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segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Cidadania e democracia

Maria Victoria de Mesquita Benevides
Professora associada da Faculdade de Educação da USP e pesquisadora do CEDEC. Na mesma área temática publicou, em Lua Nova (nº 28-29, 1993) "O plebiscito de 1993 à luz do precedente de 1993"

RESUMO
Discute-se a importância da implementação dos mecanismos de democracia direta previstos na Constituição de 1988. O referendo, o plebiscito e a iniciativa popular, como formas de participação política que complementem os mecanismos de democracia representativa, podem contribuir significativamente para a educação política dos cidadãos.

O debate sobre a "questão da cidadania" permanece associado, na teoria e na prática, e para o bem ou para o mal, à discussão sobre as virtualidades e perspectivas da consolidação democrática no Brasil. Muito já se escreveu sobre a ausência de cidadania — no sentido de consciência e fruição de direitos — e até mesmo sobre a ausência de "povo" em nosso país. Discutiram-se características da cidadania excludente ou "regulada" (mais vinculada aos direitos sociais ou trabalhistas), assim como sobre o conjunto de obstáculos à extensão da cidadania, decorrentes de nossa tradição oligárquica, autoritária, populista e corporativista. No campo dos direitos políticos do cidadão, é bem conhecida a crítica à representação e ao sistema eleitoral.
O tema tem sido, sem dúvida, freqüentemente debatido, dentro e fora das instituições acadêmicas. Creio, portanto, que a contribuição que poderia trazer, neste momento, consiste em levantar indagações sobre a própria noção de cidadania e, mais especificamente, sobre dois temas correlates:
1. o aperfeiçoamento dos direitos políticos do cidadão pela implementação de mecanismos de democracia direta, como referendo, plebiscito e iniciativa popular, acolhidos na nova Constituição brasileira;
2. a educação política do povo, como elemento indispensável — tornando-se causa e conseqüência — da democracia e da cidadania.

I
Em 1791, na defesa radical dos direitos de participação política dos "sans culottes", Robespierre afirmava que, para ser eleitor, bastava "être vertueux et avoir un coeur français". Junto com o Abbé Gregoire, o bravo incorruptível lutava, sem muito sucesso, contra a discriminação entre "cidadãos ativos" e "cidadãos passivos" na construção do novo regime. Sem muito sucesso, sim; pois mesmo no ardor revolucionário dos que pretendiam instaurar o reino da igualdade, se todos seriam iguais — todos seriam citoyens — alguns já seriam mais iguais do que outros.
A idéia moderna de cidadania e de direitos do cidadão tem, como é sabido, sólidas raízes nas lutas e no imaginário da Revolução Francesa. Mas dela herdou, também, parte das ambigüidades que carrega até hoje. O que significa ser cidadão? Até que ponto cidadania se confunde com democracia? Como se identificam — ou não — os direitos do homem e os direitos do cidadão?
A própria fórmula generosa do ilustre jacobino já trazia a sombra da dúvida: ter um coração francês entende-se como ser "patriota", no sentido revolucionário do termo republicano. Mas, seriam igualmente patriotas o camponês espoliado, o intelectual enragé e o burguês financista? E quanto à exigência da virtude? Que virtude seria essa? A virtude republicana do amor à coisa pública, a virtude democrática do amor à igualdade, de que fala Montesquieu? É bem provável que se tratasse, na verdade, de inspiração rousseauniana. Em página célebre de O Contrato Social, Rousseau atribui a cidadania apenas àqueles que a merecem; ou seja, aqueles que têm a virtude cívica da disponibilidade ativa para o serviço da coisa pública (livro III, cap. XV).
Enfim, o que importa notar é que a distinção entre cidadãos e vassalos, ativos e passivos já comprometia, no final do século XVIII, a natureza igualitária da noção moderna de cidadania.
