As raízes históricas do Brasil estão magnificamente retratadas em Gilberto Freire, Darcy Ribeiro, Buarque de Hollanda e Caio Prado Junior, com uma minuciosa abordagem das relações senhoriais e coloniais na formação étnico-social da nação, seus desdobramentos políticos e econômicos e nos deixando um legado para compreensão da realidade social contemporânea, com seus vieses, seus escândalos e sua má distribuição de renda.
Nessas obras elucidativas estão presentes os elementos comuns que permearam a sociedade brasileira desde o primeiro núcleo de colonização aqui instalado, com suas precariedades, seus apadrinhamentos, suas formas de senhorio patriarcais e a sempre notável relação de servilidade entre proprietários e desprovidos de bens.
A centralização do poder nas mãos dos ungidos do Rei, a formação de núcleos de povoamento no entorno dos engenhos, os senhores de engenho e o baronato açucareiro, que se transformou na desgraça social denominada coronelismo, instituída a partir de 1831, e a disposição das forças políticas regionais, trazem em si uma nova roupagem para o feudalismo europeu, com uma dose de brasilianismo mal-resolvido e uma vassalagem prolífera.
Esse servilismo que está presente no DNA do brasileiro, unido ao complexo de inferioridade que nos assola, evidencia a tendência que temos ao cordialismo destacado por Roberto DaMatta, a mesma cordialidade que acarreta o irracionalismo da violência que assombra as cidades e o campo, com crimes cada vez mais cruéis e requintados de ineditismo perverso.
A servidão social decorrente desse comportamento cordial do brasileiro se estende para as relações profissionais, seja na iniciativa privada, seja no serviço público, onde o Governo - o Grande Leviatã de Hobbes - intimida seus vassalos e lhes impõe uma subserviência muda, sufocando-lhes os anseios e melhorias da qualidade de vida.
Nas relações profissionais privadas, as conflitantes posições antagônicas do empregador e do empregado causam perdas a ambas as partes, refletindo no mercado e na estabilidade econômica, muitas vezes só atenuadas ou resolvidas pela interveniência do poder judiciário trabalhista, que, bem ou mal, encontra um meio-termo para a lide.
No serviço público, os entes envolvidos, governo e funcionalismo, se aturam. É muito comum governantes confundirem governo com Estado, esquecendo que a eles só lhes cabe nomear um pequeno percentual dos funcionários, aqueles apadrinhados, comissionados e simpatizantes, aos quais realmente se poderia denominar governo, na acepção temporária do termo.
Os demais, funcionários concursados, efetivos e nomeados, compõem Carreiras de Estado, aos quais o governante de plantão, ainda que seja quatro ou oito anos, deveria render-lhes respeito e apreço, pois quando chega ao poder já os encontra na função e, na maioria das vezes, termina o seu mandato e esses funcionários continuam gerenciando a máquina pública, indiferentemente do partido político que esteja no poder ou da bandeira ideológica que ostente.
Para manter-se no poder com o mínimo de sobressaltos possíveis, governantes se acercam de capatazes ou feitores – Casagrande e Senzala – vinculados a partidos políticos de sua base de sustentação, loteando cargos e órgãos, ressuscitando defuntos dos mausoléis partidários ou sendo obrigados a herdar cadáveres de antecessores que lhes pavimentaram o caminho do poder, ainda que a contragosto, mas para garantir sua governabilidade.
Esses capatazes, bem remunerados na medida direta de sua capacidade de subserviência e chicoteamento de seus súditos, não ruborizam as faces quando assumem órgãos ou cargos para os quais não tem a mínima competência técnica, ficando nas mãos dos carcomidos funcionários de carreira que transcendem a governos, governantes e ideologias.
A divisão dos poderes do Estado, de Montesquieu, vem sempre como uma desculpa ilógica de governantes, quando funcionários públicos – obviamente os concursados e efetivos – reclamam por melhorias salariais. Funcionários comissionados não reclamam de salário porque além de ser bom, não querem perder a “boquinha”. Estão ali porque querem. Se não quiserem o cargo, há outros centos que o querem e serão tão subservientes ou até melhor.
Desculpas vazias são divulgadas na mídia por ocasião da votação das propostas orçamentárias anuais, quando vemos a desproporção dos valores disponibilizados ao Poder Judiciário, ao Legislativo e ao Executivo, sem falar que dentro deste ultimo ainda temos o Ministério Público, ao qual é atribuído um “orçamento próprio”.
Isto se me parece uma forma de subestimar a mais basilar inteligência humana, pois a fonte de receitas para toda esta farra constitucional é a mesma, ou seja, os impostos recolhidos de todos os cidadãos.
