Livro de especialista mostra que os discursos de posse dos presidentes, de Castelo Branco a Lula, guardam entre si mais semelhanças do que se poderia esperar à primeira vista
Em 1964, o Brasil tinha uma população de cerca de 70 milhões de habitantes. Mesmo assim, ao ser eleito com os votos de apenas 361 pessoas, o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco agradeceu a “expressiva votação” recebida. O mesmo termo – “expressiva votação” – foi usado por outro presidente sem votos populares, Ernesto Geisel. O jovem presidente Fernando Collor evocou a memória de seu pai ao tomar posse. O mesmo fez outro Fernando não tão jovem, Fernando Henrique Cardoso. Representante da velha elite política que chegou por acaso, no meio de uma tragédia, à Presidência, José Sarney evocou Deus por estar ali. Igual a Lula, o trabalhador de esquerda, que pela primeira vez rompeu o espaço da elite política e que, longe do acaso, tentou três vezes antes de conseguir se eleger presidente. Mas como também os generais Costa e Silva e João Batista Figueiredo.
“Ainda que, estruturalmente, esses discursos (…) diferenciem-se por pertencerem a regimes, períodos e situações diferentes, eles se assemelham pela teoria da elaboração e nos provam uma realidade pouco fácil de digerir: os regimes mudam, a sociedade se transforma, o país se desenvolve e os discursos de posse são muito semelhantes”,conclui a pesquisadora Edilene Gasparini Fernandes. Mestre em Literatura e doutora em Teoria da Literatura, Edilene acaba de lançar, pela editora Unesp, o livro “A palavra do presidente – Análise dos discursos presidenciais de posse desde o golpe militar até Lula”.
Valendo-se das ferramentas das teorias literárias e da análise e estruturação de discursos desde a época grega, com Aristóteles, Edilene analisa um período de 43 anos, desde o início da ditadura militar até a posse de Lula pelos presidentes, em discursos dirigidos ao povo e ao Congresso Nacional. E chega a uma conclusão surpreendente: embora cada um desses presidentes tenha assumido em contextos históricos completamente diferentes, diante de desafios diversos, suas falas guardam grandes semelhanças. Figuras de linguagem, estratagemas para prender a atenção dos ouvintes, a evocação de Deus e da democracia, alusões à esperança renovada, à coragem e a inimigos que enfrentarão aparecem com freqüência, seja o presidente empossado um ditador ou fruto de uma esmagadora votação democrática. “Para a surpresa da constatação, os textos apresentam muito poucas alterações ao longo do tempo e dos regimes”.
É assim que Castelo Branco, após comandar um golpe e instituir uma ditadura militar que retirou do povo a faculdade de eleger seus representantes, é capaz de agradecer, ao tomar posse, a “expressiva votação” que obteve. Essa “expressiva votação” representou apenas 361 votos. Castelo Branco foi o primeiro presidente eleito por um Colégio Eleitoral, um pastiche de democracia, em que a escolha dos governantes era feita por uns poucos escolhidos. A isso, ele emenda, para reforçar a tentativa de demonstrar o caráter democrático de sua eleição, dizendo que foi “o calor da opinião pública” que o estimulou a aceitar a indicação da sua candidatura à Presidência.
Da mesma forma, recursos estilísticos repetem-se nos discursos de posses dos presidentes que se elegeram democraticamente, a partir de Fernando Collor, em 1989. Jovem, Collor representava uma vontade de renovação das práticas políticas por aqueles que o elegeram. Embora ele vá mencionar isso em seu discurso, Collor prefere, porém, evocar o passado, ao lembrar que seu avô, Lindolfo Collor, foi deputado federal, e seu pai, Arnon de Mello, foi senador. Após o impeachment de Collor, o próximo presidente eleito será Fernando Henrique Cardoso. E ele se valerá do mesmo expediente: lembrará de seu pai, Leônidas Cardoso, “um dos generais da campanha ‘O Petróleo é nosso’”.
