DEBATE ABERTO
Para a concepção neoliberal, já não basta o fato de o trabalho se estar a desmembrar e a desarticular sob múltiplas – e cada vez mais precárias – formas contratuais. A sua “utopia” (na verdade uma distopia) é um sistema em que o domínio do mercado não só submete os trabalhadores como os torna completamente descartáveis.
Elísio Estanque e Manuel Carvalho da Silva
O trabalho é uma dimensão essencial da economia e da sociedade. Todavia, a forma como se encara o campo laboral tem revelado ao longo da história, e continua a revelar, concepções antagônicas. Por vezes o trabalho assalariado é encarado como uma mera mercadoria, outras vezes como uma tarefa que, além de ser vital para a sociedade, confere dignidade e respeito àqueles que a executam. Para uns, preserva uma dimensão ética e de prazer, e é fonte de dignidade, de realização e de obra (Lutero, Weber); para outros, é sinônimo de atividade e de energia transformadora, fator de criação de riqueza, como foi consagrado pela teoria do valor-trabalho (A. Smith, Marx).
A palavra latina Tripalium, que está na raiz etimológica de “trabalho”, correspondia no Império Romano a um instrumento de tortura e, como sabemos, ao longo da Idade Média foi negado ao trabalhador, tal como ao escravo e ao servo, qualquer estatuto de dignidade. Trabalhar foi durante muitos séculos visto como algo execrável e estigmatizante. Era o tempo em que o «ócio» era apanágio das elites e o trabalho era relegado para escravos, servos ou indigentes. A era do «neg-ocio» é recente. Foi, nomeadamente, com a ajuda do calvinismo e do protestantismo que se reconheceu ao trabalho e à atividade econômica (ao negócio) um novo sentido ético, positivo, libertador e até salvífico. Mas, mesmo após a máquina a vapor e a expulsão dos camponeses (fatores decisivos da Revolução Industrial) a contradição manteve-se: o homo faber é aquele que se realiza no trabalho e pelo trabalho, manipulando a técnica – um prolongamento do homo sapiens –, embora na prática tal concepção seja negada desde os primórdios do capitalismo. Infelizmente, não faltam os exemplos deploráveis de como o trabalho é muitas vezes sinônimo de uma realidade opressiva e alienante. Basta lembrar os cenários retratados em filmes como Metropolis (F. Lang, 1925) ou Tempos Modernos (C. Chaplin, 1936).
Vale a pena recordar Marx para lembrar que o trabalho é um elemento vital da sociedade. Ele foi, sem dúvida, um dos que melhor definiu a natureza social do Homem e ao mesmo tempo soube identificar o caráter contraditório, injusto e paradoxal do capitalismo moderno. Na verdade, este sistema, resultante da confluência entre o progresso técnico, o mercado livre e o trabalho assalariado, promoveu do mesmo passo as maiores conquistas civilizacionais e as formas mais desumanas de dominação e exploração. E aí se inscrevem alguns dos sentidos paradoxais do trabalho nas sociedades modernas.
É verdade que o mundo desenvolvido, já no século XX, instituiu o Direito do Trabalho e reconheceu importantes direitos aos trabalhadores, tornando a profissão e o emprego um fator de realização e de progresso, elementos estruturantes da edificação do Estado Providência. Mas isso não foi dado de bandeja. Decorreu das inúmeras lutas laborais e sindicais desde o século XIX, contribuindo para um maior reequilíbrio na distribuição da riqueza e outras conquistas sociais que trouxeram mais justiça e harmonia, designadamente, às sociedades europeias. Sabemos bem que a sociedade mudou e que é preciso responder a múltiplos questionamentos e dificuldades desse modelo social. Mas temos de impedir que se atire para o “caixote do lixo da história” essa referência essencial. Numa perspectiva institucional e reformista, precisamos de manter o papel regulador do Estado, recuperar e fortalecer políticas sociais que travem o capitalismo cada vez mais descontrolado e assim dar um novo sentido ontológico aos valores do universalismo, da solidariedade, do progresso e da justiça social que a Europa nos legou.
