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segunda-feira, 11 de abril de 2016

Juiz natural, devido processo legal e processo de impeachment

OBSERVATÓRIO CONSTITUCIONAL



No presente texto, discutiremos o seguinte argumento: o direito subjetivo público, tanto dos deputados quanto do presidente da República, de não participação (no caso dos parlamentares, deputados ou senadores) ou de não submissão (no caso do presidente da República) a um processo de impeachment que não observe o due process of law. A hipótese poderia até soar óbvia, mas, no atual momento político de crise, não nos parece.

Daí que uma preocupação, em particular, embora já discutida na ADPF 378, mereça redobrada atenção e, mais do que isso, voltar à pauta do Supremo Tribunal Federal: o princípio do juiz natural e o direito subjetivo público ao devido processo constitucional do impeachment, já que, à luz dos elementos semânticos estruturantes da crise, tanto o Congresso Nacional quanto o Poder Judiciário podem terminar cooptados por sua lógica do tudo ou nada e, assim, deixarem de valorar em toda a sua plenitude garantias constitucionais inerentes aos princípios constitucionais regentes do processo deimpeachment, o que afetaria a própria Constituição, a garantia dos direitos fundamentais e a democracia.
Nesse sentido, parece-nos bastante acertado o pressuposto assumido pelo ministro Fachin, em seu voto na ADPF 378, de que o impeachmentconsubstancia “meio de concretização dos ideais democráticos, cuja materialização passa, necessariamente, pelo desenvolvimento de procedimentos justos que observem as garantias constitucionais dos litigantes”, de modo que o chefe do Poder Executivo não seja submetido a julgamento arbitrário.
Essa premissa, não seria demasiado assinalar, já foi debatida pela doutrina[1], que hoje reconhece sem muita divergência a natureza político-jurídica (ou mista) do processo do impeachment[2], além de sua característica peculiar por ser um processo complexo, que se desenvolve em duas fases (uma na Câmara, outra no Senado). O STF, por sua vez, teve oportunidade de decidir casos concretos em que acolheu a tese doutrinariamente prevalecente, segundo a qual o impeachment é processo de natureza mista. Mais do que isso, o STF deixou claro, ao julgar entre outras ações o MS 21.623, o MS 20.941 e a ADPF 378, que os atos e as decisões proferidas no âmbito do processo de impeachment sujeitam-se ao controle jurisdicional, quando digam respeito às garantias do due process of law.
due process of law tem uma dimensão processual, isto é, enquanto garantia dos sujeitos de uma relação processual, que, segundo Gilmar Mendes[3], constitui uma das mais relevantes garantias constitucionais, assumindo inigualável amplitude e desdobrando-se em diversas outras, tais como: direito ao contraditório e à ampla defesa; direito a não ser processado e não ser condenado com base em prova ilícita; direito a não ser preso senão por determinação de autoridade legalmente competente; e, em especial, o direito ao juiz natural.
Quanto ao princípio do juiz natural, para o referido constitucionalista[4], tal norma de proteção constitucional aplica-se de modo abrangente a toda atividade jurisdicional, do que, naturalmente, deflui sua inequívoca aplicabilidade ao processo de impeachment.
Tanto que, na ADPF 378, o tema foi analisado em parte (e, ressaltamos, apenas em parte). O requerente argumentou que a ausência de imparcialidade do juiz presidente da Câmara seria “objetivamente aferível”, visto que o presidente Eduardo Cunha “é alvo de representação pelo cometimento de falta ética”. O ministro Fachin, no que foi seguido pelos demais, inclusive pelo ministro Barroso (relator para o acórdão), entendeu que a imparcialidade do juiz, típica de processos norteados pelo convencimento jurídico e corolário do due process of law, não teria o mesmo grau de concretização do processo judicial, quando se estivesse no âmbito do processo de impeachment (“não podem ser simplesmente transportadas ao plano de processos político-jurídicos”). Logo, seriam naturais divergências e convergências cuja explicação se atrelaria a posturas assumidas no plano ideológico-político.
Porém, a questão não se restringe apenas à imprecisa noção de uma imparcialidade, cuja análise foi empreendida pelos ministros com a conclusão de que não restaria violada no processo em face da peculiar natureza político-jurídica do impeachment. A questão é de resguardar o devido processo constitucional do impeachment em face do princípio do juiz natural, cujo fundamento está previsto no artigo 5º, XXXVII e LIII, da Constituição Federal, o qual constitui uma garantia ainda mais ampla do que a imparcialidade.
Por conseguinte, a questão normativa ora analisada não consiste tão-somente na análise de eventual inclinação político-ideológica e/ou filiação partidária e seus respectivos consectários no campo das ideias e opiniões, o que, sendo típico do foro parlamentar, afastaria por completo qualquer hipótese de aplicação da imparcialidade nos mesmos moldes que no processo judicial, conforme decidiu o STF, ressalvada apenas a previsão de impedimento, contida no artigo 36 da Lei do Impeachment.
