Por Antonio Pessoa Cardoso
A primeira Constituição brasileira, de 1824, era imprecisa no conceito de cidadania, frequentemente, usado como sinônimo de nacionalidade; apesar de consagrar a igualdade, não tratou de extinguir a escravidão, mas, pelo contrário, criou a figura do cidadão proprietário não se enumerou os direitos sociais. A Constituição Republicana, 1891, manteve alguns conceitos da lei anterior; as duas mostraram-se fortemente influenciadas pelo individualismo liberal-conservador. Consignavam direitos civis, mas restringiam o exercício de direitos políticos e sociais que só foram reconhecidos pela Constituição de 1934.
A Constituição de 1988, denominada de Constituição Cidadã, ampliou significativamente os direitos fundamentais do cidadão, e logo no artigo 1º, considera a cidadania como um dos fundamentos do “Estado Democrático de Direito”. A diferença fundamental entre as primeiras Constituições e a atual reside no avanço consagrado à cidadania; só que esse crescimento aconteceu mais no papel do que na prática e na vida das pessoas. Houve nítido progresso dos direitos individuais, enumerados na lei, mas não se concedeu ao cidadão os meios indispensáveis para o efetivo exercício de tais direitos. Ainda falta muito para a perfeita convivência dos preceitos constitucionais no dia a dia do cidadão. A simples previsão legal, sem investir no cidadão os recursos necessários para a obtenção de espaço na sociedade em que vive, aponta contradição infamante entre o que está escrito e o que efetivamente é concreto.
Cidadania, palavra derivada de cidade, não é conceituada somente pela condição de quem habita a cidade, mas, reflete o exercício do direito político, conferido ao cidadão na vida política e social, como, aliás, se entendia na Roma antiga. O significado dessa palavra não é estanque, mas passa por continuada alteração, no processo histórico de um povo, em sua luta de transformações.
Em resumo, cidadania é o direito que todos nós temos de viver decentemente.
A cidadania é sustentável quando surge de baixo para cima, ou seja, por meio de iniciativas do próprio povo, como ocorreu na Inglaterra, com a Revolução de 1688, nos Estados Unidos com a guerra civil, em 1776, e na França, com a Revolução Francesa de 1789, para ficar só nesses exemplos de manifestações populares, responsáveis pelas conquistas de direitos.
No Brasil, a Independência foi fruto de divergências do governo com a Corte portuguesa; a proclamação da República originou-se dos quartéis que buscavam retirar o poder do imperador; a abolição da escravatura deveu-se menos à conquista do povo e muito mais às concessões governamentais até a Lei Áurea. Só recentemente e, em poucos movimentos sociais, pode-se visualizar participação do povo nas conquistas políticas; isto ocorreu, por exemplo, com o movimento das diretas já.
Sem a cidadania, o povo torna-se dependente exacerbado do Estado benfeitor, que coloca o cidadão como objeto do processo democrático e não como sujeito das modificações que necessitam serem feitas nas relações político-sociais. A busca dos direitos individuais encontra resposta somente quando se conquista o direito de consumir. Esta situação, como já se disse alhures, mostra um cidadão imperfeito, mas um consumidor mais que perfeito. É que o mundo capitalista tornou o consumo peça fundamental e diferenciadora do valor do homem no meio em que vive.
A construção da cidadania se dá por meio da conquista dos direitos civis e políticos, pela integração ao governo, pela participação política na sociedade. Ainda imaginamos que a exigência daquilo que nos é conferido como direito individual constitui privilégio. Perdemos o poder da indignação e deparamos, em todo momento, com o desrespeito, pelos próprios governantes, ao direito individual nosso ou de terceiro.
A instituição de um programa social, “bolsa família” ou “luz para todos”, por exemplo, são fatos explorados como se fossem frutos de favores dos governantes; não percebemos que tais benefícios constituem retorno dos impostos que pagamos.
Mas as dificuldades para as conquistas sociais do povo brasileiro prosseguem com a injusta distribuição de renda, o direito de propriedade, o desemprego, a precariedade dos serviços essenciais como a justiça, a saúde, a educação e a segurança.
