Muita controvérsia há tanto na doutrina quanto na jurisprudência acerca da existência ou não do princípio do promotor natural. O imbróglio em parte se deve a uma ementa do Supremo Tribunal Federal redigida no ano de 1992, onde não fora reconhecido tal princípio, porém constou na mesma o voto vencido do ministro Celso de Mello, afirmando a existência do postulado em comento.
Assim, visando esclarecer alguns aspectos ao leitor, trago algumas considerações acerca do princípio do promotor natural.
Referido princípio consiste na garantia de todo cidadão ser acusado por um órgão independente do estado, vedando-se, por consequência, a designação, inclusive, de promotores ad hoc.
Uadi Bulos1 aduz que o princípio do promotor natural “estabelece que a lei que deve estabelecer, previamente, as atribuições do Ministério Público. Não são mais admissíveis os cargos genéricos; todos eles devem ser fixos, com a esfera de competência prevista na legislação. Busca-se, assim, propiciar ao acusado o direito de ter o seu caso examinado por um órgão livre e independente, à luz da legalidade. Disso deflui o objetivo do promotor natural: abolir os procedimentos de ofício, eliminando a acusação privada e extirpando o acusador público de encomenda, escolhido pelo procurador-geral de justiça.”
Neste norte, o princípio em tela veda que em caso certos e determinados sejam nomeados promotores de Justiça ou procuradores da República casuisticamente, sem qualquer amparo constitucional ou legal.
“A doutrina do promotor natural, portanto, sobretudo no que respeita ao aspecto da vedação do promotor de exceção, fundamenta-se no princípio da independência funcional e da inamovibilidade (funcional) dos membros do Ministério Público, exatamente para que a instituição não se reduza ao comando e às determinações de um único órgão da hierarquia administrativa, impondo-se, por isso mesmo, como garantia individual. É nesse ponto, precisamente, que o aludido princípio vai encontrar maior afinidade com o juiz natural. Este, orientado também para a exigência do juiz materialmente competente, além da vedação do tribunal ou juiz de exceção, constitui garantia fundamental de um julgamento pautado na imparcialidade".
No âmbito do Supremo Tribunal Federal a questão não está pacificada. Com efeito, conforme anteriormente mencionado, no HC 67.759, de relatoria do Ministro Celso de Mello, que foi voto vencido naquela oportunidade, julgado em 1992, restou estabelecida a inexistência do princípio do promotor natural, in verbis:
“"HABEAS CORPUS" - MINISTÉRIO PÚBLICO - SUA DESTINAÇÃO CONSTITUCIONAL - PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS - A QUESTÃO DO PROMOTOR NATURAL EM FACE DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 - ALEGADO EXCESSO NO EXERCÍCIO DO PODER DE DENUNCIAR - INOCORRENCIA - CONSTRANGIMENTO INJUSTO NÃO CARACTERIZADO - PEDIDO INDEFERIDO. - O postulado do Promotor Natural, que se revela imanente ao sistema constitucional brasileiro, repele, a partir da vedação de designações casuísticas efetuadas pela Chefia da Instituição, a figura do acusador de exceção. Esse princípio consagra uma garantia de ordem jurídica, destinada tanto a proteger o membro do Ministério Público, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente do seu oficio, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o Promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados, estabelecidos em lei. A matriz constitucional desse princípio assenta-se nas clausulas da independência funcional e da inamovibilidade dos membros da Instituição. O postulado do Promotor Natural limita, por isso mesmo, o poder do Procurador-Geral que, embora expressão visível da unidade institucional, não deve exercer a Chefia do Ministério Público de modo hegemônico e incontrastável. Posição dos Ministros CELSO DE MELLO (Relator), SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO. Divergência, apenas, quanto a aplicabilidade imediata do princípio do Promotor Natural: necessidade da "interpositio legislatoris" para efeito de atuação do princípio (Ministro CELSO DE MELLO); incidência do postulado, independentemente de intermediação legislativa (Ministros SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO). - Reconhecimento da possibilidade de instituição do princípio do Promotor Natural mediante lei (Ministro SYDNEY SANCHES). - Posição de expressa rejeição a existência desse princípio consignada nos votos dos Ministros PAULO BROSSARD, OCTAVIO GALLOTTI, NÉRI DA SILVEIRA e MOREIRA ALVES.(HC 67759, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 06/08/1992, DJ 01-07-1993 PP-13142 EMENT VOL-01710-01 PP-00121).”
