Em entrevista à Carta Maior, o historiador israelense Meir Margalit analisa a iniciativa palestina em busca do reconhecimento de seu Estado na ONU e as consequências sobre a política israelense. Pacifista e militante do Meretz, pequeno partido da esquerda israelense, Margalit destaca que o presidente da Autoridade Palestina pôs Israel em apuros e fala sobre as contradições da sociedade israelense e a crise da esquerda em seu país.
Eduardo Febbro - Direto de Jerusalem
Restam muito poucos. É preciso buscá-los com insistência, mas eles estão ali, presentes, solidários, fiéis a si mesmos, dignos, ativos, militantes, apoiados no humanismo que sustenta sua tradição política e comprometidos com a ação: são os homens e mulheres que representam a esquerda israelense, aqueles que, em um momento em que a esquerda de Israel era tragada no redemoinho eleitoral, ganharam um mandato nas urnas. Meir Margalit é um deles. Legislador da Municipalidade de Jerusalém, secretário geral do movimento israelense contra a demolição de casas (palestinas), ICAHD, Margalit é um pacifista em um país armado, cuja calma e determinação força muros inacessíveis.
Historiador e homem político, nesta entrevista à Carta Maior, Margalit assegura que o presidente da Autoridade Palestina pôs Israel em apuros e destaca as contradições nas quais está mergulhada a sociedade israelense, reconhecendo a crise pela qual passa a esquerda de seu país.
Como você analisa o pedido de reconhecimento do Estado palestino que Mahmud Abbas formaliza ante a ONU. É um erro estratégico, um gesto desesperado ou apenas um mero gesto simbólico que não acrescenta nada?
Não, não, de modo algum é um fracasso de Abbas. Muito antes de o pedido de Mahmud Abbas chegar às Nações Unidas, os palestinos já tinham vencido. E ganharam porque é a primeira vez, desde muito tempo, que eles dão o rumo geopolítico da agenda e da região. É também a primeira vez que conseguem pôr Israel em apuros. Faz muito tempo que Israel não conhece uma situação semelhante. Os palestinos encurralaram Israel, obrigaram-no a explicar ao mundo por que se negam a reconhecer um país.
Os palestinos colocaram Israel em uma situação grotesca. Eu creio que, desde essa perspectiva, os palestinos ganharam. Israel está se desgastando progressivamente. Apesar do veto dos Estados Unidos ao reconhecimento do Estado palestino, quando há mais de 130 países que votam a favor da Palestina isso equivale a uma mensagem muito clara dirigida a Israel.
Está se dizendo ao país: senhores, se vocês seguirem esse caminho, deixarão de fazer parte da grande família de países civilizados. Trata-se, então, de um grande êxito dos palestinos. É preciso mirar o impossível para obter algo possível. O que hoje parece impossível será possível cedo ou tarde. Mahmud Abbas teve muita coragem. Dizer não aos EUA como fez Abbas é um ato de saúde mental. Não conheço muitos líderes no mundo que sejam capazes de dizer aos Estados Unidos: “lamento amigo, mas não estou de acordo com o que vocês fazem”. Estou convencido de uma coisa: se Israel seguir neste caminho vai colapsar. Não sei se em 20 ou 30 anos, mas esse caminho nos leva a um precipício. Se alguém não nos detiver, e digo alguém porque nós não temos nem a motivação nem o incentivo para parar, terminaremos nos destroçando em um precipício.
Quem parece ter cometido um erro estratégico é o primeiro ministro Benjamin Netanyahu. Ao invés de aceitar a possibilidade de um Estado Palestino e acompanhar a decisão impondo condições básicas para Israel, o Executivo se fechou na ameaça e na cegueira.
Por ser um estúpido, Netanyahu caiu na armadilha. Mas essa é a estupidez típica de todos os nacionalistas. Quando, em algum momento, o nacionalismo assume o controle, perde-se um pouco a sensatez. Netanyahu e o governo israelense a perderam. Sob a influência de grupos extremamente direitistas, Netanyahu errou o cálculo: em vez de fazer um cálculo nacional, fez um cálculo eleitoral.