No Brasil, a noção de cidadania mantém certa dose de ambigüidade tanto na vertente progressista, da "esquerda", quanto na vertente conservadora, da "direita". Para a esquerda, muitas vezes cidadania é apenas aparência de democracia, pois discrimina cidadãos de primeira, segunda, terceira ou nenhuma classe, acabando por reforçar a desigualdade (Dalmo Dallari, por exemplo, pensa assim e, em conseqüência, não fala em "direitos do cidadão", mas sim em "direitos da pessoa humana"). Um exemplo sempre lembrado, para provar o desacerto de denominar "direitos do cidadão" no Brasil, seria a "doação" dos direitos trabalhistas na ditadura do Estado Novo, mantendo-se, no entanto, os sindicatos atrelados ao Estado, no molde fascista.
Para setores da "direita", a cidadania — por implicar a idéia de igualdade, mesmo que apenas igualdade jurídica — torna-se indesejável, e até ameaçadora. As elites dependem, para a manutenção de seus privilégios (a lex privata, o oposto do conteúdo público na noção de cidadania), do reconhecimento explícito da hierarquia entre superiores e inferiores. Consideram a desigualdade legítima e "os de baixo" são as classes perigosas.

II
Na teoria constitucional moderna, cidadão é o indivíduo que tem um vínculo jurídico com o Estado. É o portador de direitos e deveres fixados por uma determinada estrutura legal (Constituição, leis) que lhe confere, ainda, a nacionalidade. Cidadão são, em tese, livres e iguais perante a lei, porém súditos do Estado. Nos regimes democráticos, entende-se que os cidadãos participaram ou aceitaram o pacto fundante da nação ou de uma nova ordem jurídica.
Colocam-se, na prática, as questões ao mesmo tempo óbvias e perturbadoras: quem faz as leis? quem são os iguais? O conceito não seria restrito, e mesmo discriminatório, ao distinguir "pessoa" de "cidadão"? Até que ponto será possível ampliar a abrangência da cidadania no contexto do capitalismo e de uma sociedade de classes?
Em texto considerado clássico, T.H. Marshall discorre sobre a evolução histórica dos direitos do cidadão na Inglaterra para elucidar o que chama de tensão irredutível — uma espécie de guerra — entre o princípio da igualdade (implícito na idéia de cidadania) e as desigualdades inerentes ao capitalismo e à sociedade de classes.1 Daí, discute a geração de direitos civis no século XVIII, dos direitos políticos no século XIX e dos direitos sociais no século XX. Nessa evolução — um avanço evidente no cenário do liberalismo — manifesta-se também a contradição entre teoria e prática, na medida em que direitos passam a ser entendidos como concessões. Isto é, direitos são concedidos não como prestações legítimas para cidadãos livres e iguais perante a lei, mas como benesses para protegidos, tutelados, clientelas. Deixam de ser direitos para serem alternativas aos direitos.
Concessões, como alternativas a direitos, configuram a cidadania passiva, excludente, predominante nas sociedades autoritárias. Configuram a política do reformismo gatopardista que, no Brasil, distinguiu-se pela frase célebre de Antonio Carlos — "façamos a revolução antes que o povo a faça" — ou pelo desalento de Hipólito da Costa: "mudanças sim; mas como nos aborrecem serem feitas pelo povo!". Na verdade, nunca tivemos reformas sociais visando à cidadania efetivamente democrática. Nossa festejada modernização conservadora empreendeu reformas institucionais (ampliação de direitos políticos e liberdades de associação partidária), reformas econômicas (no setor financeiro) e reformas sociais (leis trabalhistas impostas pela ditadura Vargas). Mas não se mudou, no sentido democrático, o acesso à justiça e à segurança, a distribuição de rendas, a estrutura agrária, a previdência social, educação, saúde, habitação etc. A cidadania permaneceu parcial, desequilibrada, excludente. Direitos ainda entendidos como privilégios — só para alguns, e sob determinadas condições.

III
No quadro da democracia liberal, cidadania corresponde ao conjunto das liberdades individuais — os chamados direitos civis de locomoção, pensamento e expressão, integridade física, associação, etc. O advento da democracia social acrescentou, àqueles direitos do indivíduo, os direitos trabalhistas, ou direitos a prestações de natureza social reclamadas ao Estado (educação, saúde, seguridade e previdência). Em ambos os casos o cidadão, nesta concepção, é titular de direitos e liberdades em relação ao Estado e a outros particulares — mas permanece situado fora do âmbito estatal, não assumindo qualquer titularidade quanto a funções públicas. Mantém-se, assim, a perspectiva do constitucionalismo clássico: direitos do homem e do cidadão são exercidos frente ao Estado, mas não dentro do aparelho estatal.