Representante da velha elite política que se derrubava com a ditadura militar, apenas poucos meses antes, José Sarney era presidente do PDS, o partido que sustentava o regime dos generais. Por um golpe do destino, ele tomava posse em 1985, no lugar de Tancredo Neves, internado e gravemente enfermo como consequência de uma diverticulite aguda. Ele evoca, então, a vontade de Deus para explicar tal situação. “O Deus da minha fé, que me guardou a vida, quis que eu presidisse a esta solenidade”, diz Sarney. Retirante nordestino, líder sindical, em 2002, Lula foi o primeiro presidente da história do Brasil que não pertencia à elite. Em vez de produto do acaso, sua eleição foi fruto da persistência – ele tentou três vezes se eleger antes de conseguir – e de uma quantidade recorde de votos da população. Mas era também a vontade de Deus: “Primeiro, porque ser presidente da República do meu País, eu recebo isso como uma benção de Deus”. Deus está também no discurso do general Ernesto Geisel, comandante de um governo contraditório que, ao mesmo tempo, promoveu o início da abertura política e promoveu a morte do jornalista Vladimir Herzog, vítima da violência do regime: “Que Deus me dê forças a mim”.
Sinais contraditórios
É claro que, além das semelhanças, os discursos de posse dos presidentes guardam as diferenças que a resposta a cada momento histórico exigia. Mas Edilene percebe neles também sinais contraditórios. É possível ler apelos ao entendimento nas falas de generais que iriam usar a força, como Castelo Branco, ou traços autoritários em presidentes eleitos democraticamente, como Fernando Collor.
Mas as diferenças também aparecem. Na ditadura militar, os discursos dirigidos ao Congresso Nacional – que fazia parte do colégio eleitoral que elegia os generais – tendia a ser mais político e informal que os discursos dirigidos à população, mais graves e tensos naquela época. Depois da democratização, tal regra se inverteu: os discursos para o povo tornaram-se mais alegres e informais, enquanto os discursos no Congresso ficaram mais formais e técnicos.
As circunstâncias históricas também moldaram a escolha das mensagens e dos recursos estilísticos que, além das semelhanças, marcam as diferenças de cada texto. Percebe-se, por exemplo, como os discursos dos presidentes que mais se distanciaram da escolha popular – Costa e Silva e Médici – são mais técnicos e menos políticos. Médici chega a dizer que não queria ser presidente, dando à tarefa o tom de missão militar.
“A palavra do Presidente – Análise dos discursos presidenciais de posse desde o golpe militar até Lula “ – Editoria Unesp
Leia também:
Um resumo dos discursos dos presidentes, de Castelo Branco a Lula
“Ainda que, estruturalmente, esses discursos (…) diferenciem-se por pertencerem a regimes, períodos e situações diferentes, eles se assemelham pela teoria da elaboração e nos provam uma realidade pouco fácil de digerir: os regimes mudam, a sociedade se transforma, o país se desenvolve e os discursos de posse são muito semelhantes”,conclui a pesquisadora Edilene Gasparini Fernandes. Mestre em Literatura e doutora em Teoria da Literatura, Edilene acaba de lançar, pela editora Unesp, o livro “A palavra do presidente – Análise dos discursos presidenciais de posse desde o golpe militar até Lula”.
Valendo-se das ferramentas das teorias literárias e da análise e estruturação de discursos desde a época grega, com Aristóteles, Edilene analisa um período de 43 anos, desde o início da ditadura militar até a posse de Lula pelos presidentes, em discursos dirigidos ao povo e ao Congresso Nacional. E chega a uma conclusão surpreendente: embora cada um desses presidentes tenha assumido em contextos históricos completamente diferentes, diante de desafios diversos, suas falas guardam grandes semelhanças. Figuras de linguagem, estratagemas para prender a atenção dos ouvintes, a evocação de Deus e da democracia, alusões à esperança renovada, à coragem e a inimigos que enfrentarão aparecem com freqüência, seja o presidente empossado um ditador ou fruto de uma esmagadora votação democrática. “Para a surpresa da constatação, os textos apresentam muito poucas alterações ao longo do tempo e dos regimes”.
