Em solidariedade com aqueles e aquelas que mais precisam da proteção integral do Estado, venho posicionar-me contra a proposta de redução da maioridade penal. |
DAS VIOLÊNCIAS SILENCIADAS PELA PROPOSTA DE REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NO BRASIL
No último dia 13 de Julho, o Brasil celebrou 25 anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Respondendo à consolidação democrática inaugurada com a Constituição de 1988 e em consonância com a tendência mundial de especialização e especialidade da justiça juvenil, o ECA tem resistido a apelos punitivistas asseverando a necessidade de distinguir entre inimputabilidade e impunidade, repressão e ressocialização. Neste sentido, perante a prática de ato infracional, o Estatuto simultaneamente afirma a inimputabilidade e prevê a punição através de um elaborado conjunto de medidas socioeducativas, que inclui medidas restritivas de liberdade. Acertadamente, e de acordo com princípios de aplicação da justiça juvenil em democracias avançadas, o Estatuto diferencia as fases de desenvolvimento humano, apelando para a proeminência de objetivos não só disciplinares mas sobretudo educativos no que concerne aos jovens em conflito com a lei.
Infelizmente, no aniversário do ECA, a celebração foi substituída pelo medo. A celebração, isto é, o reconhecimento do papel deste Estatuto na construção de um Brasil mais justo e a correlata discussão acerca dos avanços conquistados, mudanças e melhorias a conquistar para sua aplicação, foi soterrada pela abrupta aprovação pela Câmara dos Deputados, em primeiro turno, da Proposta de Emenda Constitucional que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos em casos de crimes hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte. O medo, por sua vez, tem-se apresentado em dupla face. De um lado, o medo pelo futuro de um Brasil democrático, que depende do tratamento responsável e digno da sua juventude. De outro lado, a fraudulenta propagação de um clima de medo, que tem tratado a juventude brasileira como um grave fator de risco à segurança pública e centro de disseminação da violência.
Dirijo-vos esta carta depositando minhas esperanças num Brasil jovem. Ao redigi-la venho engrossar o coro daqueles e daquelas que, num esforço extraordinário, têm visibilizado a principal consequência que a adesão à fórmula simplista “jovens infratores=agentes privilegiados da violência endêmica” tem provocado, a ampliação e multiplicação da(s) violências vividas por estes jovens e sobre eles exercida, especialmente jovens pobres, negros, moradores das favelas e das periferias.
1. A violência da responsabilização dos jovens pela falta de segurança
Os dados sobre segurança pública e aplicação de medidas socioeducativas demonstram a ínfima participação dos atos infracionais dos jovens para o cômputo global da criminalidade no Brasil. De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014, enquanto o número de pessoas encarceradas no Brasil atingiu o valor de 574.207; em 2012, registaram-se 20.532 jovens cumprindo medidas socioeducativas. As estatísticas refutam igualmente o argumento de uma tendência à criminalidade violenta por parte de jovens infratores. Ainda de acordo com o Anuário, apenas 11,1% dos atos infracionais correspondem a crimes violentos contra à vida (homicídios e latrocínios).
O excessivo rigor aplicado à responsabilização dos jovens em face dos índices de violência e criminalidade não tem correspondência com uma análise rigorosa acerca do papel do Estado e da comunidade perante crianças e jovens em situação de extrema vulnerabilidade social. Neste caso o excesso, punição dos jovens como forma de atacar as causas da violência, oculta o défice, a violência como consequência do contexto social e de oportunidades no qual os jovens estão inseridos.
Basta verificar que, de acordo com Nota Técnica do IPEA, em 2013, 95% dos adolescentes em conflito com a lei eram do sexo masculino e 60% deles tinham idade entre 16 e 18 anos. Pesquisa realizada pelo IPEA e Ministério da Justiça em 2003 indica que mais de 60% dos adolescentes cumprindo pena nesse ano eram negros, 51% não frequentavam a escola, 49% não trabalhavam quando cometeram o delito, ainda, 66% deles viviam em famílias consideradas extremamente pobres.
2. A violência da inconstitucionalidade e do desrespeito aos direitos humanos de jovens e crianças
Enquanto titulares de direitos fundamentais crianças e jovens estão protegidos pela Constituição e pela vigência de tratados internacionais que têm o Estado brasileiro como signatário. Neste sentido, são vários os instrumentos internacionais que protegem crianças e jovens contra a redução da maioridade penal, como por exemplo:
Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU de 1989 – fixa a idade penal em 18 anos;
Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança – define criança no limite etário de 18 anos;
Enquanto direito e garantia individual, irrevogável e cláusula pétrea, a proteção das crianças e adolescentes contra a redução da maioridade penal ganha contornos de uma luta defensiva da institucionalidade democrática. Neste domínio, a defesa dos jovens traduz-se na defesa da supremacia da Constituição.