Assim, nesta assenta, embora ausentes os Ministros Francisco Rezek e Ilmar Galvão, o STF concluiu-se pela inexistência da figura do promotor natural, decisão essa que fora referendada na apreciação do HC 90.277, de relatoria da ministra Ellen Gracie, publicada em agosto de 2008, vejamos:
(...) 3. O STF não reconhece o postulado do promotor natural como inerente ao direito brasileiro (HC 67.759, Pleno, DJ 01.07.1993): "Posição dos Ministros CELSO DE MELLO (Relator), SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO: Divergência, apenas, quanto à aplicabilidade imediata do princípio do Promotor Natural: necessidade de "interpositio legislatoris" para efeito de atuação do princípio (Ministro CELSO DE MELLO); incidência do postulado, independentemente de intermediação legislativa (Ministros SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO). - Reconhecimento da possibilidade de instituição de princípio do Promotor Natural mediante lei (Ministro SIDNEY SANCHES). - Posição de expressa rejeição à existência desse princípio consignada nos votos dos Ministros PAULO BROSSARD, OCTAVIO GALLOTTI, NÉRI DA SILVEIRA e MOREIRA ALVES". 4. Tal orientação foi mais recentemente confirmada no HC n° 84.468/ES (rel. Min. Cezar Peluso, 1ª Turma, DJ 20.02.2006). Não há que se cogitar da existência do princípio do promotor natural no ordenamento jurídico brasileiro(...). HC 90277, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 17/06/2008, DJe-142 DIVULG 31-07-2008 PUBLIC 01-08-2008 EMENT VOL-02326-03 PP-00487)".
Ocorre que recentemente o ilustre Ministro Celso de Mello, no HC 102.147/GO, publicado em 3 de fevereiro de 2011, reconheceu sua existência, veja trecho do voto do julgador:
“A consagração constitucional do princípio do Promotor Natural significou o banimento de “manipulações casuísticas ou designações seletivas efetuadas pela Chefia da Instituição” (HC 71.429/SC, Rel. Min. CELSO DE MELLO), em ordem a fazer suprimir, de vez, a figura esdrúxula do “acusador de exceção” (HC 67.759/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO). O legislador constituinte, ao proceder ao fortalecimento institucional do Ministério Público, buscou alcançar duplo objetivo: (a) instituir, em favor de qualquer pessoa, a garantia de não sofrer arbitrária persecução penal instaurada por membro do Ministério Público designado “ad hoc” e (b) tornar mais intensas as prerrogativas de independência funcional e de inamovibilidade dos integrantes do “Parquet”. A garantia da independência funcional, viabilizada, dentre outras, pela prerrogativa da inamovibilidade, reveste-se de caráter tutelar. É de ordem institucional (CF, art. 127, § 1º) e, nesse plano, acentua a posição autônoma do Ministério Público em face dos Poderes da República, com os quais não mantém vínculo qualquer de subordinação hierárquico-administrativa. Daí a precisa observação, quanto a tal aspecto, de JOSÉ FREDERICO MARQUES (“A Reforma do Poder Judiciário”, vol. I/175, 1979, Saraiva): “O Ministério Público é funcionalmente independente, porquanto, apesar de órgão da administração pública, não é ele instrumento à mercê do governo e do Poder Executivo. (...). Independente é, também, o Ministério Público, da magistratura judiciária, que, sobre ele, nenhum poder disciplinar exerce. Entre o juiz e o promotor de justiça, existem relações de ordem processual tão-somente. Não cabe ao magistrado judicial dar ordens ao Ministério Público, no plano disciplinar e da jurisdição censória (...).” (grifei) A existência, em um mesmo processo, de opiniões ou pronunciamentos eventualmente conflitantes emanados de membros do Ministério Público que hajam oficiado, na causa, em momentos sucessivos, não traduz, só por si, ofensa ao postulado do Promotor Natural, pois a possibilidade desse dissídio opinativo há de ser analisada e compreendida em face dos princípios, igualmente constitucionais (CF, art. 127, § 1º), da unidade e da indivisibilidade do Ministério Público. Oportuna, a esse respeito, a lição de EMERSON GARCIA (“Ministério Público: Essência e limites da Independência Funcional”, “in” Ministério Público: Reflexões sobre Princípios e Funções Institucionais, p. 79/82, item n. 4, 2010, Atlas): “Como desdobramento da garantia da independência funcional, não há qualquer óbice a que determinado agente assuma posicionamento contrário àquele adotado pelo seu antecessor na mesma relação processual. (...) Por não ser possível à lei ordinária mitigar um princípio constitucional, o interesse processual do Ministério Público não se projetará em uma linha de indissolúvel uniformidade, podendo sofrer variações em conformidade com o entendimento jurídico dos agentes oficiantes. As concepções subjetivas dos agentes devem ser preteridas pela objetividade dos fatos, ainda que sua percepção possa sofrer variações no decorrer da relação processual. O Ministério Público está vinculado aos fatos e à busca de uma decisão justa, não à peremptória opinião pessoal de determinado agente. (...).” (grifei) De outro lado, não basta a mera alegação de designação “ad hoc” do membro do “Parquet”, como deduzida na presente impetração. Impõe-se, a quem sustente ofensa ao postulado do Promotor Natural, que demonstre a concreta ocorrência de “manipulações casuísticas ou designações seletivas efetuadas pela Chefia da Instituição”, tal como esta Corte já teve o ensejo de proclamar (HC 71.429/SC, Rel. Min. CELSO DE MELLO).”
