Direito de Defesa
É recorrente a menção ao excesso de Habeas Corpus como um dos fatores de causa da morosidade judiciária, em especial nos Tribunais Superiores. O Anuário da Justiça de 2011 indica um aumento de 700% dos writs no Superior Tribunal de Justiça e de 500% no Supremo Tribunal Federal.
Por causa disso, são frequentes as propostas de reformas legislativas para a redução do uso do Habeas Corpus, em regra sugerindo a limitação do instrumento aos casos de efetiva violação da liberdade de locomoção, e inadmitindo-o expressamente para buscar o trancamento de inquéritos e ações penais, ainda que flagrantemente ilegais. Alguns apontam que tais propostas têm o objetivo de fazer com que o Habeas Corpusseja restrito à sua função tradicional, qual seja, a de proteger apenas o exercício imediato da liberdade de locomoção.
O presente artigo não busca o mérito da discussão, cujos argumentos já são conhecidos à saciedade, mas apenas trazer algumas referências históricas para revelar que a função histórica do Habeas Corpus — ao menos no Brasil —talvez não seja aquela indicada pelos críticos de seu suposto desvirtuamento.
Na História e Prática do Habeas Corpus, assim como em seus Comentários à Constituição de 1967, Pontes de Miranda faz um cuidadoso trabalho sobre a origem inglesa do remédio constitucional, e seu desenvolvimento peculiar no ordenamento e na jurisprudência brasileira, que joga luz sobre a questão.
Previsto pela primeira vez no Código de Processo Penal de 1832 como remédio para prisão ilegal o uso do Habeas Corpus foi se alargando para alcançar a ameaça de prisão ilegal (Lei 2.033 de 1832) e, afinal, qualquer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder (Constituição de 1891, art.72 §22), ensejando que mesmo a direitos sem relação com a liberdade de locomoção poderiam ser objeto de Habeas Corpus, como a inviolabilidade de domicílio e a liberdade profissional (doutrina brasileira do Habeas Corpus).
A reforma constitucional de 1926 indicou expressamente o uso do writ apenas para proteção da liberdade do direito de ir e vir (art.122, 16), sendo reservada ao Mandado de Segurança a discussão sobre outras matérias. Mas isso não significou a redução do Habeas Corpusapenas aos casos em que o réu está preso ou sofre uma ameaça imediata de prisão. Juristas à época já defendiam que a existência de investigação ou processo penal flagrantemente ilegal ou nulo poderia ser atacado por Habeas Corpus, vez que indiretamente estaria ameaçada a liberdade de locomoção. O próprio Pontes de Miranda afirmava em seus Comentários à Constituição de 1967 que a “ilegalidade da prisão” que justifica o habeas corpus “pode não consistir na prisão mesma, porém no processo do acusado, que corra, por exemplo, perante juiz incompetente” (p.313). Ou seja, o remédio poderia ser apresentado para discussão até de competência jurisdicional.
Assim, qualquer nulidade processual ou falta de justa causa para investigação ou ação penal poderia ensejar Habeas Corpus, mesmo quando existente outro recurso ou instrumento cabível. Mais uma vez Pontes de Miranda, afastando raciocínio não raro feito pelos tribunais atualmente: “Tantas exceções há à regra jurídica ‘não cabe Habeas Corpus se há recurso em que se possa atender ao pedido’ que melhor fora não enunciá-la. A regra jurídica seria: se só em recurso pode ser atendido o pedido, não cabe habeas corpus. Mas o ‘só’ faria ressaltar a tautologia. Se a nulidade é evidente, ou se não é crime o fato, ou se não está previsto, ou se ocorreu outro caso de inexistência, ou de cessação de punibilidade, não há por onde se excluir o pedido de Habeas Corpus” (Comentários, p.327).
Diante disso, não é possível afirmar que — ao menos no Brasil — a função tradicional do habeas corpus foi a tutela única e imediata da liberdade de locomoção. Ao contrário, o instrumento sempre foi compreendido como uma garantia ampla contra abusos aos direitos fundamentais, ou ao menos a quaisquer liberdades que tivessem, de alguma forma, mesmo que distante, alguma repercussão no direito de ir e vir.
Por isso, as propostas de redução do uso do Habeas Corpuspodem até apresentar argumentos práticos ou pragmáticos — como o excesso de processos nos tribunais — mas não podem se escorar na função histórica do instituto no Brasil, pois, “a tendência foi sempre a de se ampliar o cabimento do grande remédio jurídico, com que enriqueceram o direito brasileiro os autores do Código de Processo Criminal” (Pontes de Miranda, Comentários, p.306).
E, sobre tais argumentos práticos e pragmáticos que pretendem limitar o uso do Habeas Corpus, nunca é demais lembrar a seguinte passagem do professor citado (p.333): “(os juízes) no momento de julgá-las (as petições de Habeas Corpus) devem ter presente ao espírito que o Habeas Corpus é a pedra de toque das civilizações superiores, um dos poucos direitos, pretensões, ações e remédios jurídicos processuais com que se sobrepõem aos séculos passados, mal saídos da Idade Média e do Absolutismo dos reis, os séculos da civilização liberal-democrática. Fazer respeitada a liberdade física é um dos meios de servir e sustentar essa civilização, a que todos os homens, de todos os recantos da Terra, se destinam.”
