Acorda, Policial e Bombeiro Militar!


O verdadeiro desafio não é inserir uma idéia nova na mente militar, mas sim expelir a idéia antiga" (Lidell Hart)
Um verdadeiro amigo desabafa-se livremente, aconselha com justiça, ajuda prontamente, aventura-se com ousadia, aceita tudo com paciência, defende com coragem e continua amigo para sempre. William Penn.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Democratização das polícias

O militarismo apresenta dois problemas práticos para a polícia: por um lado, temos uma aplicação dogmática da ideologia militar; por outro, essa ideologia é inservível para a segurança pública em um Estado Democrático.
PM

1.

Em uma cena de um filme brasileiro, que retrata, entre outras coisas, a rotina de um batalhão da PM fluminense, é travado um diálogo entre um soldado, que deseja tirar férias já vencidas, e um sargento, que é responsável pela marcação de férias do batalhão (isto é, por organizar uma escala de férias de modo a que ninguém fique sem gozar deste direito). Neste diálogo, o soldado explica que está já há três anos sem tirar férias e que este é, afinal, um direito dele. O sargento, então, responde com a expressão que exemplifica o ambiente de ilegalidade em que ambos convivem: “soldado, quem quer rir, tem que fazer rir!”.
Essa cena, que poderia representar a ilegalidade daquele batalhão específico, ou da PM fluminense, acaba servindo como exemplo de todo um quadro de desprezo pela ordem legal e democrática que existe dentro das corporações policiais militares em todos os Estados brasileiros. Todos conhecem histórias de abusos por parte de policiais militares das mais diversas patentes: tortura, mau uso da força não letal, prisões ilegais, mau uso da força letal (grupos de extermínio e homicídios não justificados no exercício da função) e etc. Entretanto, poucas são as punições e, principalmente, a reiteração das ocorrências parece significar que não se tratam de episódios isolados, mas de um “modus operandi” de todas as polícias militares.
Indo mais longe, a manutenção de prisões manifestamente ilegais por delegados de polícia (como a prisão em flagrante de pessoas que portavam vinagre, a fixação de fiança em valores absurdos e impossíveis de serem pagos, ou a imputação do crime de formação de quadrilha apenas com o intuito de prender em flagrante), a utilização da lei de segurança nacional para autuar pessoas que, em tese, cometeram crime de incêndio (sem entrar no mérito da validade ou não da LSN frente à Constituição, essa lei traz em seu texto a previsão de que o inquérito para crime nela tipificado é de competência da Polícia Federal), ou a alta taxa de notificação de homicídios face à baixa taxa de resolução desses crimes nos mostram que o problema não é apenas das polícias militares, mas também das polícias civis.
Um Estado de Direito é aquela espécie de Estado na qual as instituições públicas (estatais) estão organizadas e reguladas pela Lei. Na acepção clássica, é o “império da lei”. O Estado Democrático de Direito é um desenvolvimento daquele, consistindo na rigidez de parte de sua Constituição, especialmente aquelas relativas à organização do Estado e a direitos e garantias. 
Nesse último tipo de Estado, qualquer violação sistemática de garantias por parte das organizações estatais pode assumir duas formas: existe um descompasso entre as garantias constitucionais (alta legalidade) e a disciplina legal de determinada instituição (baixa legalidade); ou existe uma diferença entre normatividade e realidade, isto é, entre validade e efetividade. No caso das polícias brasileiras, temos uma violação sistemática de garantias que assume a segunda forma, ou seja, existe uma diferença entre o Direito válido (dever ser do Direito) e o Direito efetivamente aplicado (ser do Direito).
Essa situação não parece ter surgido com os protestos de junho em boa parte do país, levando-nos a concluir que a ilegalidade e a violação sistemática do sistema constitucional de garantias parecem ser o verdadeiro terreno de ação das polícias: ela tornou-se a regra, quando deveria ser uma ínfima exceção. Frente a esse quadro algumas perguntas nos são sugeridas: quais serão as condições desse problema, isto é, os elementos que determinam sua existência? E como podemos remediá-las (as condições) de modo a inserir nossas polícias na ordem constitucional e legal (e democrática)?

2.

