Para o analista Juan Carlos Monedero, ex-conselheiro do presidente Hugo Chávez, a salvação do planeta ou virá da América Latina, ou não virá de lugar algum. "A Europa está exausta, a China não quer, os Estados Unidos tampouco e a África não pode. A América Latina é o continente que sofreu o problema neoliberal e conseguiu superá-lo. É o continente que tem a memória do que é o modelo neoliberal e, além disso, tem a memória dos povos originários que lembram a necessidade de respeitar a Pacha Mama". A reportagem é de Eduardo Febbro, direto de Caracas.
Eduardo Febbro - Direto de Caracas
Caracas - O primeiro grande debate aberto da 18ª edição do Foro de São Paulo teve como tema os governos progressistas e de esquerda. No curso das amplas discussões ficou refletida a preocupação de muitos delegados pela estabilidade desses governos e pelo modo de desenvolvimento que oferecem ou podem oferecer frente à hostilidade dos modelos liberais. Do Panamá e da Palestina, passando por Honduras, Venezuela, Uruguai, Porto Rico, Brasil ou México, os participantes mostraram grande preocupação com a forma pela qual os progressistas podem implementar suas políticas sem se expor à decapitação liberal. Um delegado da Palestina afirmou com visível temor que, por onde quer que se vá, “o liberalismo bloqueia os caminhos mundiais ou nacionais”.
O outro grande tema consistiu em encontrar uma resposta a essa grande incógnita que consiste em saber em que fase de sua história se encontra o modelo liberal levando em conta todas as crises que o atingiram nos últimos anos. Aqueles que chegaram a considerá-lo como agonizante ou morto reconhecem que não é assim, mas tampouco encontram no horizonte um modelo para retratar o estado atual. Conversamos em Carcas com o analista Juan Carlos Monedero, ex-conselheiro do presidente Hugo Chávez e lúcido pensador dos pleitos que a esquerda deve fazer nestes tempos de dúvidas.
Os participantes deste Foro, ao mesmo tempo em que celebram a existência de governos progressistas, perguntam-se o que fazer frente ao modelo ultraliberal que segue em pé apesar das hecatombes que provocou e que o afetaram.
Há milhares de teses sobre este modelo capitalista que não serviu nem para prever a crise nem para resolvê-la. A esquerda tem um terrível problema de reflexão. Nos cansamos de repetir que uma ação sem teoria é cega e que uma teoria sem ação é vazia. Há problemas para os quais não temos resposta. Por exemplo, quais são as relações entre os movimentos sociais e os governos: como atua um governo que pode ter acesso aos aparatos do Estado sem que isso signifique tenha realmente o poder?
Como se relaciona o Estado herdado com o Estado em construção? Qual é o novo sujeito de transformação? O que ocorre quando a classe operária segue existindo, mas já não se deixa representar? Creio que a esquerda pode encontrar respostas a estas perguntas em foros deste tipo. O grande desafio da esquerda é ver como se traduzem as diferentes lutas pela emancipação para encontrar um fio que as unifique.
Há anos que a esquerda tem uma grande capacidade análise, uma extrema lucidez em seu diagnóstico. No entanto, inclusive em um dos piores momentos do liberalismo, a esquerda não consegue plasmar uma ação de impacto global. Por quê?
A esquerda sempre mobilizou com sonhos. Os grandes lemas de mudança social da esquerda que tanto emocionaram a população são um pouco vagos: terra e liberdade, pão e trabalho, socialismo ou morte, etc. Essas ideias são elementos amplos, mas não chegam a se concretizar. Por paradoxal que pareça, hoje em dia os únicos que são politicamente incorretos são os atores da direita: Berlusconi na Itália, Sarah Palin nos Estados Unidos, Esperanza Aguirre na Espanha, etc. São sujeitos capazes de apelar às emoções. Por isso, quando o capitalismo está em crise, a saída mais fácil que encontra é a fascista. E isso se deve ao fato de que a esquerda não consegue entender que tem que ser capaz de unir a emoção e a gestão. A esquerda precisa renovar as emoções e terminar de concretizar as alternativas. Vivemos em um mundo de transição onde o velho não termina de ir embora e o novo ainda não acabou de chegar.