A sociedade israelense parece ter um olhar duplo que, por curioso que pareça, revela uma mudança: por um lado tem medo de que Israel perca iniciativa e legitimidade, e, por outro, observa os fenômenos que se produzem com uma posição menos intransigente que antes.
É certo que existem mudanças substanciais na sociedade israelense. A mais fundamental é que hoje, no discurso nacional, estão se dizendo coisas que, há dez anos, não se podiam dizer. Por exemplo, há uma década a postura israelense consistia em dizer: não se devolvem territórios. Hoje, em troca, a questão mudou para converter-se em uma pergunta: que porcentagem de territórios é preciso devolver? Esta pergunta é muito transcendente e se a observamos sob um olhar de longo prazo vemos em seguida que se produziu uma mudança substancial. Se antes as pessoas se negavam a contemplar a possibilidade de devolver territórios, hoje compreende que é preciso devolver esses territórios e a discussão se concentra em saber em que porcentagem. Aqui, porém, ocorrem coisas contraditórias.
Por um lado, a sociedade israelense está disposta a considerar a possibilidade de terminar com a ocupação. As pessoas estão muito agoniadas com isso. Por outro lado, e isso é o paradoxal, segue votando nos partidos de direita enquanto que a extrema direita é cada vez mais forte e cada vez mais fundamentalista. Devo admitir que, aqui em Israel, os processos não são pretos ou brancos, há situações paradoxais, contraditórias. Estamos, então, diante de processos que apontam para direções distintas. É importante destacar uma coisa: nunca a esquerda israelense esteve tão mal no Parlamento e, no entanto, nota-se que o discurso nacional aceita ou repete o que a esquerda vem dizendo há muitos anos. E o que diz a esquerda israelense? Diz que é preciso acabar com a ocupação. Hoje, a maioria das pessoas, incluindo o primeiro ministro Benjamin Netanyahu, diz que essa ocupação terá que acabar em algum momento. Encontramos então outro paradoxo: a esquerda nunca esteve pior e também nunca esteve melhor.
Por acaso o surgimento dessa frente interna que nasceu com os jovens israelenses, os indignados, pode modificar o peso da balança política ou esse foi somente um fenômeno passageiro?
Creio que isso será absolutamente insignificante, não transcendental e em nada mudará o panorama político porque as eleições são dentro de dois anos e a memória do israelense médio é demasiado curta. Essas pessoas foram demasiadamente pacíficas para que o governo as levasse a sério. Aqui não houve piqueteros e não se queimou sequer um pneu ao longo de dois meses. Diante de manifestações dessa índole, fica muito fácil para o governo manipulá-las e deixá-las passar. Rapidamente ocorre algum arranjo cosmético, mas em regra geral não vejo que os indignados deixem uma marca na sociedade israelense.
Como se pode explicar o abismo no qual caiu a esquerda israelense? Ela praticamente despareceu como ator político, carece de credibilidade e de capacidade de mobilização, é uma voz ausente no jogo político nacional. Desapareceu como discurso, como peso político, como mensagem e como sentido.
Se falamos do trabalhismo isso é certo. Mais do que uma mudança, o trabalhismo sofreu uma degeneração, Hoje sabemos que o trabalhismo nunca foi de esquerda, usavam slogans esquerdistas, mas levavam na prática uma política capitalista e nacionalista. Não se pode ser socialista e também tão sionista como é o trabalhismo. Que resta então da esquerda aqui? Em última instância, sobramos nós, o Meretz. Meu pequeno partido tem hoje três membros no Parlamento, que conta com 120 acentos.