3. A violência da anti-pedagogia punitiva
A proposta de redução da maioridade penal integra um paradigma punitivo no qual se apela a uma solução de via rápida, o Estado penal, para um quadro de vitimização múltipla que exige soluções de política pública integrada. A proposta de Emenda Constitucional atesta a incapacidade dos legisladores e, em última instância do Estado, de aprendizagem a partir da situação carcerária brasileira. Dados oficiais mostram o crescimento exponencial de uma população carcerária que já é a quarta maior do mundo. Uma população cuja pertença étnica e social destaca uma vez mais um regime de punição dirigido a negros e pobres.
De acordo com o Levantamento de Informações Penitenciárias de Junho de 2014, desde 2000, a população prisional cresceu, em média, 7% ao ano, totalizando um crescimento de 161%, valor dez vezes maior que o crescimento do total da população brasileira, que apresentou aumento de apenas 16% no período, em uma média de 1,1% ao ano. O levantamento ainda destaca que dois, em cada três presos, são negros. Por outro lado, o relatório aponta que oito em cada dez pessoas presas estudaram, no máximo, até o ensino fundamental, enquanto a média nacional de pessoas que não frequentaram o ensino fundamental ou o têm incompleto é de 50%. Ao passo que na população brasileira cerca de 32% da população completou o ensino médio, apenas 8% da população prisional o concluiu.
Os dados demonstram que a solução via Estado Penal destaca-se mais pela seletividade do que pela eficácia do sistema. Em face de uma situação carcerária marcada pela sobrelotação, condições sub-humanas dos estabelecimentos prisionais, incumprimento dos direitos dos reclusos e presença dominante das facções criminosas, a proposta de redução da maioridade penal afasta definitivamente qualquer dever de proteção social e educação com uma geração que estará destinada a engrossar as filas do encarceramento em massa.
4. A violência do extermínio da juventude pobre e negra
Ao afunilar a discussão sobre a violência no jovem infrator, o debate acerca da redução da maioridade penal acaba por evitar a discussão mais ampla acerca da múltipla vitimização e violação de direitos da juventude marginalizada e excluída. Esta falta é ainda mais grave quando colabora na invisibilização de dados acerca do homicídio em massa da população jovem e negra no Brasil.
De acordo com o Mapa da Violência 2015, 46% das vítimas jovens de 16 e 17 anos morreram vítimas de homicídio em 2013. Trata-se de uma taxa de 54,1 homicídios por 100 mil, o que coloca Brasil no ranking de países que mais mata sua juventude. A taxa de homicídios de adolescentes brancos de 16 e 17 anos foi de 24,2 em 100 mil. A taxa equivalente de negros foi de 66,3 por 100 mil. A vitimização negra foi de 173,6%. Morrem, proporcionalmente ao tamanho das respectivas populações, 2,7 vezes mais adolescentes negros. A progressão dos dados no tempo é ainda mais preocupante. Em 2003 a vitimização de jovens negros foi de 71,8%. Em 2013, de 173,6%. O crescimento da vitimização no período foi de 141,7%.
Desvelando a lógica de classificação étnica e social da violência e do encarceramento no Brasil, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014 indica que a população negra é 18,4% mais encarcerados e 30,5% mais vítima de homicídio no Brasil.
A equação entre medo e esperança no que toca às gerações futuras e ao futuro das novas gerações implica um revisitar profundo do papel da justiça penal no Brasil. Um debate rigoroso acerca deste tema exige que se coloque à partida duas perguntas: (a) quem é que se pode dar ao luxo de ter a proteção integral do Estado? (b) quem é que dela mais precisa?
Em solidariedade com aqueles e aquelas que mais precisam da proteção integral do Estado, jovens cujas aspirações foram negadas ou tornadas invisíveis pela sistemática e radical exclusão e desigualdade social, venho posicionar-me veementemente contra a proposta de redução da maioridade penal, pedindo às autoridades competentes a adoção de todas as medidas cabíveis para impedir esse retrocesso na história de consolidação democrática do Estado brasileiro.
Boaventura de Sousa Santos
Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
Coimbra, 20 de julho de 2015
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