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quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O Mandado de Injunção e a criminalização de condutas

CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA


Na coluna Senso Incomum de 21 de agosto, Lenio Streck, Ingo Sarlet, Jacinto Coutinho, Clèmerson Clèvi e Flávio Pansieri se manifestaram contra o Mandado de Injunção (MI) 4.733, movido pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) visando o reconhecimento da mora inconstitucional do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia e a transfobia. Como advogado da ABGLT e autor intelectual das teses respectivas, cumpre-me responder aos citados autores, até por força do debate por eles iniciado (embora o artigo tenha se focado no segundo parecer da PGR no processo, ele citou trechos da ação que, assim, deveria ter sido analisada na íntegra).
Os autores (parafraseando) criticam a utilização do MI para a criminalização de condutas, por entenderem que ele se presta apenas para a garantia de direitos subjetivos carentes de regulamentação constitucional. Pois bem, não obstante haja uma espécie de inconsciente coletivo dos juristas pelo qual “só cabe” MI nesta hipótese, essa tese não é compatível com o texto constitucional positivo, que não afirma que “só cabe” MI “para garantia de direitos subjetivos carentes de concretização legislativa” ou algo do gênero. Referido dispositivo constitucional afirma que “conceder-se-á [MI] sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania (grifo nosso). O MI 4.733 enfoca na parte final do dispositivo, aparentemente (salvo melhor juízo) ignorada pela doutrina: cabe MI quando a ausência da norma regulamentadora inviabilizarprerrogativas inerentes à cidadania das pessoas. A inspiração é a doutrina de Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, pela qual ante o monopólio do uso legítimo da força pelo Estado, a criminalização de condutas, quando constitucionalmente obrigatória, é uma prerrogativa da cidadania, explicando o autor ainda que os mandados de criminalização visam proteger os direitos fundamentais (os bens jurídico-constitucionais respectivos) ameaçados pelas condutas a serem tipificadas.
Logo, é no mínimo questionável a afirmação de que “só cabe” MI em casos de “normas de eficácia limitada”, pois isto não está dito peremptoriamente pelo texto constitucional em seus limites semânticos, donde, considerando que o Direito é um conceito interpretativo (Dworkin) e que a “resposta correta” (dworkiana) é aquela que melhor se compatibiliza com as regras e os princípios do sistema jurídico concretamente considerado, entendo que a interpretação dos autores (seja ou não majoritária na doutrina) não é a que melhor se compatibiliza com o dispositivo constitucional consagrador do MI e mesmo com o controle da omissão inconstitucional por parte dos cidadãos (via MI) em uma Constituição Dirigente, que obriga o legislador a criar as leis objeto das ordens de legislar. Logo, cabível evolução na jurisprudência do STF para admitir o MI também nesta hipótese, por overruling da tese restritiva do MI 624.
O artigo entende desvirtuada a defesa do Direito Penal Mínimo (DPMín.)como ideal jurídico quando grupos vulneráveis pleiteiam a criminalização de condutas que lhes prejudicam. Com todo respeito, eles caem em uma espécie de senso comum que o signatário critica há muito em debates sobre o minimalismo penal, adotando (eles) uma espécie de Fundamentalismo do DPMín., entendido como uma incoerência com a doutrina minimalista. Isso porque o que a teoria do DPMín. propugna é que a criminalização de condutas deve se dar apenas quando houver “bem jurídico” relevante (digno de tutela penal) e, ainda, apenas quando os demais ramos do Direito se mostrarem incapazes de resolver o problema. Logo, afirma que não é qualquer conduta que deve ser criminalizada, mas apenas aquelas que atendam tais requisitos, hipótese na qual a criminalização se justificará inclusive pela teoria do DPMín., o que ocorre no presente caso.
Com efeito, nos poucos estados ou municípios que possuem leis anti-homotransfobia (com penas administrativas, como advertência, multa e, para pessoas jurídicas, suspensão ou cassação de licença de funcionamento, como no caso da Lei Estadual Paulista 10.948/01), a discriminação homofóbica e transfóbica (homotransfóbica) não diminuiu, o que mostra que os demais ramos do Direito têm se mostrado insuficientes para combater a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero cometida contra pessoas LGBT — Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Ademais, há bem jurídico digno de tutela penal, decorrente do direito fundamental à liberdade (que evidentemente o é), a saber, os direitos à livre orientação sexual e à livre identidade de gênero, logo, o direito de vivenciar sua orientação sexual ou identidade de gênero sem opressões. Obviamente tais direitos não dependem de regulamentação para poderem ser exercidos, mas estão materialmente inviabilizados pela verdadeirabanalidade do mal homotransfóbico que vivemos na atualidade, caracterizada pela clara crença de incontáveis pessoas de que teriam um pseudo “direito” de ofender, discriminar, agredir e até matar pessoas LGBT por sua mera orientação sexual ou identidade de gênero. Pessoas LGBT que moram na cidade de São Paulo chegam a ter medo de andar de mãos dadas e, enfim, agir como namorados(as) da mesma forma que casais heteroafetivos por medo de violência homotransfóbica na cosmopolitaAvenida Paulista: a famosa lampadada de 2010 virou um caso paradigmático sobre o tema, mas que está (lamentavelmente muito) longe de ser isolado. Tivemos em 2011 e 2012 os absurdos casos de heterossexuais sofrendo homofobia, a saber, pai e filho agredidos por estarem abraçados (o pai perdeu parte da orelha) e irmãos gêmeos espancados por estarem abraçados (um deles faleceu) — isso por terem sido entendidos como casais homoafetivos. Esses exemplos mostram a verdadeira banalidade do mal homotransfóbico que vivemos. Logo, cabível o MI em razão de tal circunstância por inconstitucionalidade por proteção insuficiente.
