de fama internacional, Giorgio Agamben.
Eis a entrevista.
Em que acreditamos? Quais são as crenças civis, religiosas, políticas, científicas, nas quais se baseia a sociedade?
Em nossa cultura existem dois modelos de experiência da palavra. O primeiro modelo é de tipo assertivo: dois mais dois são quatro; Cristo ressurgiu no terceiro dia; os corpos caem segundo a lei da gravidade. Este  gênero de proposições é caracterizado pelo fato de remeter sempre a um valor objetivo de verdade, à dupla verdadeiro-falso. E é possível submeter tais proposições à verificação graças a uma adequação entre palavras e fatos, enquanto o sujeito que as profere é indiferente ao êxito. Existe, porém, outro, imenso âmbito de palavra, do que parece que nos esquecemos, e que remete, usando a intuição de Foucault, à idéia de "veridição” (veridizione). Neste caso, vigoram outros critérios, que não respondem à seca separação entre o verdadeiro e o falso. Aí, o sujeito que pronuncia uma determinada palavra põe-se em jogo naquilo que ele diz. Melhor ainda, o valor de verdade é inseparável  do seu envolvimento pessoal.
O sentido profundo do crer deveria, por isso, ser procurado precisamente aqui?
Certamente. Embora, no decurso do tempo, o triunfo do primeiro modelo, aquele assertivo, tenha de fato cancelado o segundo. Fazem-me sorrir os confrontos, muito em voga hoje, entre crentes e não crentes; são verdadeiros diálogos entre surdos, tendo em conta que padres e cientistas compartilham, em vertentes opostas, o mesmo modelo de verdade. Pouco importa se discutimos leis físicas ou teológicas, que naturalmente se anulam entre si. Trata-se de toda forma de proposições assertivas. A confusão entre aquilo que podemos crer, esperar e amar e aquilo que temos de considerar verdadeiro hoje nos paralisa.
Quando teria sido cancelado o segundo tipo de experiência com a palavra?
Na tradição do Ocidente, foi Aristóteles quem afirmou que a filosofia deve ocupar-se apenas com as proposições que podem resultar verdadeiras ou falsas. Mesmo assim, existe outra experiência da palavra: a da promessa, da oração, do mando, da invocação, que foi excluída da reflexão filosófica. Naturalmente, isso não significa que ela não tenha continuado a agir: o direito e a religião fundamentam-se nela.
Um exemplo?
O mais importante de todos: São Paulo, que ao definir a palavra de fé, não faz referência a critérios de verdade, mas fala da proximidade entre coração e lábios. É significativo que, com uma só exceção, ele use sempre a expressão, inventada por ele, “crer em Jesus Cristo”, e não, como seria normal em grego, crer que Jesus  é o filho unigênito de Deus, etc. A diferença é substancial. A Igreja, através de seus concílios, procurou fixar a fé em dogmas, numa experiência do tipo assertivo. E assim se perdeu um traço fundamental da natureza humana, que exige um fé estranha a uma lógica puramente fatual. A verdadeira fé não adere a um princípio preestabelecido e é singular que tenha sido precisamente a Igreja, que deveria preservar esta idéia, que se tenha esquecido disso. Daí que se tem a fórmula “Creio porque é absurdo”.
Quais são os reflexos negativos desta lógica assertiva sobre a nossa vida social?
Infinitos. Pensemos na ética: afirmamos que para agir precisamos dispor de um sistema de crenças prefixado.Portanto, agiria bem apenas quem tem uma série de princípios com que se deve conformar. É o modelo kantiano, ainda dominante, que define a ética como dever de obedecer a uma lei. Quando eu trabalhava sobre a idéia de “testemunha”, me incomodou a história de uma jovem que, submetida à tortura da Gestapo, havia se  recusado a revelar o nome dos seus companheiros. A quem mais tarde lhe perguntou em nome de que princípios ela havia conseguido fazê-lo, respondeu apenas isso: “o fiz porque me agradava que fosse assim”. A ética não significa obedecer a um dever; significa pôr-se em jogo, com aquilo que se pensa, se diz e se crê.
