Mapa da violência
Por: Lisandro Diego Giráldez Álvarez
O Ministério de Justiça divulgou no dia 24 de fevereiro o estudo "Mapa da Violência 2011" do Brasil, o qual apresenta um incremento assustador do número de assassinatos, em quatro das cinco regiões do país, entre os anos de 1998 e 2008. Embora os dados divulgados possam ser considerados como um indicador do genocídio não declarado que o Brasil vive na atualidade, a mídia nacional parece não ter "olhos" para analisar essa tragédia com a magnitude que a questão merece. Vejamos uns poucos exemplos.
Para a revista Veja, na sua edição do dia 2 de março, a morte de mais de 500 mil cidadãos em 10 anos não determinou que fosse um tema de capa. Pelo contrário. A revista dedicou só uma matéria, na página número 66, intitulada "Uma morte cada dez minutos: Estudo mostra que os homicídios cresceram em quatro das cinco regiões brasileiras". O material, assinado por Laura Diniz, limitou-se a transmitir as análises do pesquisador que desenvolveu o relatório, Julio Jacobo Waiselfisz, do Instituto Sangari. Na matéria não foi apresentada qualquer análise própria, nem opiniões de outros pesquisadores "sociais" que permitam aos leitores compreender a dimensão dessa tragédia social. A jornalista enfatiza a diminuição do índice de assassinatos em São Paulo como sendo uma consequência da aplicação de políticas policiais repressivas efetivas, mas sem considerar em momento algum questões como educação, saúde ou justiça.
Genocídio e preconceito
Laura Diniz assinala que uma das explicações (quais são as outras explicações?) para o fenômeno do aumento da violência no Norte e Nordeste do Brasil seria o "[...] endurecimento da repressão em São Paulo e no Rio de Janeiro e o crescimento econômico daquelas regiões, com a consequente atração que ele provoca em quadrilhas de narcotraficantes [...]".. Maravilha. Se o crescimento econômico fosse uma explicação do aumento da violência, os países do denominado Prime iro Mundo seriam os mais violentos. Não é o caso. Não só os países de alto crescimento econômico apresentam estatísticas muito diferentes das brasileiras, como também alguns dos países vizinhos: no dia 1º de março, em sua mensagem ao Congresso Nacional, a presidenta da Argentina, Cristina Fernández, relatou que o índice de assassinatos daquele país é 5,8 por cada 100 mil habitantes, um índice muito distante dos índices do Brasil. E estamos considerando um país próximo, de condições sociais e econômicas bastante similares.
A Veja ignora esses fatos.
A revista Veja dedica só uma página para tratar da criminalidade no Brasil, mas não economiza espaço para "informar" a respeito da crise dos países árabes. Ninguém pode subestimar essa crise, mas não podemos, nem devemos, deixar de nos indignarmos ante o genocídio que o Brasil vive atualmente, o qual, pelo número de vítimas, supera em milhares as que puderam causar os regimes monárquicos do mundo árabe.
A mesma notícia foi intitulada pela revista Época do dia 24 de fevereiro como "Mapa da Violência 2011 mostra que as regiões Norte e Nordeste são as mais preocupantes" (ver aqui). Nela, o jornalista, identificado como LH, revela-se um grande desconhecedor dos dados apresentados. O relatório mostra que somente a região Sudeste melhorou o seu índice de assassinatos, enquanto o Norte, o Nordeste, e o Sul, infelizmente, aumentaram mais de 80% o número de assassinatos. Então, como uma revista pode intitular uma matéria como a Época o fez? Temos duas opções: falta de conhecimento estatístico do repórter – que considera preocupante um aumento de mais de 100%, desconsiderando que 86% também é um número bastante alarmante –, ou, ainda mais grave, um preconceito, simulado, contra o Norte e o Nordeste. Todos os dados publicados pelo informe Mapa do Delito 2 011 são escandalosos, independentemente da região considerada! Como foi analisado em 2004 por Luís Mir (na obra Guerra Civil - Estado e trauma), o Brasil vive uma guerra civil não declarada. Morrem 67,1% mais negros do que brancos
O portal de notícias R7, no dia 24 de fevereiro faz referência ao informe, dedicando uns poucos parágrafos na seção "Cidades": "Homícidios cresceram 17,8 % em dez anos no Brasil. Estados do Norte e Nordeste ficaram mais violentos; Sudeste melhorou" (ver aqui). Mais de 500 mil pessoas assassinadas só merecem uma nota mínima na seção "Cidades"? No Brasil, é sabido que a vida não vale muito, mas considerando a repercussão que uma notícia catastrófica como a analisada tem na mídia nacional, acho que cada dia vale menos. Não tem um índice na Bovespa.
Na Indonésia, o tsunami de 2004 pro vocou a morte de mais de 200 mil pessoas e todo ano são mundialmente lembradas. O tremor de terra do Chile, em 2010, causou a morte de mais de 500 pessoas (quinhentas, não 500 mil!) e ainda são lembradas. No Brasil, morreram 500 mil pessoas e nem sequer recebem um espaço decente na mídia nacional: é "só" mais uma notícia policial.
Um dado alarmante do relatório é o que indica que morrem 67,1% mais negros do que brancos. Embora o dado não seja novo, surpreendente é que esse ponto não seja considerado pela mídia como uma tragédia nacional, mais próxima a um genocídio que a uma simples notícia policial. Será que a tragédia das 500 mil vítimas não é importante para a nossa mídia, porque as vítimas principais são negras?