Aliás, os autores criticam o uso da teoria da inconstitucionalidade por proteção insuficiente dizendo que a mesma foi criada para declarar a inconstitucionalidade de leis e não para declarar a obrigatoriedade da criminalização de condutas. Contudo, o próprio Alessandro Barata (citado no artigo deles) fala que o garantismo penal não trata apenas da proteção dos cidadãos contra a intervenção estatal, mas abarca também o garantismo positivo, consubstanciado no dever do Estado de garantir a segurança de seus cidadãos. Ademais, há na doutrina penal a tese dos mandados de criminalização implícitos, que se configuram justamente quando a proteção estatal é insuficiente e quando atendidos os requisitos da teoria do DPMín., supra expostos. Logo, considerando que a livre orientação sexual e a livre identidade de gênero qualificam-se como bens jurídicos dignos de proteção penal e considerando a ineficácia que os demais ramos do Direito mostraram até hoje em coibir a homotransfobia, justifica-se o uso da teoria da inconstitucionalidade por proteção insuficiente para justificar a omissão inconstitucional do Congresso na criminalização da homotransfobia.
Alegam os autores que a ordem constitucional de legislar relativa ao dever de a lei punir toda discriminação atentatória a direitos e liberdades fundamentais (artigo 5º, XLI), no que inegavelmente se enquadra a homotransfobia, não demanda necessariamente uma punição criminal. A ação refuta isso com dois fundamentos. O primeiro, topológico. O dispositivo constitucional encontra-se na parte penal do artigo 5º. O segundo, material. Caracterizada a proteção insuficiente do Estado a pessoas LGBT e considerada a incapacidade dos demais ramos do Direito de resolver a situação até hoje, então a obrigação da lei punir de forma (evidentemente)eficiente tais discriminações demanda o reconhecimento da omissão inconstitucional de criminalizar a homotransfobia e, assim, a procedência do pedido (autônomo quanto aos demais) de declaração de mora inconstitucional do Congresso em fazê-lo. Fora que crimes de ódio (como os homotransfóbicos) merecem punição mais enfática do que crimes não-motivados no ódio.
Afirmam os autores que não seria possível enquadrar homofobia e transfobia como espécies do gênero racismo (mandado de criminalização do art. 5º, XLII), contudo, desconsideraram a respectiva argumentação da ação (itens 4.1.1 e 4.1.2), que demonstrou que no famoso caso Ellwanger (HC 82.424/RS) o STF adotou o conceito de racismo social para punir o antissemitismo como espécie de racismo (adotando o conceito de “raça social”, raça como construção social, que é como deve ser interpretada a criminalização da discriminação por “raça” do art. 20 da Lei 7.716/89). Ou seja, para que o racismo não se transformasse em “crime impossível” pela raça humana ser biologicamente una (conforme o Projeto Genoma, que colocou uma pá de cal na tese contrária), entendeu o STF que o racismo (social) é toda ideologia que prega a inferioridade de um grupo social relativamente a outro, conceito este referendado por Guilherme Nucci. Foi por isso que (corretamente) se considerou o antissemitismo como espécie de racismo. Ora, a homotransfobia se enquadra neste conceito ontológico-constitucional de racismo afirmado pelo STF no HC 82.424, logo, o dever de vinculação a precedentes (respeito à história institucional) demanda isto aplicá-lo relativamente à homofobia e à transfobia para considerá-las como espécies do gênero racismo. Somente um overruling de dita decisão poderia levar a conclusão contrária, mas um tal overruling demandaria concordar-se com o voto vencido do ministro Moreira Alves naquele julgado, o qual, pororiginalismo, entendeu que “racismo” deveria ser entendido apenas como abrangendo a discriminação contra pessoas negras (a negrofobia), já que esse foi o foco dos debates constituintes (com todo o anacronismo inerente ao originalismo, que não é, ao que nos consta, a posição dos autores aqui criticados); demandaria dar-se razão ao Sr. Ellwanger quando ele defendeu que teria cometido mero “crime de discriminação”, e não crime de “racismo” por ter defendido que o antissemitismo não poderia ser considerado como espécie de racismo (se o crime não fosse de racismo, estaria prescrito); demandaria a pergunta: qual o fundamento que une, como espécies de racismo, as discriminações por “cor, etnia, procedência nacional e religião”, constantes do artigo 20 da atual Lei de Racismo (7.716/89)? Seriam as três últimas meros “crimes de discriminação”? Data venia, o conceito afirmado pelo STF em Ellwanger é o que melhor se compatibiliza com o espírito constitucional de punição do racismo: o racismo negrofóbico é punido pela nefasta inferiorização de pessoas negras relativamente a brancas, donde inferiorizações equivalentes devem ser entendidas como manifestações racistas, como abarcadas na interpretação declarativa do termo “raça” do art. 20 da Lei 7.716/89.