Mesmo porque, derrubada a crença na infalibilidade  desta determinada lei, sobre um campo de ruínas...
Mais cedo ou mais tarde acontece com todas as crenças de tipo objetivo. Aliás, as crenças políticas literalmente se esmigalharam, enquanto as teológico-religiosas se fossilizaram em dogmas contrapostos. No que diz respeito às (crenças) científicas, elas acabaram completamente sem relação alguma com a vida ética de cada indivíduo.
Em Crer e não crer, Nicola Chiaromonti faz uma pergunta bem seca: podemos crer sozinhos?
É uma pergunta pertinente, que eu reformularia da seguinte maneira: como é possível compartilhar uma verdade ou uma fé que não sejam do tipo assertivo? Penso que isso acontece nos territórios da existência em que nos colocamos em jogo pessoalmente. Se a veridição for deixada às margens e o único modelo da verdade e da fé forem a ciência e o dogma, a vida se torna invivível. Daí nasce  a indiferença  e o ceticismo generalizado, além da tetricidade social que se expande. Só andando na contracorrente, buscando aquela diversa experiência de palavra, pode-se voltar à relação originária com a verdade, irredutível a qualquer institucionalização da mesma.
Dou um exemplo: a ciência olha para a passagem  do primata para o homem falante unicamente em termos cognitivos, como se fosse apenas uma questão de inteligência  e de volume cerebral. Mas não há só este aspecto. A transformação  deve ter sido também tão gigantesca do ponto de vista ético, político, sensível. O homem não é só homo sapiens.É um animal que, à diferença dos outros seres vivos, que não parecem dar importância à própria linguagem, tomou a decisão  de correr, até o fundo, o risco da palavra. E daí nasceu o conhecimento, mas também a promessa, a fé, o amor, que ultrapassam a dimensão puramente cognitiva.
É um caminho ainda aberto?
O homem ainda não terminou de se tornar humano; a antropogênese  está sempre em curso. Menandro escreveu: “como é gracioso  - ou seja, capaz de gratuidade – o homem quando é verdadeiramente humano”. É tal gratuidade que devemos redescobrir. Ainda mais que os modelos de crença que nos são propostos já não nos convencem. São, como dizia Chiaromenti, mantidos à força, na má-fé.
Tentemos, então, enfocar o elenco destas crenças  mais genuínas, mesmo que sejam subterrâneas, submersas.
Tomemos a política. Por que ela, ao final das contas, não interroga a vida das pessoas?  Não a vida biológica, a vida nua, que hoje está permanentemente em questão nos debates muitas vezes vãos sobre a bioética, mas as diferentes formas de vida, o modo em que cada um de nós se vincula a um uso, a um gesto, a uma prática. Além disso, por que a arte, a poesia, a literatura vêm sendo museificadas  e relegadas a um mundo a parte, como se fossem política e existencialmente irrelevantes?
Também o escritor russo Alexandr Herzen lamentava a seu modo o cancelamento  da experiência vital subjetiva, afirmando que cremos em tudo, menos que em nós mesmos.
Vivemos em sociedades habitadas por um eu hipertrófico, gigantesco, no qual, porém, ninguém, tomado singularmente, pode reconhecer-se. Seria bom voltarmos ao último Foucault, quando ele refletia sobre o “cuidado de si”, sobre a “prática de si”. É muito raro encontrarmos hoje pessoas que experimentem aquela que Benjamin chamava a droga que tomamos na solidão: o encontro conosco mesmos, com as próprias esperanças, as próprias recordações e os próprios esquecimentos. Naqueles momentos assistimos a uma espécie de despedida do eu, acessamos a uma forma de experiência que é exatamente o contrário do solipsismo. Sim, penso que poderíamos partir exatamente daqui para repensarmos uma idéia diversa do crer: formas de vida, prática de si, intimidades.  Estas são as palavras-chave de uma nova política.

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