Ainda, há outras decisões no âmbito do STF que reconhecem a existência do postulado do promotor natural, conforme se vê dos precedentes abaixo colecionados:
“Inquérito – Arquivamento implícito. A ordem jurídica em vigor não contempla o arquivamento implícito do inquérito, presentes sucessivas manifestações do Ministério Público visando a diligências. Promotor natural – Alcance. O princípio do promotor natural está ligado à persecução criminal, não alcançando inquérito, quando, então, ocorre o simples pleito de diligências para elucidar dados relativos à prática criminosa. A subscrição da denúncia pelo promotor da comarca e por promotores auxiliares não a torna, ante a subscrição destes últimos, à margem do Direito.” (RHC 93.247, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 18-3-2008, Primeira Turma, DJE de 2-5-2008.) Vide: RHC 95.141, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 6-10-2009, Primeira Turma, DJE de 23-10-2009.”
“Crime de homicídio qualificado. Alegação de violação ao princípio do promotor natural e de ausência de justa causa para o oferecimento da denúncia. Inexistência de constrangimento ilegal. Nenhuma afronta ao princípio do promotor natural há no pedido de arquivamento dos autos do inquérito policial por um promotor de justiça e na oferta da denúncia por outro, indicado pelo Procurador-Geral de Justiça, após o juízo local ter considerado improcedente o pedido de arquivamento.(...)” (HC 92.885, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 29-4-2008, Primeira Turma, DJE de 20-6-2008.)”
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça também resta consagrado há existência do referido princípio, dentre os precedentes cito o HC 57.506:
“(...) 4. Não prospera a alegada violação do princípio do promotor natural sustentada pelo impetrante, pois, conforme se extrai da regra do art. 5º, LIII, da Carta Magna, é vedado pelo ordenamento pátrio apenas a designação de um "acusador de exceção", nomeado mediante manipulações casuísticas e em desacordo com os critérios legais pertinentes, o que não se vislumbra na hipótese dos autos. (...) (HC 57.506/PA, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 15/12/2009, DJe 22/02/2010)".
Com efeito, em lapidar passagem Pacelli e Fischer3 aduzem que não se pode se negar a existência do princípio do promotor natural no ordenamento jurídico, pois “(...) não há como recusar: a) a atribuição constitucional de matéria penal a órgãos distinto da mesma instituição (Ministério Público Federal e Ministério Público Militar, por exemplo); b) a proibição de escolha pessoal de membros para determinadas causas. No primeiro caso, a atribuição constitucional de matéria penal parece inegável. Se o Ministério Público Federal ingressar no juízo militar da União, ele será parte ilegítima para a causa. Nesse sentido, por analogia que seja, haveria violação ao promotor natural da causa, que seria o Ministério Público Militar. Se o conceito de juiz natural abarca a matéria constitucional escolhida para cada jurisdição (crimes federais, crimes eleitorais, crimes estaduais, crimes militares), não vemos porque não aplicar o mesmo raciocínio ao Ministério Público. Daí, promotor natural.
E prosseguem os ilustres Procuradores Regionais da República:
“No segundo caso, a vedação do promotor de exceção se justificaria por várias razões. O princípio da inamovibilidade e da independência funcional, também. Ora, de que adiantaria garantir a inamovibilidade do membro do Ministério Público se fosse possível a retirada arbitrária de suas funções naquele local, repassando-as a outro? Também: de que adiantaria a independência funcional se o membro pudesse ser afastado de um processo para que prevalecesse outro entendimento dos órgãos hierarquicamente superiores?”
Com efeito, a mais abalizada doutrina constitucionalista brasileira capitaneada por Bernardo Gonçalves Fernandes4, afirma que o postulado do promotor natural deve ser reconhecido no nosso sistema, tendo em vista a nova posição conferida ao Ministério Pública pela Constituição da República de 1988, bem como pelo princípio da independência funcional e pelas garantias constitucionais conferidas pela Magna Carta ao parquet.
É mister ressaltar que a Resolução 38/1998, do Conselho Superior do Ministério Público Federal, que regulamenta o exercício da titularidade da ação penal, determina de forma expressa em seu artigo 2º o respeito ao princípio do promotor natural.
Como se observa, a tendência, tanto na jurisprudência, quanto na doutrina, é do reconhecimento do princípio do promotor natural como imanente do sistema constitucional pátrio, fortalecendo, dessa forma, as garantias fundamentais do cidadão e a idoneidade da persecução penal.
Referências bibliográficas
1 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Saraiva, 2010, págs. 669/670.
1 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. Saraiva, 2010, págs. 669/670.
2 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 12ª Ed. Lumens Júris. 2009, pág. 444.
3 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2010, págs. 495/496.
4 FERNADES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, pág. 852.
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