Abro aqui um parênteses para lembrar a distinção entre liberdades, direitos e garantias — palavras essenciais à discussão sobre cidadania democrática. Liberdades e direitos comumente se confundem, mas não são sinônimos. Liberdades têm, como contrapartida, a abstenção geral por parte dos outros — seja o Estado, seja particulares. O titular de uma liberdade reinvidica a não interferência de outrem em suas esferas jurídicas próprias (liberdade de pensamento, de expressão, de ir e vir, de religião, de opção sexual, de associação etc). Direitos, no sentido estrito, têm sempre por objeto uma intervenção, uma ação positiva, uma prestação do Estado, ou de particulares (salários, educação, previdência social etc). Direitos Humanos é a expressão mais ampla, que engloba direitos naturais — pois anteriores e superiores à lei — e as liberdades individuais, os direitos sociais de fruição individual e coletiva e ainda os direitos coletivos da humanidade. Nesse sentido, é importante distinguir direitos humanos — inerentes a toda pessoa humana — dos direitos do cidadão, que podem variar de acordo com leis e vínculos de nacionalidade. É importante também deixar claro que esta ausência de "cidadania" — do vínculo jurídico — não implica a ausência de direitos humanos. Por isso, democracia é aqui entendida como o regime da soberania popular (do governo da maioria), porém com pleno respeito aos direitos das minorias, com pleno respeito aos direitos humanos. Finalmente, por garantias entendem-se os mecanismos, ou "remédios jurídicos", que tornam efetivos os direitos e as liberdades. Atualmente as garantia são, em sua maior parte, de natureza judicial e, no Brasil, foram ampliadas na nova Constituição, como o mandado de injunção.
Retomando o tema anterior, no quadro do liberalismo o cidadão exerce seus direitos sempre em relação ao Estado, ou a outrem, porém fora do aparelho estatal.
Em estudo recente2 procurei argumentar justamente no sentido de que formas de democracia semidireta contemporânea trouxeram outra dimensão à cidadania. O cidadão, além de ser alguém que exerce direitos, cumpre deveres ou goza de liberdades em relação ao Estado, é também titular, ainda que parcialmente, de uma função ou poder público. Isso significa que a antiga e persistente distinção entre a esfera do Estado e a da Sociedade Civil esbate-se, perdendo a tradicional nitidez. Além disso, essa possibilidade de participação direta no exercício do poder político confirma a soberania popular como elemento essencial da democracia. Reforça, ademais, a importância de se somarem direitos políticos aos direitos sociais — pois os direitos políticos favorecem a organização para a reclamação dos direitos sociais.
Como lembra Marilena Chauí3, a cidadania se define pelos princípios da democracia, significando necessariamente conquista e consolidação social e política. A cidadania exige instituições, mediações e comportamentos próprios, constituindo-se na criação de espaços sociais de lutas (movimentos sociais, sindicais e populares) e na definição de instituições permanentes para a expressão política, como partidos, legislação e órgãos do poder público. Distingue-se, portanto, a cidadania passiva — aquela que é outorgada pelo Estado, com a idéia moral do favor e da tutela — da cidadania ativa, aquela que institui o cidadão como portador de direitos e deveres, mas essencialmente criador de direitos para abrir novos espaços de participação política.
É nesse sentido que entendo a cidadania ativa — e, a partir dessa concepção, tenho discutido a possibilidade, no Brasil, de se ampliarem os direitos políticos par a participação direta do cidadão no processo das decisões de interesse público. E esse o sentido da defesa que faço dos mecanismos institucionais referendo, plebiscito e iniciativa popular, acolhidos na nova Constituição brasileira. Levando-se em conta a importância de tais institutos, creio que a seu respeito ainda há muito o que discutir e propor. Assim como a declaração meramente retórica de direitos não garante sua efetiva fruição, a inclusão dos mecanismos de participação popular na Constituição não garante, por si só, que sua implementação se dará democraticamente, no contexto da cidadania ativa.
