Presunção de inocência
Nos últimos dias desde 25 de dezembro o jornal O Globo tem centrado foco na aplicação pelo Supremo Tribunal Federal da Resolução 356, de 06 de março de 2008, que restringe a emissão de certidões pelas quais revela-se a existência de inquéritos arquivados e processos extintos com a absolvição do acusado, entre outras hipóteses.
O ângulo pelo qual a matéria é tratada busca associar a resolução do Supremo a alguma política contrária à transparência e, ainda que sutilmente, implica a referida política a decisões recentes da Corte, em âmbito liminar, relacionadas aos poderes do Conselho Nacional de Justiça, como se o STF ou seu presidente estivessem orientados a manter as questões judiciais delicadas, envolvendo políticos ou magistrados, intencionalmente na sombra.
O espaço de um post em blog é bastante limitado para tratar com profundidade das referidas matérias, mas até pela data da resolução, março de 2008, percebe-se que o propósito de atar temas tão díspares serve à produção de notícias, mas nada esclarece sobre do que, afinal, cuida o ato normativo do STF e isso em um perigoso caminho de enfraquecimento das garantias constitucionais.
A resolução do Supremo trata da presunção de inocência e seus efeitos, relativamente sobre as pessoas que foram investigadas, processadas e absolvidas ou até mesmo condenadas, mas cujas penas foram cumpridas, saldando sua dívida com a sociedade.
Não é algo que esteja limitado a determinada categoria de suspeitos ou acusados, como quer parecer crer a reportagem. Ao revés, a proteção derivada da presunção de inocência é aplicável a qualquer pessoa (em maio de 2010, em julgamento de mandado de segurança na 5a. Câmara Criminal, no Rio de Janeiro, adotou-se a mesma regra, em voto de minha autoria). Para os que conhecem as filigranas forenses é um tanto evidente que o STF emita certidões sobre procedimentos que tramitaram na Corte. Não pode fazer isso para procedimentos que se encerraram em outras instâncias judiciais.
Por isso a Resolução 356 refere-se à expedição de certidões "no âmbito do Supremo Tribunal Federal". Não poderia ser diferente, porque se cuida de ato normativo interno do STF. E perante o STF tramitam, em caráter originário, investigações e processos que pela Constituição reservam aos suspeitos ou acusados (e eventuais condenados, no caso cujas penas foram cumpridas) o direito de serem julgados no Supremo. Tentar ver nisso política de tutela ou favor a autoridades é ignorância ou malícia.
O princípio nuclear, de índole constitucional, para suspeitos e acusados absolvidos é o da "presunção de inocência". A garantia da intimidade e o valor imanente configurado pela "dignidade da pessoa humana" protegem o condenado cuja pena está cumprida. Apesar de tratar-se de resolução, com perímetro normativo bastante reduzido, o ato do STF emite clara orientação aos juízes e tribunais de todo país: as certidões que envolvam investigações criminais arquivadas ou processos penais findos com sentença absolutória não devem conter menção à existência destes procedimentos.
Isso não elimina, fisicamente, os autos destes processos. Não impede pesquisadores da área das ciências sociais, por exemplo, de investigar o procedimento e a decisão. Sequer configura proibição de acesso aos referidos autos, essa sim, medida sem lastro na Constituição da República, que atentaria contra a publicidade dos atos do poder público.
No equilíbrio difícil, mas necessário, entre interesses constitucionalmente tutelados que estejam em rota de colisão, a preservação dos autos dos procedimentos (incluindo inquéritos arquivados e processos com absolvição) e a vedação de emissão de certidão de "antecedentes criminais" na mesma hipótese são medidas que estabelecem compatibilidade entre publicidade e presunção de inocência. A questão subjacente - e que parece causar desconforto a mentes mais conservadoras - está em entender que tipo de relação há entre procedimentos arquivados ou com absolvição e a presunção de inocência e, ainda, que consequências negativas são essas que a resolução do STF e as decisões judiciais nela estribadas pretendem prevenir.