Cabe agora defender o pedido efetivamente polêmico da ação (cujo não-acolhimento não impede o acolhimento do pedido autônomo de declaração de mora inconstitucional). Não se pediu para “criminalizar por analogia”, pediu-se para o STF exercer “função legislativa atípica” para, suprindo a omissão inconstitucional, efetivar a criminalização (sim, legislando). A tese, em apertadíssima síntese, é a seguinte. A vontade constitucional imanente às ordens constitucionais de legislar é a de que tais leis sejam criadas; a declaração de inconstitucionalidade visa tirar a situação inconstitucional do mundo jurídico; só é possível acabar com omissões inconstitucionais mediante a normatização do tema (no mínimo, embora parcialmente, no caso concreto, no caso do MI segundo a corrente concretista individual, corrente esta não aplicável a casos de criminalização se entender-se cabível o MI para elas). Logo, a menos que a ordem constitucional de legislar seja vista como mero conselho despido de imperatividade no que tange a seuaspecto positivo, então a imanência relativa às ordens de legislar gera umaeficácia jurídica positiva das mesmas a justificar a criação da lei por atuação legislativa atípica/excepcional do Tribunal Constitucional (TC – o STF, no nosso caso) para cumprir a respectiva ordem constitucional de legislar. Inclusive por força do próprio princípio da separação “dos poderes” enquanto sistema de freios e contrapesos, que demanda que um “Poder” possa controlar eficientemente o outro: a única forma de controlar eficientemente a omissão inconstitucional é mediante sua supressão pela jurisdição constitucional do TC, que demanda a criação da norma geral e abstrata pelo mesmo (corrente concretista geral do MI, fundada na isonomia). Aí a extrema pertinência do segundo parecer da PGR quando disse que o importante princípio da legalidade estrita criminal deve ser interpretado sistematicamente com a supremacia constitucional, a garantia do MI enquanto mecanismo de supressão de omissões inconstitucionais e (implicitamente) com esta eficácia jurídica positiva das ordens constitucionais de legislar, para admitir a regulamentação provisória do tema pelo TC, a perdurar até a efetiva aprovação de lei pelo Legislativo sobre o tema. Na tese de Walter Claudius Rothenburg (item 6.2.3 do MI 4733), mais importante do que quem cumpre a Constituição é cumprir a Constituição, donde se o constitucionalmente obrigado a cumpri-la não o faz, pode o TC/STF atribuir tal competência a outro órgão ou a ele próprio para fazê-lo; segundo Marinoni e Mitidiero (embora não para temas penais, no que são incoerentes no ponto), o princípio da separação “dos poderes” dá ao Legislativo o poder de criar leis, mas não de inviabilizar a Constituição, donde se ele não cria a norma que a Constituição o obriga a criar, deve o STF fazê-lo. Vide a Inicial do MI 4733 (e da ADO 26) para as fontes bibliográficas das citações deste artigo.
Por fim, é evidente que não se pretendeu pedir um tipo penal que dissesse ser crime “todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima”, mas tipos penais que reprimam todas as condutas que se caracterizassem nesse conceito abstrato, justamente para não se incorrer no vício de “vagueza”. É o que esclareci na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, movida em dezembro/2013 em nome do PPS, com o mesmo objeto (p. 13 da mesma), não obstante isso me parecesse evidente quando elaborei o MI 4.733.
Espero que os críticos leiam a íntegra da petição inicial (88 págs.; 98 na ADO 26), ou no mínimo seu item 1 (“síntese” das teses: 7 págs.; 8 na ADO), bem como o respectivo agravo regimental, para não se limitarem a afirmar coisas que a ação já refutou de antemão.
 é advogado e professor. Mestre em Direito Constitucional. Autor do livro Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos (2a Ed., São Paulo: Ed. Método, 2013).

Revista Consultor Jurídico

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