Evidentemente que existem empresários com sentido ético e de responsabilidade social. Esses, porém, são infelizmente a exceção, em particular em tempos de sistemática invocação da crise. Por isso é que o fim do Direito do Trabalho – enquanto direito que jamais se pode submeter às designadas leis do mercado – significaria o acirrar do despotismo por parte de patrões sem formação, sem capacidade de liderança e sem consciência social. Na verdade, a visão dominante acerca do trabalho exprime-se, no momento atual, numa ideologia anti-direitos laborais, segundo a qual os diferentes regimes e formas de prestação devem ser nivelados “por baixo”, tornando cada vez mais o trabalho numa mera peça – quantificável –, um “custo” que se mistura com um vasto somatório de taxas, números e índices, simples elemento de uma engrenagem econômica (segundo a noção mais estreita e abstracta da economia). Deve por isso perguntar-se: é a economia separável da sociedade e das pessoas? Se é, faz sentido ser a primeira a impor-se às segundas? Não deverá ser o contrário, isto é, a economia ser colocada ao serviço das pessoas?!
O artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos do Homem afirma: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. O trabalho não é mero número. O trabalho deve contribuir para aquele objetivo e nunca resumir-se a servir os objectivos de uma economia desumanizada e submetida à ditadura dos mercados. Como se afirma na Declaração de Filadélfia (sobre os fins e objetivos da Organização Internacional do Trabalho), “o trabalho não é uma mercadoria”.
Para a concepção neoliberal, já não basta o fato de o trabalho se estar a desmembrar e a desarticular sob múltiplas – e cada vez mais precárias – formas contratuais. A sua “utopia” (na verdade uma distopia) é um sistema em que o domínio do mercado não só submete os trabalhadores como os torna completamente descartáveis. Deseja-se voltar aos velhos tempos do taylorismo puro e duro, apoiado na absoluta impotência de “exércitos famintos” de força de trabalho sem qualquer tipo de vínculo, nem direitos, nem dignidade. E espera-se, a todo o momento, a extinção dos sindicatos.
Um tal cenário seria um regresso à barbárie, aos tempos da mendicidade e da “vagabundagem” do século XVIII. A esta visão – em que se filiam os programas de austeridade em curso –, importa contrapor e lutar por uma nova centralidade do trabalho, requisito para a retoma do crescimento económico e condição para a construção de uma alternativa ao “austeritarismo” que nos está a ser imposto.
Apesar das profundas transformações que os regimes produtivos e as relações laborais sofreram nos últimos anos, o potencial do trabalho (e da indústria) não desapareceu. E a sua centralidade reforçou-se. Além de fator de produção e de desenvolvimento, o trabalho é um importante espaço de construção identitária, um campo de afirmação de qualificações, uma fonte de emanação de direitos e de cidadania. Quando os trabalhadores choram à porta de cada fábrica encerrada não é apenas por terem perdido a sua fonte de subsistência. É porque se sentem agredidos no mais fundo da sua dignidade humana. Ou seja, o trabalho é uma dimensão fulcral de sociabilidade que liga o indivíduo à natureza e à sociedade. Nele se exprimem e se reestruturam dimensões indissociáveis – como sejam a componente social, cultural, política e económica – de uma sociedade democrática avançada e coesa. Remeter o trabalho para o estatuto de dimensão intangível ou algo etéreo e completamente desumanizado só pode ser obsessão de mentes mal formadas ou empregadores sem escrúpulos, sem sensibilidade social e sem visão empresarial.
Sem dúvida que o trabalho é um elemento intrínseco da economia. Mas esta, sendo parte integrante da sociedade, terá necessariamente de ser regulada segundo critérios e estratégias delineadas pelas instituições democráticas na base das normas e princípios sociais, culturais e políticos que regem a democracia. Não na base do puro princípio mercantilista cujos efeitos irracionais e anti-sociais estão à vista de todos. De todos menos daqueles para quem o sacrossanto “mercado” se tornou a nova religião do século XXI.