Não se cuida, pois, apenas de divergência política ou partidária. Porque, se assim o fosse, o STF estaria julgando a Constituição Federal de acordo com a Lei 1.079, quando, na verdade, consoante oportunamente observado por Bruno Galindo[5], a hermenêutica jurídica impõe a necessária realização do filtro constitucional para que a Lei do Impeachment é que seja interpretada conforme a Constituição, e não o contrário.
Para muito além dessa dimensão, o princípio do juiz natural tem pertinência com o legítimo desenvolvimento do processo de impeachment e dos procedimentos a serem definidos e executados, cujo não atendimento pode acarretar a alteração no resultado final do julgamento, ao afetar os atores envolvidos com o elemento surpresa em nítida contrariedade ao princípio da segurança jurídica e da não surpresa.
Embora já apreciado em parte na ADPF 378, como dissemos acima, a parcialidade tolerada no âmbito do processo constitucional do impeachment, decorrente da opção política dos constituintes de 1987-1988, não se confunde com o princípio do juiz natural, que, em sua estrutura normativa, visa a assegurar que os atos e procedimento de um processo de julgamento não se sujeitem à discricionariedade e à subjetividade do julgador, havendo a possibilidade de interferência direta e/ou indireta em regras que deveriam ser predefinidas e previamente divulgadas, como condição de legitimidade do próprio procedimento.
Diferente do que vem sendo mais insistentemente enfatizado nos diversos foros, não argumentamos que o eixo do problema gira em torno da falta da autoridade moral ou ética do Parlamento para julgar o impeachment. O ponto nodal, em nossa percepção, é que, sendo o impeachment um processo político-jurídico, está sim submetido aos princípios constitucionais e, por consequência, não pode haver tergiversação sobre a aplicação das garantias estabelecidas na Constituição. Porque, a aceitar-se incondicionalmente o argumento do STF de que a garantia da imparcialidade não se aplicaria ao processo, visto que o impeachment não seria regido pela “lógica da lei”, se estaria, por consequência, a negar sua natureza mista, afirmando-se, ao revés, sua natureza unicamente política.
O presidente da Câmara assume a condição de juiz presidente de um processo constitucional complexo, que integra a primeira fase doimpeachment, cujo processamento terá curso na Câmara dos Deputados. Destarte, é inegável reconhecermos que o atual presidente da Câmara, na condição de juiz constitucional da presidente da República, com poderes discricionários para definir a forma e o tempo de atos e procedimentos que poderão influenciar no resultado final do julgamento, não reúne, minimamente, os requisitos constitucionais para presidir e conduzir legítima e regularmente o processo constitucional do impeachment, no que tange ao princípio constitucional do juiz natural. Se não, vejamos.
Primeiro, o juiz presidente da Câmara reteve a apreciação do atual pedido de impeachment por longos meses e, como é fato notório, somente resolveu dar-lhe seguimento, por culpar a presidente da República e seu partido, por eventual conivência com a votação na Comissão de Ética da Câmara, que autorizou o início do processo de cassação contra si naquela Casa. Sua conduta foi objeto de mandado de segurança impetrado perante o STF (MS 33.921, relator ministro Gilmar Mendes), ao argumento de que o recebimento da denúncia teria configurado ato de desvio de poder e de finalidade.
Segundo, o juiz presidente da Câmara, ao perceber que a indicação pelas lideranças partidárias dos membros da Comissão de Impeachment poderia revelar uma composição “favorável” à presidente da República, decidiu mudar o critério aplicado — no momento exato da deliberação — para serem admitidas candidaturas avulsas por qualquer um dos deputados. Tal fato, é sabido, foi contestado na ADPF 378, e o STF determinou a dissolução da comissão então composta de candidaturas avulsas, bem como a formação de uma nova atendendo-se ao disposto no artigo 58, caput e parágrafo 1º, da Constituição Federal.
Terceiro, o próprio pressuposto de configuração da existência do crime de responsabilidade, que autoriza a admissão do processo de impeachment, tem sido objeto de calorosos embates por parte dos juristas, o que revela sua fragilidade e, pior do que isso, o uso e abuso das formas jurídicas e constitucionais para justificar uma atuação política (voltada a atender certos interesses privados e partidários)[6]. Tal polêmica só vem a mostrar que a imparcialidade do juiz presidente da Câmara é questionável.
Quarto, a designação de sessões “extraordinárias”, nas segundas e sextas, além do indicativo de designá-las para os sábados e domingos, dias em que tradicionalmente não há sessões no Congresso, o que, na prática, acarreta o encurtamento do prazo de defesa da presidente da República. Ademais, impacta sensivelmente no tempo do processo, o que na leitura do juiz presidente seria favorável à deposição da presidente da República, considerando-se a existência de opinião pública prevalente aparentemente favorável ao impedimento dela. Ainda nesse delicado tópico, consoante noticiado dias atrás (7 de abril de 2016), o juiz presidente anunciou que as regras de julgamento só na hora da votação do impeachment é que serão divulgadas e conhecidas, conduta essa que, caso venha a se concretizar, representaria violação à segurança jurídica e ao devido processo legal.
