Quem deseja saber como pensam os ministros dos tribunais superiores e do Supremo Tribunal Federal tem duas opções: tentar agendar audiências em todos os 89 gabinetes, ou abrir as páginas do próximo Anuário da Justiça. Em sua quinta edição, a publicação inovou. Além do perfil dos magistrados e das principais decisões do último ano, o Anuário da Justiça Brasil 2011 traz agora a opinião de cada um sobre os temas palpitantes do momento e os doutrinadores mais lidos. O lançamento ocorre no dia 30 de março, no STF, juntamente com o do livro As Constituições do Brasil, obra organizada pelo presidente da corte, ministro Cezar Peluso.
Ao todo, nas entrevistas e levantamentos jurisprudenciais feitos pela equipe da ConJur para o Anuário, foram respondidas 30 questões envolvendo as maiores polêmicas que circularam pelo Judiciário no último ano, divididas por tribunal e, no caso do Superior Tribunal de Justiça, também por Seção. Os assuntos passaram por temas constitucionais, cíveis, processuais, criminais, administrativos, eleitorais, trabalhistas, tributários e militares. Os ministros do STF responderam a seis cada um. Aos demais foram feitas quatro perguntas.
Uma delas trata da relação do Judiciário com o Executivo quando o assunto é políticas públicas — tema que o leitor pode conferir como aperitivo do que vai encontrar no Anuário. Se tivessem de decidir de forma abstrata em um julgamento, os ministros do STF e do STJ concordariam, por maioria, que o Judiciário pode sim determinar que a administração execute políticas públicas em casos específicos, como os que envolvem o direito à educação e à saúde.
Na corte suprema, seis dos 11 ministros se manifestaram dessa forma, e um admitiu a possibilidade sem qualquer ressalva. Três, no entanto, afastam o entendimento como regra, entre eles o presidente da casa, ministro Cezar Peluso.
No STJ, o resultado foi parecido. Seis integrantes da 1ª Seção, que julga Direito Público, concordaram que a Justiça tem essa incumbência. Apenas um não fez qualquer ressalva quanto a limites. Outros três dizem que a regra é o inverso, dois de forma taxativa.
No cerne do problema estão dois conceitos igualmente constitucionais. Um deles é o princípio da separação dos Poderes, usado como argumento por administradores públicos contra ações judiciais pedindo providências do Estado. A tese reconhece ser função dos governantes garantir à população um mínimo de saúde e educação, por exemplo, mas reserva aos mandatários definir como e quando atender a esses direitos. Faz sentido, já que o administrador não pode ordenar gastos além do orçamento aprovado pelo Legislativo, inclusive sob pena de ser incriminado na Lei de Responsabilidade Fiscal.
De outro lado está quem defende que não está sob a discricionariedade do poder público decidir se cumpre ou não a Constituição. Como são fundamentais os direitos à saúde e à educação, principalmente quando estão em jogo o perigo iminente à vida ou o futuro de crianças e adolescentes, não há espaço para discussão: chefes do Executivo têm que tomar as medidas necessárias nos casos concretos aconteça o que acontecer. Se forem omissos, o Judiciário, quando provocado, pode ordenar que medidas sejam tomadas, e punir com multa ou prisão quem descumprir a decisão.
A posição, que prevalece na cúpula do Judiciário, causa arrepios aos administradores. Ações pedindo o fornecimento, pelo Sistema Único de Saúde, de caros medicamentos importados ameçam os orçamentos municipais e estaduais. A estratégia adotada tem sido alegar o que o ministro Gilmar Mendes (foto), do STF, chamou de “reserva do possível”, espécie de ressalva feita quando houver risco de que os serviços a toda a coletividade fiquem comprometidos diante de uma decisão isolada, que demande as reservas do erário.
Dilema supremo
“É difícil para o Judiciário fazer essa intervenção, pois sua execução depende de um desenho de política pública, de orçamento, e pode esbarrar no chamado limite do financeiramente possível”, disse o ministro Gilmar Mendes, respondendo à questão. Segundo ele, embora a invocação da reserva do possível não imunize a administração quanto ao cumprimento de seu papel, é preciso levar esse fator em consideração.
“É difícil para o Judiciário fazer essa intervenção, pois sua execução depende de um desenho de política pública, de orçamento, e pode esbarrar no chamado limite do financeiramente possível”, disse o ministro Gilmar Mendes, respondendo à questão. Segundo ele, embora a invocação da reserva do possível não imunize a administração quanto ao cumprimento de seu papel, é preciso levar esse fator em consideração.
O ministro Dias Toffoli, do STF, tem entendimento semelhante. “O que o Judiciário não pode é dizer de que forma a política pública deve ser efetivada na área da saúde, na área da educação. Não pode influir no desenho da política pública. Mas pode decidir que o Estado é obrigado a dar ao cidadão acesso a essas garantias”, afirma.