O Judiciário não presta bons serviços ao jurisdicionado e aqui não se discute sobre a quem se deve atribuir a culpa, se falta de estrutura do sistema ou se inoperosidade dos magistrados, se falta de gestão ou descaso dos governantes. O certo é que não existe polêmica na afirmação de que o devedor, o Estado infrator, o bandido, o corrupto são premiados pelo sistema, pois quem é credor, quem cumpre suas obrigações de cidadão, quem é honesto deve contratar advogado, passar por muitos aborrecimentos, perder muito tempo e esperar a decisão judicial que atrasa e, por vezes, mostra-se injusta. Ainda assim, mesmo que seja vitorioso na demanda, pode ter uma vitória de Pirro, ou seja, ganha, mas não leva.
A conclusão é de que o acesso à Justiça é difícil, porque, além de tudo, falta ao cidadão comum até mesmo ciência dos direitos que têm e não lhe conferem os meios para exercê-los.
A verdade é que os serviços judiciais prestam-se mais para amparar o Estado do que para proteger o cidadão, mais para animar o esperto do que para recompor o direito do injustiçado.
Veja-se o que ocorre com o sistema carcerário. Talvez a situação seja pior do que os serviços judiciários propriamente ditos. As penitenciárias, as cadeias, as delegacias constituem antros de perdição e de aperfeiçoamento no mundo do crime sem influência alguma para a recuperação do condenado; o sistema não respeita as normas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.
É frequente a morte de presos nas cadeias e a responsabilidade, evidentemente, é do Estado. Mas, este fato, torna-se preocupante para o cidadão, porque mostra o quanto se está exposto com a falta de segurança para os bandidos presos e vigiados, como se pode esperar tranquilidade nas ruas e nas residências. É confissão do descalabro e do mau uso do dinheiro público.
O deputado federal Domingos Dutra, relator da CPI do Sistema Carcerário declarou que “grande parte dos presídios visitados não servem nem para bichos”. Os presos são amontoados em pequenas celas que recebem até 30 homens; já se mostrou presos em jaulas, praticamente abandonados.
O CNJ concluiu que “as condições degradantes do sistema penitenciário e de internação de adolescentes em conflito com a lei no Brasil podem ser consideradas exemplos de violação dos direitos humanos”.
A saúde do cidadão só recebeu garantia constitucional a partir de 1988, quando a Constituição Federal (artigo 5º), inseriu o direito à vida e como corolário, apontou a saúde como “direito de todos e dever do Estado” (artigo 196). Esse se torna um dos principais direitos do cidadão, porque preserva a vida e a dignidade da pessoa humana. Para sua concretização, entretanto, há necessidade de atuação positiva do Estado. Ao invés, percebe-se em todos os hospitais federais, estaduais e municipais atendimento médico precário, e só resta ao cidadão a alternativa de buscar planos de medicina de grupo ou seguro saúde. Esses meios, entretanto, submetem os contratados a exigências abusivas, como as cláusulas de restrição ao atendimento médico hospitalar, além de valores sempre crescentes.
São constantes as omissões ou mesmo as deficiências do Estado na garantia da vida, portanto, da saúde do cidadão, provocando o chamamento do Judiciário para forçá-lo a cumprir os preceitos constitucionais. Não deixa de ser a judicialização da saúde, mas torna-se indispensável diante da falta de efetividade estatal no cumprimento de tão importante obrigação legal. Por outro lado, os magistrados, apesar de todos os obstáculos, têm-se mostrado eficientes neste particular, porque tem atendido, com presteza, ao cidadão que reclama tratamento médico, exames, cirurgias, internamentos, medicamentos, enfim necessidades para preservação de sua vida.
A despeito disto, o cidadão brasileiro paga altos impostos e não recebe a contrapartida de benefícios nos setores essenciais da vida.
Há, assim, extremo descompasso entre os textos legislativos e o efetivo exercício dos direitos enumerados na Constituição.
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