Quinto, a definição de uma ordem de chamada dos deputados na ocasião do julgamento pelo plenário da Câmara dos Deputados, de modo que se colheriam primeiro os votos favoráveis ao impeachment, constrangendo potencialmente os deputados a ele contrários, os quais seriam os últimos a votarem, o que mostra inexistir por parte do juiz presidente da Câmara compromisso algum com as garantias processuais da Constituição. Ou seja, está-se diante de uma situação em que, de modo cuidadosamente calculado, o juiz presidente pretende construir um processo de votação em plenário para favorecer a decisão pela aprovação do impeachment.
Sexto, o pedido de afastamento do juiz presidente de suas funções não só como presidente da Câmara dos Deputados como também do mandato de deputado federal, consoante solicitado pelo procurador-geral da República quando da proposição da denúncia no inquérito criminal contra o deputado Eduardo Cunha. Ainda que o STF não tenha apreciado esse requerimento do PGR, é fato que não podem ser minorados ou ignorados os diversos indiciamentos contra ele existentes, no que tange à caracterização do juiz neutro e imparcial, tal qual está a exigir o princípio constitucional do juiz natural. Ademais, há diversos inquéritos contra ele tramitando no STF sob a acusação de diversas práticas ilícitas, o que, no mínimo, compromete a moralidade e a neutralidade do julgamento de um dos processos mais sensíveis da história constitucional do país.
Aprendemos com Friedrich Müller que o momento de concretização da norma constitucional consuma-se no instante de sua efetiva aplicação diante do caso concreto. Se, como analisado pelos ministros do STF na ADPF 378, a imparcialidade exigida para o juiz togado não se aplica automaticamente e no mesmo grau de concretização do processo político-jurídico doimpeachment, não resta a menor dúvida de que, à luz da constelação fática configurada, o único juízo constitucionalmente adequado, sob pena de frustrar-se a concretização do princípio do due process of law, além de negar a natureza mista do impeachment, é afastar o atual presidente da Câmara da condução do processo, porquanto a legitimidade também decorre do procedimento.
Tais circunstâncias, por força de expressa disposição constitucional, tornam inviável que ele exerça as atribuições institucionais de juiz presidente da Câmara no processo de impeachment. Conforme dito, deve subsistir íntegro o direito subjetivo público de qualquer parlamentar de suspender o trâmite do processo de impeachment por violação ao devido processo legal, enquanto o atual presidente da Câmara não for afastado dessa função, bem como da presidente da República de não se submeter ao referido processo.
Esse aspecto, convém enfatizarmos, que é elementar e não pode ser ignorado sobretudo nos tempos de crise, porque é exatamente do rigoroso cumprimento aos postulados constitucionais que dependerá não a manutenção da atual presidente da República e dos demais que virão, mas a permanência das nossas instituições democráticas e da própria Constituição.
Inversamente, porque atravessamos uma crise política sem precedentes, que se convolaria em crise constitucional, é que alguns têm achado que, não obstante alguns desvios e violações pontuais, a crise (pautada na lógica dualista) justificaria tais medidas extremas[7]. Essa é a crise da crise, que para além da presidente, atingirá a Presidência, a instituição, a democracia e a Constituição.
A ideia, portanto, de respeito às normas constitucionais parte do pressuposto de que, sem o respeito ao devido processo constitucional doimpeachment, o que inclui a observância ao princípio do juiz natural do due process of law, cujo significado prático é exigir a previsibilidade da forma e do tempo dos atos e dos procedimentos de modo a assegurar segurança jurídica e a legitimidade do impeachment, não se terá como assegurar a aceitabilidade jurídico-política de eventual decisão, atingindo-se o coração do Estado Democrático de Direito.
***
*Agradeço aos amigos do Grupo de Pesquisa REC – Recife Estudos Constitucionais (CNPq), com quem pude discutir e desenvolver muitos dos argumentos aqui expostos.
Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).

[1] A propósito, veja a clássica obra de Paulo Brossard: PINTO, Paulo Brossard de Souza. Impeachment. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1965, p. 71-83.
[2] Cf. GALINDO, Bruno. Impeachment: à luz do constitucionalismo contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2016, p. 62 e ss.
[3] Cf. MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires & BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 602-603.
[4] Idem, p. 545.
[5] GALINDO, Bruno. Op. cit., p. 56.
[6] Uma análise precisa e bem elaborada sobre esse tópico foi desenvolvida por: ARAÚJO, Marcelo Labanca Corrêa de & ROMAN, Flavio José.Impeachment é Golpe de Estado? Disponível em:http://jota.uol.com.br/impeachment-e-golpe-de-estado [4/4/2016].
[7] Dentre outras, veicula-se a possibilidade de edição de emenda à Constituição Federal com a finalidade de convocar eleições gerais para o Brasil.
 é procurador do estado de Pernambuco, doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB)/Università degli Studi di Firenze.

Revista Consultor Jurídico

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