Segundo o ministro Ricardo Lewandowski, também do Supremo, a regra é cada Poder se manter em seu devido lugar, mas direitos fundamentais devem ser imediatamente implementados. “Nesse caso, não há que se falar em reserva do possível, pois entram em cena valores constitucionais mais elevados”, diz. “A invocação da cláusula da reserva do possível é legítima enquanto for real, e mais do que isso, enquanto não for invocada para fraudar o cumprimento de um dever”, defende o ministro Celso de Mello (foto), decano do STF. Já para o ministro Ayres Britto, o argumento pode até ser levado em consideração, mas não se sobressai à Constituição. “Se as políticas públicas estão previstas na Constituição, é papel do Judiciário tirá-las do papel”, resume.
Para o presidente da corte, ministro Cezar Peluso, a prática não pode ser tão radical. “É o Executivo, e não o Judiciário, que sabe, de acordo com seu orçamento e as prioridades da população, se deve fazer ou não uma creche, e de que maneira. Nossa função não é nem administrar nem legislar”, diz. Moderado também é o tom do ministro Marco Aurélio. “O Supremo Tribunal Federal não implementa política governamental”, afirma.
Seção dividida
No STJ, o ministro Hamilton Carvalhido não costuma ser tolerante com alegações de governantes quanto a falta de recursos para executar políticas imprescindíveis. Segundo ele, o argumento pode ser usado como artifício para protelar. “Temos de mandar fazer. Explicações quanto à reserva do possível têm de ser muito bem dadas. O Estado tem o ônus de comprovar o que diz”, exige. A mesma opinião tem o ministro Humberto Martins, que lembra de julgado da 2ª Turma em que o colegiado determinou a um município que construísse creches, com base na previsão de ser dever do Estado assegurar esse atendimento.
No STJ, o ministro Hamilton Carvalhido não costuma ser tolerante com alegações de governantes quanto a falta de recursos para executar políticas imprescindíveis. Segundo ele, o argumento pode ser usado como artifício para protelar. “Temos de mandar fazer. Explicações quanto à reserva do possível têm de ser muito bem dadas. O Estado tem o ônus de comprovar o que diz”, exige. A mesma opinião tem o ministro Humberto Martins, que lembra de julgado da 2ª Turma em que o colegiado determinou a um município que construísse creches, com base na previsão de ser dever do Estado assegurar esse atendimento.
Para o ministro Castro Meira, nas questões que envolvem direito à vida, não há o que o Estado argumentar a seu favor. Porém, “o Judiciário precisa ter o cuidado de não fazer determinações que culminem na prática de um ilítico pelo administrador, com despesas não previstas no orçamento”.
Na opinião do ministro Herman Benjamin (foto), o dilema não é tão grande. “Como executor da lei, o Judiciário deve controlar políticas públicas já legisladas, como aquelas reguladas por leis cujo título já traz o termo ‘política pública’”, define. São exemplos as leis que implementam as políticas nacionais de meio ambiente, resíduos sólidos, dos portadores de deficiência e do idoso. “O que o juiz não pode é inventar e receitar medidas.”
É o que também diz o ministro Teori Zavascki, segundo o qual a formulação de políticas públicas demandam avaliações técnicas, escolhas políticas e suporte material e pessoal, que o Judiciário definitivamente não tem. “Mas pode exigir o cumprimento das já formuladas”, lembra.
O ministro Mauro Campbell Marques contemporiza. “O Estado tem de garantir ao cidadão o princípio do mínimo necessário previsto constitucionalmente. Quando isso não é feito, o Judiciário deve socorrer o cidadão”, admite. Porém, não é aceitável, segundo o ministro, que o Judiciário seja protagonista das medidas. “A ordem da competência para a realização das políticas públicas é Legislativo, Executivo e, por último, o Judiciário.” O presidente da 1ª Turma, ministro Benedito Gonçalves, prefere o equilíbrio. “Diante de um pedido de tratamento ou medicamento indispensável para a vida da parte, e o Estado alegando a reserva do possível para não atender, cabe ao juiz tentar trazer as partes para um acordo, a melhor saída nesses casos.”
Um Judiciário que conheça seu lugar na República é como o ministro Asfor Rocha espera ver os julgadores diante de situações como essa. “A Justiça pode garantir direitos constitucionais e evitar práticas ilegais, mas sem impor ao agente público a obrigação de implementar tais e quais políticas públicas”, pondera. O ministro Arnaldo Esteves Lima também tem como regra geral a separação dos Poderes, mas ressalva: “Nosso sistema não é estanque. O Executivo também legisla, e o Legislativo pode administrar”.
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