Entendo aqueles mecanismos como corretivos necessários à representação política tradicional — indispensável, porém insuficiente. Entendo-os como um aperfeiçoamento dos direitos políticos do cidadão, que já participa do processo eleitoral para o Executivo e o Legislativo. Assim, discuto a participação política, através de canais institucionais, no sentido mais abrangente: a eleição, a votação (referendo e plebiscito) e a apresentação de projetos de lei ou de políticas públicas (iniciativa popular). Como defendo a complementaridade entre representação e participação direta, adoto, em decorrência, a expressão "democracia semidireta".
Estou consciente de que se trata de processo complexo e, necessariamente, lento. Aliás, assim foi e ainda é nos países que já têm consolidadas tais práticas de cidadania ativa — e, neles, o processo de criação democrática continua. Para o Brasil, uma indagação parece-me crucial: até que ponto será possível, em uma sociedade tão marcada pelos desequilíbrios e desigualdades, implantar e fazer funcionar as formas mais avançadas da democracia participativa? Até que ponto terão razão os teóricos europeus que vinculam o sucesso da participação popular à consolidação das democracia no "primeiro mundo" — com suas instituições sólidas e estáveis e baixa disparidade sócio-econômica?
Não resta dúvida de que a educação política — entendida como educação para cidadania ativa - é o ponto nevrálgico da participação popular. Mas esta educação se processa na prática. Aprende-se a votar, votando. É claro que esta questão, pela sua própria natureza especulativa, não tem resposta pronta e acabada. Mas, entender a participação popular como uma "escola de cidadania" implica rejeitar aquela argumentação contrária que exagera as condições de apatia e despreparo absoluto do eleitorado, assim considerado incapaz, submisso e "ineducável". O que importa, essencialmente, é que se possa garantir ao povo a informação e a consolidação institucional de canais abertos para a participação — com pluralismo e com liberdade.

IV
Defender a cidadania ativa, no contexto da democracia semidireta, implica o reconhecimento da complementaridade entre a representação política tradicional e a participação popular diretamente exercida. No Brasil, implica, ainda, compreender os vícios, as disfunções e os avatares da representação — assim como do sistema eleitoral — que tendem a emperrar o processo de consolidação da cidadania entre nós.
As últimas eleições realizadas no Brasil para o Legislativo e para os governos estaduais (outubro de 1990) revelaram altos índices de abstenção, votos nulos ou em branco. O fenômeno — que chegou a atingir a marca de 50% em alguns Estados — exacerbou aquele surrado ressentimento elitista e conservador sobre a propalada "idiotia popular": o povo, afinal, teria provado que não está, mesmo, preparado para votar. Não cabe, aqui, discutir apenas o significado daquele resultado, fruto, talvez, da desinformação ou do protesto irritado contra "os políticos". Ou, ainda, conseqüência da apatia, do cansaço eleitoral de que fala Norberto Bobbio ao discutir "o futuro da democracia". O resultado, sem dúvida, desnudou uma certa "maioria silenciosa". Silêncio, aliás, tão mais surpreendente quando se recorda a última eleição presidencial (1989) com elevado nível de participação e mobilização, tanto na campanha quanto no comparecimento às urnas, nos dois turnos.
O que me parece especialmente conveniente retomar é a discussão sobre as causas desse aparente desencontro entre o eleitor e seu direito/dever de participar da escolha de seus representantes e governantes. Tal discussão aponta para questões históricas e estruturais, firmemente arraigadas na sociedade brasileira, assim como para questões específicas, relativas ao sistema da representação em si. Encaminha, ainda, para o que insisto em enfatizar como a questão crucial: a educação política do povo. Aliás, as últimas eleições, apesar de tudo, revelaram também um dado promissor: a expressiva votação na legenda de um determinado partido (o Partidos dos Trabalhadores) independente da escolha em nomes, como sempre foi o costume brasileiro. Essa óbvia identificação partidária — ou ideológica — significa que algo pode mudar, como fruto da maior informação política do cidadão-eleitor (o partido escolhido poderia ser outro; o que importa é notar a identificação do eleitor com um determinado perfil de partido, traço cultural de desenvolvimento político).