É assim que Castelo Branco, após comandar um golpe e instituir uma ditadura militar que retirou do povo a faculdade de eleger seus representantes, é capaz de agradecer, ao tomar posse, a “expressiva votação” que obteve. Essa “expressiva votação” representou apenas 361 votos. Castelo Branco foi o primeiro presidente eleito por um Colégio Eleitoral, um pastiche de democracia, em que a escolha dos governantes era feita por uns poucos escolhidos. A isso, ele emenda, para reforçar a tentativa de demonstrar o caráter democrático de sua eleição, dizendo que foi “o calor da opinião pública” que o estimulou a aceitar a indicação da sua candidatura à Presidência.
Da mesma forma, recursos estilísticos repetem-se nos discursos de posses dos presidentes que se elegeram democraticamente, a partir de Fernando Collor, em 1989. Jovem, Collor representava uma vontade de renovação das práticas políticas por aqueles que o elegeram. Embora ele vá mencionar isso em seu discurso, Collor prefere, porém, evocar o passado, ao lembrar que seu avô, Lindolfo Collor, foi deputado federal, e seu pai, Arnon de Mello, foi senador. Após o impeachment de Collor, o próximo presidente eleito será Fernando Henrique Cardoso. E ele se valerá do mesmo expediente: lembrará de seu pai, Leônidas Cardoso, “um dos generais da campanha ‘O Petróleo é nosso’”.
Representante da velha elite política que se derrubava com a ditadura militar, apenas poucos meses antes, José Sarney era presidente do PDS, o partido que sustentava o regime dos generais. Por um golpe do destino, ele tomava posse em 1985, no lugar de Tancredo Neves, internado e gravemente enfermo como consequência de uma diverticulite aguda. Ele evoca, então, a vontade de Deus para explicar tal situação. “O Deus da minha fé, que me guardou a vida, quis que eu presidisse a esta solenidade”, diz Sarney. Retirante nordestino, líder sindical, em 2002, Lula foi o primeiro presidente da história do Brasil que não pertencia à elite. Em vez de produto do acaso, sua eleição foi fruto da persistência – ele tentou três vezes se eleger antes de conseguir – e de uma quantidade recorde de votos da população. Mas era também a vontade de Deus: “Primeiro, porque ser presidente da República do meu País, eu recebo isso como uma benção de Deus”. Deus está também no discurso do general Ernesto Geisel, comandante de um governo contraditório que, ao mesmo tempo, promoveu o início da abertura política e promoveu a morte do jornalista Vladimir Herzog, vítima da violência do regime: “Que Deus me dê forças a mim”.
Sinais contraditórios
É claro que, além das semelhanças, os discursos de posse dos presidentes guardam as diferenças que a resposta a cada momento histórico exigia. Mas Edilene percebe neles também sinais contraditórios. É possível ler apelos ao entendimento nas falas de generais que iriam usar a força, como Castelo Branco, ou traços autoritários em presidentes eleitos democraticamente, como Fernando Collor.
Mas as diferenças também aparecem. Na ditadura militar, os discursos dirigidos ao Congresso Nacional – que fazia parte do colégio eleitoral que elegia os generais – tendia a ser mais político e informal que os discursos dirigidos à população, mais graves e tensos naquela época. Depois da democratização, tal regra se inverteu: os discursos para o povo tornaram-se mais alegres e informais, enquanto os discursos no Congresso ficaram mais formais e técnicos.
As circunstâncias históricas também moldaram a escolha das mensagens e dos recursos estilísticos que, além das semelhanças, marcam as diferenças de cada texto. Percebe-se, por exemplo, como os discursos dos presidentes que mais se distanciaram da escolha popular – Costa e Silva e Médici – são mais técnicos e menos políticos. Médici chega a dizer que não queria ser presidente, dando à tarefa o tom de missão militar.
“A palavra do Presidente – Análise dos discursos presidenciais de posse desde o golpe militar até Lula “ – Editoria Unesp
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