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segunda-feira, 28 de março de 2011

Política de prevenção para hemofilia é necessária

Por Ricardo Emílio Pereira Salviano
 
Evidencia-se que a esmagadora maioria da população não dispõe de condições financeiras para arcar com os altos custos dos tratamentos de saúde, por isso precisam recorrer à rede pública para realizar consultas, exames laboratoriais, cirurgias, bem como para obter a medicação indicada pelo especialista.
Ocorre que, embora exista a previsão normativa no art. 196 da Carta Magna no sentido de que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, é de se reconhecer que a população se encontra desamparada, sendo rotineira a notícia pela imprensa de longas filas nos hospitais, falta de medicamentos, ausência de leitos de UTIS, carência de pessoal, dentre outros problemas já conhecidos dos usuários do SUS.
A defensoria tem constatado a existência de uma enorme distorção entre o postulado constitucional e a efetiva concretização deste direito fundamental. São inúmeras as demandas diárias que chegam ao conhecimento da Defensoria Pública e que exigem um esforço imensurável dos aguerridos colegas para conseguirem resguardar, de fato, um direito básico e elementar de todo cidadão, o direito à proteção da saúde.
Nessa perspectiva é que surge a preocupação de se preservar o mínimo existencial quando nos referirmos ao princípio da dignidade pessoa humana, no sentido que todos possuem o direito de ter uma vida digna e que o Estado tem o dever de assegurar um padrão mínimo de condições materiais indispensáveis à existência.[1]
A Constituição Federal lança as diretrizes que norteiam a atuação do Estado na efetivação do acesso ao serviço de saúde, dentre as quais importa registrar a norma contida no art. 198, inciso II:
"Art. 198 – As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
(...)
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais."
Em atenção ao referido preceito constitucional, a Lei 8.080/90 elenca como um dos objetivos do Sistema Único de Saúde, em seu artigo 5º, inciso III: 'Aassistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas".
Dessa forma, a Lei 8080/90 reconhece o dever do Estado de garantir o direito à saúde, conferindo-lhe a tarefa de realizar a integração da assistência e da prevenção, modalidades de proteção à saúde consideradas indissociáveis.
No caso específico do tratamento da hemofilia, constata-se que, paralelamente à questão do atendimento assistencial farmacêutico aos hemofílicos mediante a distribuição gratuita de medicamentos, a medicina aponta um caminho seguro e eficaz no tratamento do tipo mais grave da doença, consistente na realização da atividade preventiva denominada profilaxia primária.
Os portadores da hemofilia nascem com falhas na produção de proteínas de coagulação do sangue devido a fatores genéticos. Em razão dessa anomalia, pequenos cortes podem se transformar em graves problemas de saúde, sendo que os sangramentos internos, notadamente nos músculos e articulações, são as maiores preocupações dos especialistas. Nessa ótica, a profilaxia primária é utilizada pelos médicos para eliminar os riscos de hemorragia por meio do uso de fatores de coagulação, com o objetivo de transformar um paciente com fenótipo de hemofilia severa em um paciente com hemofilia moderada, minorando o surgimento de sangramento espontâneo.
Ocorre que atualmente o Ministério da Saúde disponibiliza para os hemofílicos apenas o tratamento assistencial, de forma repressiva, com a oferta de fatores coagulantes em casos de sangramentos. Tais medicamentos agem para substituir as proteínas de coagulação do sangue.
No entanto, é necessário um tratamento periódico e preventivo mediante o fornecimento de injeções de fatores coagulantes aos hemofílicos mais severos. Nesses casos, a profilaxia primária tem resultados significativos nos pacientes, com a redução dos sangramentos e a diminuição dos riscos de ficar com seqüelas.
A medida é benéfica tanto do ponto de vista científico como do ponto de vista econômico, uma vez que, com a adoção do tratamento preventivo, o Estado não terá que arcar com internações, cirurgias, ressonâncias magnéticas ou próteses no futuro. Por essa razão, embora a profilaxia primária tenha um custo elevado, ainda assim compensa aos cofres públicos. Desta feita, é indispensável a instituição de uma política pública preventiva de âmbito nacional voltada para a hemofilia.
É alarmante a morosidade do Ministério da Saúde na revisão dos protocolos clínicos e das diretrizes terapêuticas, vez que a população não pode esperar desamparada pela adoção tardia de medidas comprovadamente mais eficazes no tratamento da hemofilia.