Por causa disso, são frequentes as propostas de reformas legislativas para a redução do uso do Habeas Corpus, em regra sugerindo a limitação do instrumento aos casos de efetiva violação da liberdade de locomoção, e inadmitindo-o expressamente para buscar o trancamento de inquéritos e ações penais, ainda que flagrantemente ilegais. Alguns apontam que tais propostas têm o objetivo de fazer com que o Habeas Corpusseja restrito à sua função tradicional, qual seja, a de proteger apenas o exercício imediato da liberdade de locomoção.
O presente artigo não busca o mérito da discussão, cujos argumentos já são conhecidos à saciedade, mas apenas trazer algumas referências históricas para revelar que a função histórica do Habeas Corpus — ao menos no Brasil —talvez não seja aquela indicada pelos críticos de seu suposto desvirtuamento.
Na História e Prática do Habeas Corpus, assim como em seus Comentários à Constituição de 1967, Pontes de Miranda faz um cuidadoso trabalho sobre a origem inglesa do remédio constitucional, e seu desenvolvimento peculiar no ordenamento e na jurisprudência brasileira, que joga luz sobre a questão.
Previsto pela primeira vez no Código de Processo Penal de 1832 como remédio para prisão ilegal o uso do Habeas Corpus foi se alargando para alcançar a ameaça de prisão ilegal (Lei 2.033 de 1832) e, afinal, qualquer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder (Constituição de 1891, art.72 §22), ensejando que mesmo a direitos sem relação com a liberdade de locomoção poderiam ser objeto de Habeas Corpus, como a inviolabilidade de domicílio e a liberdade profissional (doutrina brasileira do Habeas Corpus).
A reforma constitucional de 1926 indicou expressamente o uso do writ apenas para proteção da liberdade do direito de ir e vir (art.122, 16), sendo reservada ao Mandado de Segurança a discussão sobre outras matérias. Mas isso não significou a redução do Habeas Corpusapenas aos casos em que o réu está preso ou sofre uma ameaça imediata de prisão. Juristas à época já defendiam que a existência de investigação ou processo penal flagrantemente ilegal ou nulo poderia ser atacado por Habeas Corpus, vez que indiretamente estaria ameaçada a liberdade de locomoção. O próprio Pontes de Miranda afirmava em seus Comentários à Constituição de 1967 que a “ilegalidade da prisão” que justifica o habeas corpus “pode não consistir na prisão mesma, porém no processo do acusado, que corra, por exemplo, perante juiz incompetente” (p.313). Ou seja, o remédio poderia ser apresentado para discussão até de competência jurisdicional.
Assim, qualquer nulidade processual ou falta de justa causa para investigação ou ação penal poderia ensejar Habeas Corpus, mesmo quando existente outro recurso ou instrumento cabível. Mais uma vez Pontes de Miranda, afastando raciocínio não raro feito pelos tribunais atualmente: “Tantas exceções há à regra jurídica ‘não cabe Habeas Corpus se há recurso em que se possa atender ao pedido’ que melhor fora não enunciá-la. A regra jurídica seria: se só em recurso pode ser atendido o pedido, não cabe habeas corpus. Mas o ‘só’ faria ressaltar a tautologia. Se a nulidade é evidente, ou se não é crime o fato, ou se não está previsto, ou se ocorreu outro caso de inexistência, ou de cessação de punibilidade, não há por onde se excluir o pedido de Habeas Corpus” (Comentários, p.327).
Diante disso, não é possível afirmar que — ao menos no Brasil — a função tradicional do habeas corpus foi a tutela única e imediata da liberdade de locomoção. Ao contrário, o instrumento sempre foi compreendido como uma garantia ampla contra abusos aos direitos fundamentais, ou ao menos a quaisquer liberdades que tivessem, de alguma forma, mesmo que distante, alguma repercussão no direito de ir e vir.
Por isso, as propostas de redução do uso do Habeas Corpuspodem até apresentar argumentos práticos ou pragmáticos — como o excesso de processos nos tribunais — mas não podem se escorar na função histórica do instituto no Brasil, pois, “a tendência foi sempre a de se ampliar o cabimento do grande remédio jurídico, com que enriqueceram o direito brasileiro os autores do Código de Processo Criminal” (Pontes de Miranda, Comentários, p.306).
E, sobre tais argumentos práticos e pragmáticos que pretendem limitar o uso do Habeas Corpus, nunca é demais lembrar a seguinte passagem do professor citado (p.333): “(os juízes) no momento de julgá-las (as petições de Habeas Corpus) devem ter presente ao espírito que o Habeas Corpus é a pedra de toque das civilizações superiores, um dos poucos direitos, pretensões, ações e remédios jurídicos processuais com que se sobrepõem aos séculos passados, mal saídos da Idade Média e do Absolutismo dos reis, os séculos da civilização liberal-democrática. Fazer respeitada a liberdade física é um dos meios de servir e sustentar essa civilização, a que todos os homens, de todos os recantos da Terra, se destinam.”
Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.
Revista Consultor Jurídico
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