A conhecida crítica à representação no Brasil pode ser resumida nos seguintes pontos:
1. a extrema privatização da política, resultado da permanência de um Estado patrimonialista e no qual predominam as relações da conciliação, do coronelismo e do clientelismo em suas variadas formas;
2. a valorização excessiva das eleições para os cargos executivos, em detrimento do Legislativo, o que reforça o peso e o sucesso relativo das práticas populistas nos diversos tipos de salvacionismo (o sebastianismo redivivo) e de relações de favor, de tutela, de outorga, de "cidadania passiva" enfim;
3. o monopólio da representação pelos partidos políticos, o que agrava os problemas decorrentes da fragilidade ideológica e programática dos partidos, levando à crença na sua indiferenciação, amorfismo e oportunismo, crença, aliás, confirmada por repetidas pesquisas de opinião pública;
4. a irresponsabilidade do representante perante o representado, não apenas em relação ao programa partidário mas também em relação às promessas das campanhas eleitorais (e inexistem, ainda, remédios eficazes para corrigir essa irresponsabilidade);
5. a representação proporcional distorcida, que leva à sobre-representação dos Estados mais "atrasados" politicamente — e, portanto, com forte tendência ao governismo e à manipulação do eleitorado — em detrimento dos Estados mais populosos e mais "adiantados", em termos de informação e participação política;
6. o sistema eleitoral insuficiente (incluindo a justiça eleitoral) para controlar eficazmente o abuso do poder econômico nas campanhas, o abuso dos poderes públicos, a propaganda nos meios de comunicação de massa e os lobbies disfarçados no Legislativo.
Em termos mais gerais, a representação no Brasil permanece, efetivamente, uma representação no sentido teatral: a representação do poder diante do povo e não a representação do povo diante do poder. Nesse sentido, afasta-se da idéia de democracia como soberania popular. Na ausência de mecanismos de controle sobre o representante — como os vários tipos de mandato imperativo ou de recall, que vão da simples advertência à perda do mandato — como proceder? Esta é uma discussão em aberto e que provoca indagações sobre: os limites do mandato livre e fiduciário; a fidelidade partidária; a divulgação ampla da atuação do representante e, sobretudo, a criação e consolidação de mecanismos de democracia semidireta, que atuariam como corretivos à representação tradicional.
Quanto à questão específica sobre representação e cidadania, pergunta-se: quem é o cidadão-eleitor no Brasil? Quem é este personagem endeusado, manipulado, eventualmente comprado e... facilmente esquecido após o fechamento das urnas?
Em 1860, em famosa circular que consagrava a campanha dos liberais do "lenço branco", Teófilo Otoni identificava a democracia dos seus sonhos: a "democracia da gravata lavada", a democracia pacífica da classe média, letrada e asseada, a única merecedora do gozo dos direitos políticos da cidadania. Em 1990, o presidente eleito apresentava-se como o redentor da cidadania da gente brasileira. Tratava-se, então, não mais dos engravatados, mas dos "descamisados" e dos "pés-descalços". Assim, percebe-se como, entre o liberalismo elitista de nossos bacharéis d'antanho e o voluntarismo populista de um novo "pai dos pobres", instala-se uma certeza: a idéia de cidadania, no Brasil, não significa, necessariamente, o reconhecimento de direitos, no sentido mais radical da democracia como soberania popular calcada nos princípios da liberdade e da igualdade.
A expansão do corpo eleitoral é uma sólida realidade numérica no Brasil, tanto em termos relativos quanto absolutos. Hoje, 53% dos brasileiros têm título de eleitor, o que representa 90% da população entre 16 e 70 anos de idade. E, dos minguados 1 milhão e 500 mil eleitores em 1933, passamos para 83 milhões e 800 mil em 1990. É livre para votar o nosso cidadão-eleitor. Mas, que liberdade de escolha terá o analfabeto ou semi-analfabeto, afogado na luta pela sobrevivência? E de que liberdade estamos falando quando os meios de comunicação são regidos pela concessão privada aos "amigos do rei" e o abuso do poder econômico? De que igualdade falamos num país no qual os 10% mais ricos detêm 51% da renda nacional?
Onde está o nosso citoyen?