De outro giro, é imprescindível a distribuição gratuita de medicamentos para o tratamento da doença na atuação repressiva. O Ministério da Saúde, por meio da Portaria 2.981, de 26 de novembro de 2009, recentemente alterada pela Portaria 343, de 22 de fevereiro de 2010, regulamentou e aprovou, no âmbito do Sistema Único de Saúde, o componente especializado da assistência farmacêutica como parte da Política Nacional de Assistência Farmacêutica, integrante do Bloco de Financiamento da Assistência Farmacêutica, conceituando-o, em seu art. 8º, como uma “estratégia de acesso a medicamentos no âmbito do Sistema Único de Saúde, caracterizado pela busca da garantia da integralidade do tratamento medicamentoso, em nível ambulatorial, cujas linhas de cuidado estão definidas em Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas publicados pelo Ministério da Saúde.”
Em seu artigo 9º, a Portaria definiu as responsabilidades dos entes federados, estabelecendo que “os medicamentos que fazem parte das linhas de cuidado para as doenças contempladas neste componente estão divididos em três grupos com características, responsabilidades e formas de organização distintas, quais sejam: Grupo 1 - Medicamentos sob responsabilidade da União; Grupo 2 - Medicamentos sob responsabilidade dos Estados e Distrito Federal e Grupo 3 - Medicamentos sob responsabilidade dos Municípios e Distrito Federal”.
Como se vê, a conjugação dos dispositivos da Constituição Federal, da Lei 8080/90, das Portarias da Política Nacional de Medicamentos e do Componente Especializado atribui de modo harmônico, entre as esferas de governo, as competências geradas pelo dever do Estado de garantir e proporcionar o direito à saúde e conseqüentemente o acesso aos medicamentos, de modo que cada Ente Federado possui sua parcela de responsabilidade, da qual não podem se eximir.
Todas as considerações feitas justificam-se, plenamente, quanto à sua pertinência, em face da própria relevância do tema, consistente na realização de políticas públicas de saúde voltadas para o tratamento dos hemofílicos. Esses argumentos devem contribuir para a formulação da política governamental na área da saúde pública, até mesmo pela experiência vivenciada, no dia a dia, pela Defensoria.
Diante disso, é fácil perceber que a demora e a má gestão estatal em não disponibilizar, no âmbito do SUS, o tratamento adequado aos hemofílicos mediante a reformulação dos protocolos clínicos e das diretrizes terapêuticas não podem servir de pretexto para a contumaz ofensa ao postulado constitucional da dignidade da pessoa humana[2] (CF, art. 1º, III).
É preciso atentar-se para o objetivo maior do próprio Estado, ou seja, o de proporcionar o mínimo suficiente para conferir aos cidadãos uma vida digna. Essa tarefa não é atribuição apenas do Poder Executivo na execução das políticas públicas, mas também do Poder Legislativo na elaboração das leis e aprovação do orçamento, do Tribunal de Contas na fiscalização das contas, do Ministério Público na promoção e defesa dos direitos dos cidadãos e da Defensoria Pública na garantia do acesso à justiça.
A propósito, é atribuída ao Legislativo a competência para deliberar sobre a destinação dos recursos orçamentários. Contudo, nota-se que essa competência não é absoluta, pois a efetivação dos direitos fundamentais exige prioridade na distribuição e aplicação desses recursos. A liberdade de atuação do legislador encontra limites e está vinculada à observância do padrão mínimo para assegurar as condições materiais indispensáveis à dignidade da pessoa humana. Isso importa afirmar que, caso ocorra violação ao postulado constitucional da vida digna, em virtude da omissão do legislador, o Poder Judiciário está legitimado a intervir para garantir esse mínimo existencial, de forma a preservar o direito à saúde. Neste sentido, as decisões sobre prioridades a serem estabelecidas no orçamento pelo legislador deixam de assumir o viés da discricionariedade política, diante da prioritária imposição constitucional do respeito aos direitos fundamentais, de modo que a competência para torná-las efetivas pode ser transferida do Legislativo para o Judiciário[3].
Como se vê, a não observância dos preceitos constitucionais, legais e da política nacional sanitária deve ser combatida com rigor, sob pena da manutenção de um estado de risco demasiadamente alto para os cidadãos que necessitam da prestação gratuita dos serviços de saúde.

[1] Mendes, Gilmar Ferreira, Coelho, Inocêncio Mártires, Branco, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêtica Constitucional e Direitos Fundamentais; editora Brasília jurídica; 2002.
[2] “Os direitos fundamentais à vida e à saúde são direitos subjetivos inalienáveis, constitucionalmente consagrados, cujo primado, em um Estado Democrático de Direito como o nosso, que reserva especial proteção à dignidade da pessoa humana, há de superar quaisquer espécies de restrições legais”. STJ, 1. T, AgRg no REsp 1002335/RS, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 22/09/2008.
[3] HAGE, Jorge. Omissão Inconstitucional e Direito Subjetivo, 2001, PAG. 56/57.

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