Estamos no limite de desaparecer porque fomos leais a nossas consignas. Era muito mais fácil tomar um caminho mais direitista e nacionalista e, dessa forma, ganhar alguns votos mais. Nós fomos consequentes e pagamos o preço. A partir do ano 2000 este país foi para a direita. Ficou mais de direita, mais fundamentalista, mais religioso. A presença de um personagem tétrico como o ministro de Relações Exteriores, Lieberman, me diz que nos convertemos em um país fascista. Essa é a melhor prova de que Israel se degradou muito. Por quê? Alguns dirão que é uma reação lógica aos atentados palestinos doa anos 2000, outros dirão que isso tem a ver com complexos que vem da época do Holocausto, outros dirão que persistem questões que estão nas próprias raízes do movimento sionista. Seja como for, está claro que a esquerda israelense está em crise.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
Historiador e homem político, nesta entrevista à Carta Maior, Margalit assegura que o presidente da Autoridade Palestina pôs Israel em apuros e destaca as contradições nas quais está mergulhada a sociedade israelense, reconhecendo a crise pela qual passa a esquerda de seu país.
Como você analisa o pedido de reconhecimento do Estado palestino que Mahmud Abbas formaliza ante a ONU. É um erro estratégico, um gesto desesperado ou apenas um mero gesto simbólico que não acrescenta nada?
Não, não, de modo algum é um fracasso de Abbas. Muito antes de o pedido de Mahmud Abbas chegar às Nações Unidas, os palestinos já tinham vencido. E ganharam porque é a primeira vez, desde muito tempo, que eles dão o rumo geopolítico da agenda e da região. É também a primeira vez que conseguem pôr Israel em apuros. Faz muito tempo que Israel não conhece uma situação semelhante. Os palestinos encurralaram Israel, obrigaram-no a explicar ao mundo por que se negam a reconhecer um país.
Os palestinos colocaram Israel em uma situação grotesca. Eu creio que, desde essa perspectiva, os palestinos ganharam. Israel está se desgastando progressivamente. Apesar do veto dos Estados Unidos ao reconhecimento do Estado palestino, quando há mais de 130 países que votam a favor da Palestina isso equivale a uma mensagem muito clara dirigida a Israel.
Está se dizendo ao país: senhores, se vocês seguirem esse caminho, deixarão de fazer parte da grande família de países civilizados. Trata-se, então, de um grande êxito dos palestinos. É preciso mirar o impossível para obter algo possível. O que hoje parece impossível será possível cedo ou tarde. Mahmud Abbas teve muita coragem. Dizer não aos EUA como fez Abbas é um ato de saúde mental. Não conheço muitos líderes no mundo que sejam capazes de dizer aos Estados Unidos: “lamento amigo, mas não estou de acordo com o que vocês fazem”. Estou convencido de uma coisa: se Israel seguir neste caminho vai colapsar. Não sei se em 20 ou 30 anos, mas esse caminho nos leva a um precipício. Se alguém não nos detiver, e digo alguém porque nós não temos nem a motivação nem o incentivo para parar, terminaremos nos destroçando em um precipício.
Quem parece ter cometido um erro estratégico é o primeiro ministro Benjamin Netanyahu. Ao invés de aceitar a possibilidade de um Estado Palestino e acompanhar a decisão impondo condições básicas para Israel, o Executivo se fechou na ameaça e na cegueira.
Por ser um estúpido, Netanyahu caiu na armadilha. Mas essa é a estupidez típica de todos os nacionalistas. Quando, em algum momento, o nacionalismo assume o controle, perde-se um pouco a sensatez. Netanyahu e o governo israelense a perderam. Sob a influência de grupos extremamente direitistas, Netanyahu errou o cálculo: em vez de fazer um cálculo nacional, fez um cálculo eleitoral.
A sociedade israelense parece ter um olhar duplo que, por curioso que pareça, revela uma mudança: por um lado tem medo de que Israel perca iniciativa e legitimidade, e, por outro, observa os fenômenos que se produzem com uma posição menos intransigente que antes.