Os dados sobre o perfil do eleitorado nacional, em 1989, falam por si: 30% de analfabetos e semi-analfabetos, 90% de não-sindicalizados, 20% que desconheciam o nome do então presidente da República, 75% com renda familiar abaixo de 2,5 salários mínimos. Dos 83 milhões de eleitores, apenas 8% tinham mais de 12 anos de escolaridade (esta taxa cai para 4% no Nordeste). Em São Paulo, o Estado mais desenvolvido da federação, 61% do eleitorado não terminaram o 1º grau. Mas, em todo o país, 77% assistem televisão e 75% ouvem rádio (pesquisa IBGE e PNAD, 1989, 1990).
Da compreensão desses dados conjugados surge, como necessidade imperiosa, a educação política para a cidadania. De pouco adiantará modificar o sistema eleitoral (voto distrital? listas partidárias? candidaturas independentes?) se nada for feito no campo da informação da conscientização, do estímulo à organização e à participação popular, desde a base.
A educação política para a cidadania é um tema tão antigo quanto, pelo menos, o da democracia. Para o pensamento político clássico, a principal tarefa dos governantes — e principal virtude dos regimes políticos - era justamente propiciar a educação política do povo. A formação da sociedade pressupunha um povo "adulto" na política, e não tutelado. Era esse, aliás, o leitmotiv de Platão, no diálogo com os sofistas e, certamente, o de Aristóteles em Política e Ética a Nicômaco. No século XIX, a educação para a cidadania foi ardorosamente defendida por pensadores como Stuart Mill (em Governo Representativo), embora, a essa época, a cidadania significasse, para muitos tementes a Deus, a formação de bons contribuintes e trabalhadores qualificados.
Hoje, se tomamos o eixo da democracia como efetiva soberania popular, a educação política significa a educação para a participação (já dizia Hannah Arendt, em suas belas páginas sobre "as origens do totalitarismo", que a liberdade é liberdade para a participação política... ou então não é coisa alguma).
Essa educação — crucial para a cidadania ativa e para que se transforme o quadro atual dos vícios da representação e das eleições no Brasil — supõe, sem dúvida, uma discussão aprofundada sobre o papel dos meios de comunicação de massa como veículos a serviço do pluralismo de valores. É evidente que a educação política não pode ser entendida numa via única — só do Estado para o povo. Mas, sim, pela exigência da pluralidade de agentes políticos, e não só os partidos políticos, apesar de sua clara e necessária função pedagógica. A educação política, num contexto democrático, supõe que os próprios interessados se transformem em novos sujeitos políticos. E, assim, recuperem o sentido verdadeiro de cidadania ativa e de participação popular. Esse tipo de concepção — que exige o dinamismo da criação e da liberdade de novos sujeitos e novos espaços públicos - supera a visão do liberalismo, que tem como modelo o cidadão proposto para toda a sociedade (como o "patriota") como se ela fosse homogênea, harmoniosa, unidimensional. E não uma sociedade de classes diferentes e antagônicas, de grupos sociais, religiosos, raciais, culturais, tão diversos.
Daí decorre a ligação entre democracia, sociedade pluralista, educação política e democratização dos meios de comunicação de massa. Ou seja, a educação política assim entendida é a recuperação moderna do direito clássico à fala pública, da isegoria ateniense. Já dizia Montesquieu que persiste uma relação inarredável entre educação e regime político, sendo impossível a consolidação de um regime democrático sem educação democrática. E, a meu ver, só esta poderá mudar aquele quadro, descrito pelo "radical" Manoel Bomfim, segundo análise sempre tão lúcida de Antônio Cândido.4 Aquele quadro que retrata o brasileiro como "cidadão" de segunda, terceira ou nenhuma classe, e que sempre serve aos poderosos. É o trabalhador espoliado que, com sua força de trabalho, mantém o patrimônio do "senhor". E é, também, quem, sem direitos assumidos e reconhecidos, defende e apóia os "donos do poder": como capanga, como soldado ou...como eleitor.