Aos demais mortais, funcionários de carreira de Estado, serviçais que transcendem às ideologias marxistas, social-democráticas, trabalhistas e socialistas que ornam as bandeiras volta-e-meia hasteadas no mastro do Paço Governamental, resta-lhes a vala comum da boa vontade que os governantes possam ter a cada início de ano, acenando-lhes com reajustes salariais que beiram o descaramento, pois nem sequer alcançam as perdas decorrentes da inflação do período.
Certamente que Marx e Engels devem se contorcer nos seus repousos sepulcrais, quando chega alguém lá no limbo em que eles se encontram e lhes noticia como se pratica o socialismo na atualidade. Um socialismo eivado de hipocrisia e distante de todas as teorias que lhe deram suporte, jogando por terra o valor da força de trabalho, a mais-valia e o homem como ente propulsor da história.
Dentre os inúmeros órgãos que compõem a administração publica estadual encontram-se as Policias Militares que, por histórica omissão de governantes e seus feitores na prevenção e na execução da assistência social, educação e atendimento preventivo à saúde da população – homem como ser descartável - tem sido muito requisitadas e empregadas como desinfetante das feridas abertas, quando deveriam ser acionadas em último caso. Quando o Estado não cumpre sua finalidade social, para se justificar perante a população lança mão de suas forças policiais para repressão dos gritos de socorro.
Seja por mágoas de um passado latente mal-resolvido – também foram usadas pelo Regime - seja por mera desimportância social e política pela atividade e função, repetidos governantes que se alternam nos Palacetes das Unidades da Federação cedem a uma perversa tendência a espezinhar as Policias Militares de seus Estados, colocando sal e vinagre na maior de todas as feridas que elas tem: Incompatibilidade salarial.
Constitucionalmente encurraladas nos não-direitos previstos no art. 5º da Carta Magna, onde direitos sociais imprescindíveis para um pleno exercício da cidadania lhes são negados, as Polícias Militares são transformadas em algozes da sociedade quando são estumadas contra a população e servem de para-raios de todas as mazelas não solucionadas em suas origens.
Não bastasse os não-direitos contidos na CF, impõe-se aos integrantes dessas corporações um Código Penal e Processual eminentemente militar, inúmeras leis só aplicáveis aos Policiais no exercício da função e outras que lhes suprimem direitos cruciais e, administrativamente, ainda se lhes são impostos Regulamentos Disciplinares, que, dependendo da Corporação, é de fazer inveja ao Código de Hamurabi.
Gilberto Freire e os demais historiadores muito bem descreveram os instrumentos de tortura amplamente usados e aperfeiçoados pela Casagrande e que se aplicava nos serviçais que se amontoavam nas senzalas. Para o cidadão comum – embora por aqueles tempos não houvesse ainda esta definição de cidadania – aplicava-se a lei comum, com seus rituais e mistérios. Aos desprovidos de direitos, além da lei comum, aplicava-se a lei pessoal do senhorio, do barão, do coronel, que tinha poder de vida e morte sobre seus vassalos, escravos.
O tempo passou. E os novos serviçais se submetem às leis gerais e às leis particulares, intimidatórias, escorchantes, cruéis. Surge a figura do neo-feitor, com suas chibatas e sua verborragia enganosa, dissimulada e falseada pela benevolência, pela mídia e pela tecnologia.
Os ocupantes da senzala esperavam da Casagrande que pelo menos batesse, mas não matasse. Que pisoteasse, mas não castrasse. Que surrasse, mas não os desmoralizasse publicamente. Que, pelo menos uma vez no ano, lhes desse algo mais do que comida, para os diferenciar dos porcos, pois, para os fins a que se destinam, apenas estes vivem exclusivamente de ração.
A Casagrande do século XXI mantem seus escravos sob o pingalim da esperança e das promessas difusas, sem substância, confiante no fato de que da senzala não partirá nenhum levante, pois além de historicamente ser A MAIS FIEL SENZALA do Estado, não há consenso entre os seus hóspedes sobre o que realmente querem do Senhorio e, por isso, não conseguem unir forças para reagir ao pelourinho.
Enfim, vemos que pouca coisa mudou nesta história de Casagrande e Senzala, pois a ameaça sempre presente do chicote e dos grilhões, divide forças, intimida iniciativas e fragmenta a Senzala, não permitindo, assim, que os escravos reajam e lutem pelos seus direitos, ficando sentados, autofágicos, em calabouços escuros, debatendo-se a esmo, enquanto os feitores e capatazes riem e planejem as próximas maldades e a Casagrande permanece em silêncio, fazendo ouvido de mercador, alheio aos gritos que prenunciam algum fogo no canavial.
“Longe vá, temor servil...”
Eh vida de gado...!
Fonte: Recebido por e-mail
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