Analisando a disciplina legal e constitucional das polícias e sua aplicação na rotina das forças de segurança, podemos precisar duas condições que, aliadas à cultura e à tradição brasileira, levam aos diversos problemas que as polícias apresentam: o militarismo ou ideologia militar; e a posição institucional das polícias. A primeira condição afeta, por óbvio, unicamente a polícia militar e a segunda condição afeta ambas as polícias.
O militarismo tem no conceito de inimigo, e sua distinção de amigo, o seu princípio reitor. Uma longa tradição filosófica desenvolve noções de inimigo/amigo passando, na modernidade, por argumentos contratualistas (Rousseau, Kant, Fichte) e por Clausewitz até chegar a Carl Schmitt. Schmitt vê a divisão entre amigos e inimigos como a essência da política e acredita que o critério definidor de tal separação é a noção de guerra. Não, necessariamente, a existência de uma guerra real, mas a possibilidade de uma guerra como última razão. Assim, o ato que define o inimigo como tal, separando-o do amigo, faz parte do exercício da soberania, não estando abrangido pelo Direito.
Esse militarismo apresenta dois problemas na prática das polícias militares brasileiras: por um lado, temos uma aplicação dogmática da ideologia militar, especialmente no tocante ao princípio hierárquico; por outro lado, essa ideologia é inservível para a segurança pública em nosso Estado Democrático por incompatibilidade com suas regras de competência e com as garantias.
Em relação à aplicação dogmática, ela se dá com o alcance que adquire o princípio hierárquico que é aquele que garante a existência de uma cadeia de comando, sendo as ordens emanadas dos graus mais elevados e cumpridas por aqueles mais baixos, visando garantir o controle das ações dos subordinados pelos seus comandantes. 
O problema aparece quando as ordens superiores são vistas como legais e legítimas em si mesmas, isto é, pelo simples fato de serem emanadas de autoridade superior. Outro problema acontece com a junção dessa regra com o informalismo das ordens, permitindo que ordens ilegais sejam emanadas e devam ser cumpridas pelos subordinados. Essa aplicação do princípio hierárquico “blinda” as ordens superiores que não podem ser contestadas e, combinada com a ausência de forte controle externo, impede que a polícia investigue a polícia.
O segundo problema pode ser resumido na seguinte pergunta: a quem as polícias militares devem fazer guerra? Tratar possíveis criminosos como inimigos viola a Constituição de dois modos: em primeiro lugar, por força da presunção de inocência, só pode ser dito que alguém cometeu um crime depois do trânsito em julgado de sentença penal condenatória; em segundo lugar, as penas só podem ser aplicadas mediante ordem judicial. As polícias militares não possuem inimigos porque se possuíssem violada estaria a Constituição. Assim, de qualquer modo o militarismo é incompatível com a segurança pública.
A segunda condição por nós explicitada foi a posição institucional das polícias. Com este termo entendemos a localização das polícias no Estado brasileiro, a estruturação das carreiras policiais e as funções exercidas pelas instituições. No tocante às carreiras, as polícias são marcadas pela estagnação e pela falta de perspectivas para os seus membros: em relação à polícia militar, além de praças nunca se tornarem oficiais, temos situações esquisitas como a de sargentos com 20 anos de serviço estarem subordinados a tenentes recém-admitidos; em relação à civil são os investigadores que nunca serão delegados e encontram-se privados dos cargos de direção da corporação. 
A separação de funções entre as polícias civil e militar é baseada numa divisão ideal que, embora permita uma melhor compreensão das atividades desempenhadas pelas polícias, leva a excrescências como rixas, problemas de comunicação e multiplicação dos custos com a manutenção de estruturas duplas. Aqui, também entra a existência de uma justiça militar estadual responsável por julgar crimes praticados por policiais em razão de sua função: é uma homenagem ao corporativismo, sendo a única justiça especializada não apenas em razão da matéria, mas também da pessoa. Assim, ela se constitui em uma justiça de classe, na qual policiais são julgados por policiais.
Entretanto, de todos os problemas apresentados até aqui, nada é mais pernicioso para a boa atuação das polícias do que a sua vinculação ao poder executivo. Essa vinculação torna as polícias em polícias de governo e não de Estado: existe pouca possibilidade de atuação das polícias em relação a “amigos do poder”, além da existência de interferência do governo nas investigações.

3.

Sendo estas as condições do problema, militarismo e posição institucional, passamos à segunda pergunta, isto é, como podemos remediar essas condições de modo a inserir nossas polícias na ordem constitucional? Acreditamos que cinco mudanças deveriam ser realizadas para atacar esses problemas: a extinção das justiças militares estaduais; a desmilitarização da PM; a transformação de todas as polícias em polícias de ciclo completo; a desvinculação do poder executivo; e a ampliação dos controles internos e externos.
Acreditamos que a desmilitarização e a extinção das justiças militares estaduais estão suficientemente explicadas. A transformação de todas as polícias em polícias de ciclo completo significa que toda polícia será responsável pelo policiamento ostensivo e, também, pelas funções de polícia judiciária, em determinada circunscrição administrativa e em relação à prática de determinados fatos. Essa proposta visa remediar os problemas em relação às carreiras policiais, já que deve ser seguida pela unificação das carreiras policiais e da criação de carreiras auxiliares de apoio administrativo e de perícia.
A desvinculação do poder executivo é a garantia de autonomia administrativa e orçamentária às polícias tornando-as independentes do Executivo e, em conseqüência, dos poderes políticos locais. Talvez seja desejável algum tipo de vinculação ao Ministério Público de modo a existir coordenação do trabalho. Pensamos isso porque o Ministério Público, embora tenha a função de controle externo das polícias, exerce-a de modo muito tímido, até em razão de sua dependência do trabalho das corporações policiais.
Portanto, a ampliação dos controles internos e externos deve ser feita com a criação de ouvidorias independentes e conselhos que tenham participação de diversos órgãos da sociedade civil, do Judiciário, do Ministério Público e do Legislativo para coordenar e supervisionar o trabalho das corregedorias. O melhor modo de garantir a conformação constitucional e democrática das polícias é estabelecer rígido controle externo (e popular) à atividade policial.
Então, a desmilitarização pura e simples não resolverá os problemas com as corporações policiais. Assim, a PEC 51/13, de autoria do senador Lindbergh Farias e tendo como mentor intelectual o antropólogo Luiz Eduardo Soares, ataca alguns dos problemas que levam à ilegalidade e ilegitimidade da atuação das polícias e, por isso, deve ser saudada. Além disso, dá mais autonomia aos Estados, o que sempre é bom em um país muito grande como o nosso. Entretanto, a proposta peca por não livrar as polícias da influência dos poderes executivos locais e apesar de estabelecer ouvidorias externas, com independência funcional e orçamentária, dá ao Governador do Estado a prerrogativa de indicar o seu Presidente.

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