V
Afirmei, acima, que a participação popular através dos mecanismos de democracia direta pode ser entendida como uma "escola de cidadania". Mas, quando essa participação em votações especiais — referendo, plebiscito e iniciativa popular — está em causa, uma questão terna-se inevitável: terá o povo, aquele povo identificado no "perfil do eleitor", capacidade e interesse para votar em projetos de lei, atos normativos ou questões de política nacional igualmente complexas?
A dúvida é compreensível. Afinal, para boa parte dos contesta-dores da participação popular, o povo é ignorante, imaturo, instável, manipulável, sentimental e apático. Portanto, o direito de eleger representantes já é considerado "um risco", e o de votar em questões de interesse público, "uma demasia". Creio, pelo contrário, que a implementação dos institutos de democracia semidireta contribuem para a educação política do povo. E nesse sentido que Fábio Konder Comparato defendeu, ainda em seu anteprojeto de Constituição (1986), as vantagens da democracia semidireta.5 Dois outros exemplos, no campo dos estudos jurídicos, reforçam o argumento. Para o francês Bernard de Chantebout, "a democracia do governo do povo pelo povo deve continuar a admitir formas de democracia direta, mesmo à custa de imenso esforço de educação política dos cidadãos" (1983). Para o americano Joseph Grodin (ex-juiz da Corte Suprema da California), "a participação direta se apresenta como uma bênção, na tarefa de associar o povo ao processo decisório" (1989).
A questão é compreensível também de outro ângulo, o da distância entre o povo e os órgãos de decisão nas sociedades contemporâneas. É evidente que, com a evolução do Estado moderno, o exercício do governo inclui tarefas complexas e técnicas, contribuindo para uma relação autoritária entre governantes e governados. Essa relação, é sabido, tem provocado várias conseqüências negativas, desde a indiferença até a franca hostilidade do povo para com os políticos, em geral, e para os governantes, em particular. A institucionalização de práticas de participação popular tem o apreciável mérito de corrigir essa involução do regime democrático, permitindo que o povo passe a se interessar diretamente pelos assuntos que lhe dizem respeito e, sobretudo, que se mantenha informado sobre os acontecimentos de interesse nacional.
Enfim, apesar de nossa deformação histórica, um certo otimismo não me parece de todo injustificável. Se é verdade que persistem formas extremamente excludentes de se entender a participação política — como o clientelismo e a "presciência das elites" —, uma certa cultura política, mais direcionada no sentido das democracias contemporâneas, começa a se esboçar no país. Intérpretes de nossa longa transição do autoritarismo, por exemplo, têm chamado a atenção para um novo significado da democracia como um valor em sí. Isto é, o reconhecimento da necessidade de instituições e práticas associadas a um ideal de democracia política, em torno de eleições periódicas, pluralismo partidário, liberdade de organização social, imprensa livre, a institucionalização do controle do poder em todos os níveis.
Finalmente, é bom lembrar que a educação política através da participação em processos decisórios de interesse público é importante em si, independente do resultado do processo. As campanhas que antecedem as consultas populares têm uma função informativa e educativa, de valor inegável, tanto para os participantes "do lado do povo", quanto para os dirigentes e lideranças políticas. Para estes últimos, por exemplo, a realização de um plebiscito pode ser utilíssima como instrumento de informação sobre opiniões ou avaliações acerca de problemas específicos, quando faz emergir a opinião da minoria — mas uma minoria muito maior do que se imaginava. E, no caso das iniciativas populares, mesmo quando as propostas não conseguem ser qualificadas para votação (requisitos formais não cumpridos, por exemplo), o processo todo é, em sí, instrumento para a busca da legitimidade política. Possibilita, nas suas diferentes fases, uma efetiva discussão sobre as questões em causa. Contribui, decisivamente, para a educação política do cidadão.


1 Marshall, T.H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio, Editora Zahar, 1967         [ Links ]
2 Benevides, Maria Victoria de M. A cidadania Ativa. São Paulo, Editora Ática, 1991         [ Links ]
3 Chauí, Marilena. Cultura e democracia. São Paulo, Editora Moderna, 1984         [ Links ]
4 Antonio Cândido. "Radicalismos". Estudos Avançados, 4 (8) 1990         [ Links ]
5 Comparato, Fábio K. Para viver a democracia. São Paulo, Brasiliense, 1990.         [ Links ]

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