A questão aqui é democrática, pois sem imprensa livre não há democracia — e o inverso também é válido.
Como temos falado muito em direitos e o país tem se judicializado — basta ver que toda e qualquer celeuma do legislativo e do executivo tem sido levadas às portas do judiciário — talvez um modesto advogado de defesa possa lançar algumas palavras sobre fatos bastante graves à democracia e que nos fazem passear, analiticamente, por diversas circunstâncias desses nossos tempos de eleições, suas ilações e sofismas.
Movimentos sul-americanos, principalmente os de alguns detentores do Poder, têm lançado farpas contra a liberdade de imprensa, utilizando-se de palestras e criando simulacros de Leis — verdadeiras estradas minadas prestes às explosões raivosas de seus líderes.
Semana passada a Bolívia sancionou, via Senado e Presidência da República, legislação sobre punições à imprensa caso veiculem, de qualquer forma, mensagens racistas em seus conteúdos; o bombom mostra-se envenenado quando os critérios para decidir se uma informação é racista ou não cabe ao Poder Executivo, caso a caso.
Lembro-me com isso do Código Penal Cubano, que em um de seus primeiros artigos tratantes sobre os crimes em espécie afirma: “Subverter de qualquer forma o regime revolucionário. Pena: de 10 a 30 anos ou a morte”.
Não seria muito mais fácil afirmar que cabe ao Comandante em Chefe decidir o que é crime e qual é a pena?
Do carismático e engraçado Hugo Chavez, nem se fale. De trimestre em trimestre acorda mal humorado e fecha um jornal que ousa lhe contrariar.
No Brasil, talvez até pela diversidade de interesses, a coisa é mais visível, porém, por ser velada, não é comentada como verdade ocorrida, mas apenas como verdade sabida.
A Ordem dos Advogados de São Paulo, por seu Presidente, pleiteou a não exposição da obra de Gil Vicente na Bienal deste ano, e agora convida advogados para debater o tema “Limites a Liberdade de Expressão”.
José Dirceu, falando a sindicalistas, também propôs limites a tal liberdade, causando enorme constrangimento a presidenciável Dilma, uns dez dias antes do primeiro turno das eleições.
José Serra, o antagonista, é colocado nos meios de imprensa como o responsável pela demissão de Heródoto Barbeiro do comando do programa Roda-Viva — um dos mais prestigiados do país — pois este lhe dirigiu pergunta veemente sobre ponto fraco de seu governo.
Permitam-me ir um pouco mais longe e pontuar a formação de tentativa em recrudescer outros direitos: o Procurador Geral da República afirmou necessária a cassação (ou limitação) de alguns direitos e garantias individuais estabelecidos pela lei processual penal.
Esse movimento não é incomum, e sendo a história um fenômeno cíclico, sabemos muito bem para onde caminhamos.
Todos os que tentaram perpetuar-se no Poder descambaram para a violência contra os direitos. Napoleão deixou para a história a intenção de cortar a língua dos advogados. Fidel Castro estatizou a imprensa e pintou muitos muros com sangue de não concordantes do regime. As duas últimas ditaduras brasileiras também calaram a imprensa, violando também direitos como o do Habeas Corpus e o da não incriminação (pela via da tortura e da aceitação de confissões arrancadas como válidas), além da liberdade de pensamento, em minha opinião, anterior ao direito de expressão — aprendi ser recomendável pensar antes de me expressar.
Esse é o preço que se paga por sermos humanos e alçarmos humanos, com suas virtudes e vícios, ao supremo Poder legitimado pelas democracias.
Presidentes da república, ministros, advogados, procuradores gerais da república, todos tombam diante da vaidade e de crenças pessoais muitas vezes injustificáveis.
O que é espantoso é a violação do direito mais elementar da imprensa partindo da própria imprensa.
O fato é simples: O Estado de S. Paulo, um dos jornais que leio todas as manhãs, demitiu a cronista Maria Rita Kehl por opiniões lançadas em suas páginas. A razão, também, bastante simples: ela discordou, publicamente, de certos setores, principalmente paulistas, sobre as políticas sociais do Governo Lula — opinando favoravelmente sobre suas implantações — não sem antes declarar-se tranquila com a posição aberta do jornal O Estado de S. Paulo, que dias antes decidiu apoiar publicamente o candidato José Serra.
Alguns prismas se abrem.
O primeiro, mais que óbvio, trata sobre o pleno direito de instituição demitir seus funcionários, pois privada e de interesses comerciais — não públicos.
Um segundo, pouco mais complexo, trata da discordância política entre funcionários e patrões, e quais os fins, tanto comerciais como de opiniões propostos pelo jornal, além dos limites contratados sobre a liberdade opinativa (Será que a direção de um jornal não se permite o risco de ser criticada, ou de ver em suas páginas, opiniões diversas às de sua direção?).
E um terceiro, tocante à legitimidade de a imprensa criticar aberta e veementemente as fanfarronices de alguns setores do Partido dos Trabalhadores, que ousam falar em limites à liberdade de imprensa: discursos que acabam legitimados, absurdamente, quando a liberdade de manifestação parece ser intocável quando extra corporis.
Algo do tipo: “No meu jornal mando eu, e só se escreve bem do candidato que eu apoio. Caso contrário é rua”.
Esse terceiro prisma é o que interessa a esse exercício.
O jornal em questão é um totem do jornalismo brasileiro e não pode se permitir tombar por paixões tresloucadas. A história da família Mesquita é incontestável e sua luta pelas liberdades reconhecida incondicionalmente. Sempre atento e contestador, o Estadão sofreu e sofre, ainda hoje, com os restos do autoritarismo maquilados pelas entranhas de setores do Poder Público, que só se interessam por alguns poucos particulares.
Fiquei muito triste em perceber que um dos melhores de nossa imprensa, porque interessada nesse ou naquele candidato (o que é legítimo!) não conseguiu aplicar os princípios democráticos dentro de suas redações, respeitando os articulistas de opinião contrária as da chefia de redação e dos proprietários dos veículos.
Chegamos a momento de nossa história bastante interessante: saberemos, e isso seria prova de nosso amadurecimento, lidar com os dramas da democracia (é fácil ser democrata quando não é nosso o interesse contrariado pelo direito alheio) ou agiremos contraditoriamente, agindo como autoridades intocáveis quando contrariados?
Casa de ferreiro, espeto de pau?
Thoreau, em um de seus magníficos ensaios sobre a fundação dos valores democráticos americanos, afirmou que os direitos e garantias individuais foram instituídos para os momentos de crise. Saberemos lidar com isso? Respeitá-los sempre, mesmo que a massa manobrada invada as ruas reclamando seu desrespeito?
Saberemos lidar com os instantes de paixões políticas exacerbadas, receios e desejos à flor da pele, ódios e amores muitas vezes impossíveis de serem fundamentados, mas ainda respeitando a opinião alheia e sabendo que tais posições adversas justificam e engrandecem a nossa própria?
Não ousarei ser o dono da verdade, nem mesmo cometerei a loucura de me esbofetear com gigantes. Creio, apenas, ser tempo de meditações mais voltadas para a concretização de nossa República democrática e menos para os interesses de Instituições Públicas e Privadas.
Os valores republicanos devem finalmente ser meditados a sério. Precisamos saber, enfim, qual o caminho dessa viagem pela democracia, nem que seja por um motivo bem simples: para prepararmos utilmente as malas e sabermos se levamos roupa de mergulho, ou pára quedas.
Fonte: conjur.com.br
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