Mídia é tão criminosa quanto o próprio crime
Assim como a notícia do genocídio nacional parece não ser de interesse para a mídia e, infelizmente, para uma grande parte da sociedade, continuamos analisando e debatendo o caráter racista de Monteiro Lobato. Ninguém pode discordar sobre a importância de combater o racismo, aliás qualquer tipo de discriminação, mas fixar o foco em um autor que viveu em uma sociedade majoritariamente racista é, pelo menos, anacrônico.
Concordo e parabenizo Muniz Sodré pelo material publicado no Observatório da Imprensa no dia 1º de março (ver "Monteiro Lobato vai para o trono?"), mas se Monteiro Lobato era um racista confesso, o que podemos dizer dos políticos e a sociedade em geral, que olha, anestesiada, as mortes sistemáticas de, majoritariamente, milhares de negros? Deveríamos ter vergonha.
O Brasil é um país onde as grandes questões sociais chegam, quando chegam, com anos de atraso. O debate e as "lutas" do movimento negro parecem ter chegado ao Brasil com 50 anos de atraso e copiando um dos piores modelos do mundo no quesito das diferenças raciais: o modelo estad unidense, país no qual o racismo permanece vigente, mas com certa dose de anestesia sendo aplicada através de sistemas de cotas nas universidades, nas empresas privadas ou no fomento de políticas de discriminação positiva. Criticar o racismo de autores que não podem se defender, e cujas obras foram criadas em uma época nitidamente racista, é relativamente simples; o complexo é tentar combater o racismo e as desigualdades socioeconômicas gritantes do presente.
Grande parte da mídia nacional ignora o genocídio que acontece em "nosso quarteirão", mas não hesita em dedicar horas e mais horas, páginas e mais páginas, para "informar" sobre alguns crimes cometidos contra figuras midiáticas ou, principalmente, vítimas da considerada classe média. Essa atitude comunicacional é tão criminosa quanto o crime propriamente dito.
Desde que comecei a escrever esta matéria já morreram mais de seis pessoas. Espero que não sejam conhecidos, amigos ou familiares dos leitores.
Lisandro Diego Giráldez Álvarez é Químico, doutor em Fisiologia pela Universidad de Buenos Aires, pós-doutor em Neurociência pela Universidad Complutense de Madrid, Universidade Federal da Bahia e diretor da Agenciencia – Comunicación Científica.
Fonte: Observatório da Imprensa
Para a revista Veja, na sua edição do dia 2 de março, a morte de mais de 500 mil cidadãos em 10 anos não determinou que fosse um tema de capa. Pelo contrário. A revista dedicou só uma matéria, na página número 66, intitulada "Uma morte cada dez minutos: Estudo mostra que os homicídios cresceram em quatro das cinco regiões brasileiras". O material, assinado por Laura Diniz, limitou-se a transmitir as análises do pesquisador que desenvolveu o relatório, Julio Jacobo Waiselfisz, do Instituto Sangari. Na matéria não foi apresentada qualquer análise própria, nem opiniões de outros pesquisadores "sociais" que permitam aos leitores compreender a dimensão dessa tragédia social. A jornalista enfatiza a diminuição do índice de assassinatos em São Paulo como sendo uma consequência da aplicação de políticas policiais repressivas efetivas, mas sem considerar em momento algum questões como educação, saúde ou justiça.
A revista Veja dedica só uma página para tratar da criminalidade no Brasil, mas não economiza espaço para "informar" a respeito da crise dos países árabes. Ninguém pode subestimar essa crise, mas não podemos, nem devemos, deixar de nos indignarmos ante o genocídio que o Brasil vive atualmente, o qual, pelo número de vítimas, supera em milhares as que puderam causar os regimes monárquicos do mundo árabe.
O portal de notícias R7, no dia 24 de fevereiro faz referência ao informe, dedicando uns poucos parágrafos na seção "Cidades": "Homícidios cresceram 17,8 % em dez anos no Brasil. Estados do Norte e Nordeste ficaram mais violentos; Sudeste melhorou" (ver aqui). Mais de 500 mil pessoas assassinadas só merecem uma nota mínima na seção "Cidades"? No Brasil, é sabido que a vida não vale muito, mas considerando a repercussão que uma notícia catastrófica como a analisada tem na mídia nacional, acho que cada dia vale menos. Não tem um índice na Bovespa.
O Brasil é um país onde as grandes questões sociais chegam, quando chegam, com anos de atraso. O debate e as "lutas" do movimento negro parecem ter chegado ao Brasil com 50 anos de atraso e copiando um dos piores modelos do mundo no quesito das diferenças raciais: o modelo estad unidense, país no qual o racismo permanece vigente, mas com certa dose de anestesia sendo aplicada através de sistemas de cotas nas universidades, nas empresas privadas ou no fomento de políticas de discriminação positiva. Criticar o racismo de autores que não podem se defender, e cujas obras foram criadas em uma época nitidamente racista, é relativamente simples; o complexo é tentar combater o racismo e as desigualdades socioeconômicas gritantes do presente.
Lisandro Diego Giráldez Álvarez é Químico, doutor em Fisiologia pela Universidad de Buenos Aires, pós-doutor em Neurociência pela Universidad Complutense de Madrid, Universidade Federal da Bahia e diretor da Agenciencia – Comunicación Científica.
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