Até bem pouco tempo, mesmo depois da Constituição de 1988, havia juízes e tribunais que aumentavam a pena de condenados com base em antecedentes criminais, mesmo que se tratasse de inquéritos policiais arquivados. Sustentava-se a impossibilidade de se comparar em igualdade de condições quem nunca sofrera um inquérito ou respondera a processo a alguém que já havia passado por isso, apesar de inocentado.
Tal prática judiciária relativamente comum afrontava o mandamento constitucional insculpido no inciso LVII do artigo 5o. (e o mesmo princípio, que fora reconhecido pelo Brasil em tratados internacionais, como o Pacto de São José da Costa Rica e o de Direitos Civis e Políticos). Ninguém será considerado culpado senão após o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Também fora da esfera criminal expandiam-se os efeitos perversos da consideração de uma "culpa" relativa à condição de indiciado ou processado: empresas deixavam de contratar candidatos a emprego porque as certidões revelavam o "passado suspeito" dessas pessoas.
Finalmente, até em determinados espaços da esfera política, impregnados por um falso moralismo, disseminou-se a idéia de que candidatos a cargos públicos que responderam a inquérito ou processo, ainda que inocentados, não seriam portadores de "ficha limpa" e, portanto, seriam indignos de representarem seus eleitores.
Em todos estes casos ignorava-se solenemente a presunção de inocência, quer sob o prisma da tutela da condição de inocente em face do Estado, quer pelo ângulo da referida proteção na relação entre "entes privados", instituindo abominável discriminação no lugar em que o Pacto Social maior proibia, de maneira expressa, este tratamento diferenciado. A posição assumida pelo STF, calcada em um sem número de decisões do gênero, nada mais fez do que sinalizar para a definição do perímetro da tutela da inocência.
É certo que as decisões judiciais não têm o poder de superar preconceitos. Mas podem, com algum grau de eficácia, reduzir os casos em que preconceitos, e não fatos, ditam as ações no seio social. Há muito mais a ser dito sobre o assunto, mas os limites do post remetem a postagens ou textos de fôlego em outro momento e lugar.
O ângulo pelo qual a matéria é tratada busca associar a resolução do Supremo a alguma política contrária à transparência e, ainda que sutilmente, implica a referida política a decisões recentes da Corte, em âmbito liminar, relacionadas aos poderes do Conselho Nacional de Justiça, como se o STF ou seu presidente estivessem orientados a manter as questões judiciais delicadas, envolvendo políticos ou magistrados, intencionalmente na sombra.
O espaço de um post em blog é bastante limitado para tratar com profundidade das referidas matérias, mas até pela data da resolução, março de 2008, percebe-se que o propósito de atar temas tão díspares serve à produção de notícias, mas nada esclarece sobre do que, afinal, cuida o ato normativo do STF e isso em um perigoso caminho de enfraquecimento das garantias constitucionais.
A resolução do Supremo trata da presunção de inocência e seus efeitos, relativamente sobre as pessoas que foram investigadas, processadas e absolvidas ou até mesmo condenadas, mas cujas penas foram cumpridas, saldando sua dívida com a sociedade.
Não é algo que esteja limitado a determinada categoria de suspeitos ou acusados, como quer parecer crer a reportagem. Ao revés, a proteção derivada da presunção de inocência é aplicável a qualquer pessoa (em maio de 2010, em julgamento de mandado de segurança na 5a. Câmara Criminal, no Rio de Janeiro, adotou-se a mesma regra, em voto de minha autoria). Para os que conhecem as filigranas forenses é um tanto evidente que o STF emita certidões sobre procedimentos que tramitaram na Corte. Não pode fazer isso para procedimentos que se encerraram em outras instâncias judiciais.
