Foto: Luiz Nicolella
Por Gustavo Carvalho e Renata Sena
Na tarde do último dia 14 de junho, sob aquelas pedras e paus, arremessadas com muito ódio por um grupo de 10 pessoas na Rua Celso Queiroz, no Barro Vermelho, em São Gonçalo, além de um corpo disforme e coberto de sangue, havia uma história.
Quem estava estirado entre tijolos quebrados, telhas e paralelepípedos era o Kôka. Morador do Jardim Catarina, em São Gonçalo, o carpinteiro Francisco Sérgio Mendes Rocha, de 34 anos, ganhou o apelido dos amigos por causa das entradas acentuadas no cabelo, que durante a juventude já apontavam para calvície precoce. Caçula de seis irmãos - três homens e três mulheres - ele tirava as brincadeiras de letra e até gostava do apelido, garantem os colegas de juventude. Até aquele dia, em que alguém atirou a primeira pedra, a principal batalha de Kôka, segundo familiares, era contra a dependência química, que não o impedia de trabalhar e sustentar os dois filhos, de 4 e 6 anos, além do enteado, o “filho do coração”, de 16.
Meses atrás, Kôka havia buscado ajuda numa clínica de reabilitação em Cachoeiras de Macacu, onde ficou internado durante três meses. Sentindo-se preparado para largar as drogas, com o apoio da esposa, ele resolveu deixar a clínica e combinou com a família em mudar de bairro para fugir de algumas tentações e recomeçar a vida no bairro Santa Catarina. Para isso, alugou uma casa e a preparava para receber a mulher e os filhos. Entre os poucos serviços de carpintaria que surgiam, ele fazia ‘bico’ como ‘flanelinha’ no centro comercial da Rua Doutor Getúlio Vargas, próximo ao seu novo endereço. Nesses três meses, Kôka ligava todos os dias para a mulher e os filhos e contava sobre o seu progresso, ansioso por reunir de novo a família.
Ninguém ainda sabe ao certo o que aconteceu, mas os sonhos de Kôka acabaram e, viraram pesadelo para sua família, naquele final de tarde, quando ele foi perseguido por aproximadamente 1 km, por um grupo de cerca de 10 pessoas enfurecidas, que o acusavam de praticar pequenos furtos no bairro em que tentava reerguer sua vida. “Foram várias pessoas para fazer aquilo com meu irmão. Será que nenhuma delas pensou na hora em pedir para que parassem? Ele nunca chegou em casa com nada roubado. Sempre trabalhou muito. Mas, se fez algo, nada justifica uma barbaridade dessa. Vivemos hoje num mundo muito cruel”, desabafou uma das irmãs do carpinteiro, uma dona de casa, de 40 anos.
Tão bárbara quanto a morte de Kôka foi a forma como os familiares receberam a notícia. Poucos minutos após o episódio, as fotos de um homem desfigurado já circulavam nas redes sociais, acompanhadas de comentários que apoiavam a ação dos justiceiros. “Quem procura acha”, comentou um. “Foi roubar aqui na área e aí já era”, disse outro. E foi uma dessas imagens que foi parar no celular de um familiar da vítima. Coube à irmã mais nova de Kôka reconhecer o corpo no Instituto Médico Legal (IML) de Tribobó, mais de 36 horas após o crime.
“O rosto não parecia ser o do meu irmão. Ele estava muito machucado. Só consegui reconhecê-lo pelo restante do corpo”, recordou a dona de casa, em meio às lágrimas. Enquanto tenta entender o que aconteceu naquela tarde, a esposa de Kôka, ainda não sabe o que falar para o pequeno X., de 4 anos, que não para um minuto de perguntar quando o pai volta para casa.
“Fazer justiça pelas próprias mãos é tão odioso, primitivo e criminoso quanto o suposto delito praticado pela pessoa perseguida pelos justiceiros”, afirma o delegado Fábio Barucke, diretor da Divisão de Homicídios, que tem a missão de, ao menos amenizar a dor de X., e seu irmão, identificando e prendendo os criminosos.
Um país de justiçamentos diários
Essa não é a primeira ação de ‘justiceiros’ em bairros de São Gonçalo. Nos últimos meses, o município já foi palco desse tipo de barbárie por diversas vezes. No início do ano, um homem, que não teve o nome divulgado pela polícia, foi espancado e arrastado pelas calçadas da Rua Marcos Costa, no Jardim Catarina. Segundo testemunhas, a vítima tentou fugir dos seus algozes, que o alcançaram e o espancaram até a morte. Também no Jardim Catarina, em fevereiro de 2014, Magno Nogueira da Conceição teve as mãos e os pés amarrados por uma corda, e foi obrigado a desfilar assim por diversas ruas do bairro.
Assim como Kôka, Magno também foi acusado por populares de cometer pequenos furtos. Ele também foi condenado ao espancamento e morte como punição por seu suposto crime. No entanto, no meio dos vários espectadores que assistiam e incentivavam o show de horrores, alguém resolveu cessar a violência. Mesmo bastante ferido, ele foi liberado e conseguiu escapar da morte. Kôka não teve a mesma sorte. De acordo com uma pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), que estudou casos de linchamento no Brasil de 1980 a 2006, Kôka teve o mesmo fim que a maioria das vítimas de linchamentos. Ainda segundo o estudo, o Brasil é o país que mais pratica esse tipo de crime no mundo, registrando 2.579 casos durante o período analisado. Desses, somente 1.150 sobreviveram ao espancamento. O Rio aparece em segundo lugar no ranking nacional, com 204 ações de justiceiros.
O campeão é São Paulo, com 568 casos. O levantamento feito pelo sociólogo José de Souza Martins, professor da USP, virou livro ‘Linchamentos - A Justiça Popular no Brasil’, publicado em 2015. Para Martins, são vários os fatores que fomentam os linchamentos. “No geral, a indignação súbita por ato violento que alcance pessoa frágil, inocente ou indefesa é um dos motivos.
Mas a predisposição para linchar vem de uma consciência social e do senso comum de que as instituições não funcionam, a polícia demora e a Justiça é lenta e complacente. Na verdade, a população tem dificuldade para compreender os ritos próprios da Justiça formal, que não só faz justiça a uma vítima, mas evita injustiça contra um suposto agressor. Acusados devem ser investigados e julgados de acordo com a lei por um tribunal neutro e isso demora”, explica o sociólogo no livro.