Precisamos fazer teoria não na base daquilo que queremos, mas sim do que não queremos. Isso representa uma vantagem teórica. Os modelos tradicionais se romperam: a União Soviética afundou, o mundo do trabalho se transformou, os Estados nacionais mudaram e as ideologias se diluíram. Os marcadores de certeza se tornaram líquidos e por isso temos dificuldade para concretizar outras coisas em uma alternativa que tomará forma na medida em que for sendo construída. Considero importante teorizar sobre uma esquerda flexível que vá construindo o grande mosaico daquilo que desejamos com base naquilo que não queremos.
Estamos então em uma crise de modelos onde as novas ondas não chegam a arrastar o mundo de antes.
Estamos em uma encruzilhada teórica onde os velhos elementos já não valem, não valem os velhos partidos políticos, não vale o modelo de assalto ao poder nem muito menos o modelo de gestão humanista de um capitalismo em crise como faz a social democracia. Como diria Marx, é um momento para regressar à biblioteca e tentar aportar modelos que orientem.
Mas todas estas buscas que você expõe não afastam o poder uma oligarquia disposta a tudo para ser manter. O sistema não acabou. Por acaso hoje o liberalismo é mais frágil ou se reforçou com a crise? O que seria uma autêntica estratégia da esquerda para um momento como este?
Ludovico Silva dizia que se os louros fossem marxistas seriam marxistas ortodoxos. Eu diria: nem Marx, nem menos. Marx nos dá muita luz, mas é preciso lê-lo com a luz atual. Não sabemos se a crise do capitalismo será a última. Uma filosofia da história tem o problema de pretender que o futuro está escrito, o que não real. A esquerda não conseguiu ver bem a enorme capacidade de adaptação do sistema capitalista. Sabemos que cada vez que há uma crise, o leque de respostas do sistema se estreita. O capitalismo saiu da última grande crise dos anos 70 com a exploração da natureza, com a exploração dos países do Sul e das gerações futuras mediante o déficit. Esses três elementos se esgotaram.
O que sabemos hoje é que as respostas do sistema se estreitam. O sistema global teve que regressar à origem e exacerbar a exploração dentro de casa. Também sabemos que, segundo as cifras mais otimistas, há 75 vezes mais dinheiro que riqueza. E essa mentira funciona enquanto o capital financeiro decida seguir na trilha da mentira. Enquanto diz “nós paramos”, isso é mentira e a situação continua a mesma. Isso é o que está acontecendo. O sistema financeiro se deu conta de que a brecha entre o dinheiro e a riqueza é tão grande que não poderá pagar.
Daí, insisto, a importância deste Foro e da América Latina. Não me canso de repetir que a salvação do planeta ou vem da América Latina, ou não vem de nenhum lugar. A Europa está exausta, a China não quer, os Estados Unidos tampouco e a África não pode. A América Latina é o continente que sofreu o problema neoliberal e conseguiu superá-lo. É o continente que tem a memória do que é o modelo neoliberal e, além disso, tem a memória dos povos originários que lembram a necessidade de respeitar a Pacha Mama. Essa conjunção de memória ancestral e de memória de curto prazo do modelo neoliberal situa a América Latina como um lugar central para encontrar as alternativas.
Nos debates do Foro temos visto uma grande preocupação das pessoas pelo futuro da governabilidade dos governos progressistas. Há uma mescla de medo e ansiedade.
O problema reside em que os governos atuais de mudança têm que administrar o aparato estatal herdado e as pressões atuais. Aí há um conflito porque os movimentos sociais que apoiaram na América Latina os governos da transformação, frequentemente reclamavam também uma parte desse modelo passado. Quem se encarrega então das novas demandas? Do que se trata? Reativar um modelo de consumo que as pessoas consideram perdido, ou reconstruir a realidade?
Os problemas atuais de Evo Morales, Correa, Cristina Fernández de Kirchner respondem a esses problemas mal resolvidos entre a gestão do passado, a gestão do presente e a do futuro. Creio que seria um erro apoiar-se em um movimento social para oferecer-lhe somente o que o modelo anterior deixou de prometer-lhe. Assim estaria se construindo o que fez Margaret Thatcher. Satisfazer as bases da demanda social sem educar com os novos valores da alternativa que queremos construir pode repetir aqui o que ocorreu na Europa: a esquerda construiu a sociedade das classes médias, mas depois essas classes médias chutaram a escada para que os que viessem atrás não tivessem mais oportunidades. Essas classes médias se converteram em novos proprietários sem ideologia. Por isso é essencial um trabalho de tradução entre os diferentes sujeitos que portam a emancipação.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
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