Por isso a Resolução 356 refere-se à expedição de certidões "no âmbito do Supremo Tribunal Federal". Não poderia ser diferente, porque se cuida de ato normativo interno do STF. E perante o STF tramitam, em caráter originário, investigações e processos que pela Constituição reservam aos suspeitos ou acusados (e eventuais condenados, no caso cujas penas foram cumpridas) o direito de serem julgados no Supremo. Tentar ver nisso política de tutela ou favor a autoridades é ignorância ou malícia.
O princípio nuclear, de índole constitucional, para suspeitos e acusados absolvidos é o da "presunção de inocência". A garantia da intimidade e o valor imanente configurado pela "dignidade da pessoa humana" protegem o condenado cuja pena está cumprida. Apesar de tratar-se de resolução, com perímetro normativo bastante reduzido, o ato do STF emite clara orientação aos juízes e tribunais de todo país: as certidões que envolvam investigações criminais arquivadas ou processos penais findos com sentença absolutória não devem conter menção à existência destes procedimentos.
Isso não elimina, fisicamente, os autos destes processos. Não impede pesquisadores da área das ciências sociais, por exemplo, de investigar o procedimento e a decisão. Sequer configura proibição de acesso aos referidos autos, essa sim, medida sem lastro na Constituição da República, que atentaria contra a publicidade dos atos do poder público.
No equilíbrio difícil, mas necessário, entre interesses constitucionalmente tutelados que estejam em rota de colisão, a preservação dos autos dos procedimentos (incluindo inquéritos arquivados e processos com absolvição) e a vedação de emissão de certidão de "antecedentes criminais" na mesma hipótese são medidas que estabelecem compatibilidade entre publicidade e presunção de inocência. A questão subjacente - e que parece causar desconforto a mentes mais conservadoras - está em entender que tipo de relação há entre procedimentos arquivados ou com absolvição e a presunção de inocência e, ainda, que consequências negativas são essas que a resolução do STF e as decisões judiciais nela estribadas pretendem prevenir.
Até bem pouco tempo, mesmo depois da Constituição de 1988, havia juízes e tribunais que aumentavam a pena de condenados com base em antecedentes criminais, mesmo que se tratasse de inquéritos policiais arquivados. Sustentava-se a impossibilidade de se comparar em igualdade de condições quem nunca sofrera um inquérito ou respondera a processo a alguém que já havia passado por isso, apesar de inocentado.
Tal prática judiciária relativamente comum afrontava o mandamento constitucional insculpido no inciso LVII do artigo 5o. (e o mesmo princípio, que fora reconhecido pelo Brasil em tratados internacionais, como o Pacto de São José da Costa Rica e o de Direitos Civis e Políticos). Ninguém será considerado culpado senão após o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Também fora da esfera criminal expandiam-se os efeitos perversos da consideração de uma "culpa" relativa à condição de indiciado ou processado: empresas deixavam de contratar candidatos a emprego porque as certidões revelavam o "passado suspeito" dessas pessoas.
Finalmente, até em determinados espaços da esfera política, impregnados por um falso moralismo, disseminou-se a idéia de que candidatos a cargos públicos que responderam a inquérito ou processo, ainda que inocentados, não seriam portadores de "ficha limpa" e, portanto, seriam indignos de representarem seus eleitores.
Em todos estes casos ignorava-se solenemente a presunção de inocência, quer sob o prisma da tutela da condição de inocente em face do Estado, quer pelo ângulo da referida proteção na relação entre "entes privados", instituindo abominável discriminação no lugar em que o Pacto Social maior proibia, de maneira expressa, este tratamento diferenciado. A posição assumida pelo STF, calcada em um sem número de decisões do gênero, nada mais fez do que sinalizar para a definição do perímetro da tutela da inocência.
É certo que as decisões judiciais não têm o poder de superar preconceitos. Mas podem, com algum grau de eficácia, reduzir os casos em que preconceitos, e não fatos, ditam as ações no seio social. Há muito mais a ser dito sobre o assunto, mas os limites do post remetem a postagens ou textos de fôlego em outro momento e lugar.
Geraldo Prado é desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, integrante da 5ª Câmara Criminal.
Revista Consultor Jurídico
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