É certo que existem mudanças substanciais na sociedade israelense. A mais fundamental é que hoje, no discurso nacional, estão se dizendo coisas que, há dez anos, não se podiam dizer. Por exemplo, há uma década a postura israelense consistia em dizer: não se devolvem territórios. Hoje, em troca, a questão mudou para converter-se em uma pergunta: que porcentagem de territórios é preciso devolver? Esta pergunta é muito transcendente e se a observamos sob um olhar de longo prazo vemos em seguida que se produziu uma mudança substancial. Se antes as pessoas se negavam a contemplar a possibilidade de devolver territórios, hoje compreende que é preciso devolver esses territórios e a discussão se concentra em saber em que porcentagem. Aqui, porém, ocorrem coisas contraditórias.
Por um lado, a sociedade israelense está disposta a considerar a possibilidade de terminar com a ocupação. As pessoas estão muito agoniadas com isso. Por outro lado, e isso é o paradoxal, segue votando nos partidos de direita enquanto que a extrema direita é cada vez mais forte e cada vez mais fundamentalista. Devo admitir que, aqui em Israel, os processos não são pretos ou brancos, há situações paradoxais, contraditórias. Estamos, então, diante de processos que apontam para direções distintas. É importante destacar uma coisa: nunca a esquerda israelense esteve tão mal no Parlamento e, no entanto, nota-se que o discurso nacional aceita ou repete o que a esquerda vem dizendo há muitos anos. E o que diz a esquerda israelense? Diz que é preciso acabar com a ocupação. Hoje, a maioria das pessoas, incluindo o primeiro ministro Benjamin Netanyahu, diz que essa ocupação terá que acabar em algum momento. Encontramos então outro paradoxo: a esquerda nunca esteve pior e também nunca esteve melhor.
Por acaso o surgimento dessa frente interna que nasceu com os jovens israelenses, os indignados, pode modificar o peso da balança política ou esse foi somente um fenômeno passageiro?
Creio que isso será absolutamente insignificante, não transcendental e em nada mudará o panorama político porque as eleições são dentro de dois anos e a memória do israelense médio é demasiado curta. Essas pessoas foram demasiadamente pacíficas para que o governo as levasse a sério. Aqui não houve piqueteros e não se queimou sequer um pneu ao longo de dois meses. Diante de manifestações dessa índole, fica muito fácil para o governo manipulá-las e deixá-las passar. Rapidamente ocorre algum arranjo cosmético, mas em regra geral não vejo que os indignados deixem uma marca na sociedade israelense.
Como se pode explicar o abismo no qual caiu a esquerda israelense? Ela praticamente despareceu como ator político, carece de credibilidade e de capacidade de mobilização, é uma voz ausente no jogo político nacional. Desapareceu como discurso, como peso político, como mensagem e como sentido.
Se falamos do trabalhismo isso é certo. Mais do que uma mudança, o trabalhismo sofreu uma degeneração, Hoje sabemos que o trabalhismo nunca foi de esquerda, usavam slogans esquerdistas, mas levavam na prática uma política capitalista e nacionalista. Não se pode ser socialista e também tão sionista como é o trabalhismo. Que resta então da esquerda aqui? Em última instância, sobramos nós, o Meretz. Meu pequeno partido tem hoje três membros no Parlamento, que conta com 120 acentos.
Estamos no limite de desaparecer porque fomos leais a nossas consignas. Era muito mais fácil tomar um caminho mais direitista e nacionalista e, dessa forma, ganhar alguns votos mais. Nós fomos consequentes e pagamos o preço. A partir do ano 2000 este país foi para a direita. Ficou mais de direita, mais fundamentalista, mais religioso. A presença de um personagem tétrico como o ministro de Relações Exteriores, Lieberman, me diz que nos convertemos em um país fascista. Essa é a melhor prova de que Israel se degradou muito. Por quê? Alguns dirão que é uma reação lógica aos atentados palestinos doa anos 2000, outros dirão que isso tem a ver com complexos que vem da época do Holocausto, outros dirão que persistem questões que estão nas próprias raízes do movimento sionista. Seja como for, está claro que a esquerda israelense está em crise.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
Fotos: Eduardo Febbro
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