A palavra latina Tripalium, que está na raiz etimológica de “trabalho”, correspondia no Império Romano a um instrumento de tortura e, como sabemos, ao longo da Idade Média foi negado ao trabalhador, tal como ao escravo e ao servo, qualquer estatuto de dignidade. Trabalhar foi durante muitos séculos visto como algo execrável e estigmatizante. Era o tempo em que o «ócio» era apanágio das elites e o trabalho era relegado para escravos, servos ou indigentes. A era do «neg-ocio» é recente. Foi, nomeadamente, com a ajuda do calvinismo e do protestantismo que se reconheceu ao trabalho e à atividade econômica (ao negócio) um novo sentido ético, positivo, libertador e até salvífico. Mas, mesmo após a máquina a vapor e a expulsão dos camponeses (fatores decisivos da Revolução Industrial) a contradição manteve-se: o homo faber é aquele que se realiza no trabalho e pelo trabalho, manipulando a técnica – um prolongamento do homo sapiens –, embora na prática tal concepção seja negada desde os primórdios do capitalismo. Infelizmente, não faltam os exemplos deploráveis de como o trabalho é muitas vezes sinônimo de uma realidade opressiva e alienante. Basta lembrar os cenários retratados em filmes como Metropolis (F. Lang, 1925) ou Tempos Modernos (C. Chaplin, 1936).
Vale a pena recordar Marx para lembrar que o trabalho é um elemento vital da sociedade. Ele foi, sem dúvida, um dos que melhor definiu a natureza social do Homem e ao mesmo tempo soube identificar o caráter contraditório, injusto e paradoxal do capitalismo moderno. Na verdade, este sistema, resultante da confluência entre o progresso técnico, o mercado livre e o trabalho assalariado, promoveu do mesmo passo as maiores conquistas civilizacionais e as formas mais desumanas de dominação e exploração. E aí se inscrevem alguns dos sentidos paradoxais do trabalho nas sociedades modernas.
É verdade que o mundo desenvolvido, já no século XX, instituiu o Direito do Trabalho e reconheceu importantes direitos aos trabalhadores, tornando a profissão e o emprego um fator de realização e de progresso, elementos estruturantes da edificação do Estado Providência. Mas isso não foi dado de bandeja. Decorreu das inúmeras lutas laborais e sindicais desde o século XIX, contribuindo para um maior reequilíbrio na distribuição da riqueza e outras conquistas sociais que trouxeram mais justiça e harmonia, designadamente, às sociedades europeias. Sabemos bem que a sociedade mudou e que é preciso responder a múltiplos questionamentos e dificuldades desse modelo social. Mas temos de impedir que se atire para o “caixote do lixo da história” essa referência essencial. Numa perspectiva institucional e reformista, precisamos de manter o papel regulador do Estado, recuperar e fortalecer políticas sociais que travem o capitalismo cada vez mais descontrolado e assim dar um novo sentido ontológico aos valores do universalismo, da solidariedade, do progresso e da justiça social que a Europa nos legou.
Evidentemente que existem empresários com sentido ético e de responsabilidade social. Esses, porém, são infelizmente a exceção, em particular em tempos de sistemática invocação da crise. Por isso é que o fim do Direito do Trabalho – enquanto direito que jamais se pode submeter às designadas leis do mercado – significaria o acirrar do despotismo por parte de patrões sem formação, sem capacidade de liderança e sem consciência social. Na verdade, a visão dominante acerca do trabalho exprime-se, no momento atual, numa ideologia anti-direitos laborais, segundo a qual os diferentes regimes e formas de prestação devem ser nivelados “por baixo”, tornando cada vez mais o trabalho numa mera peça – quantificável –, um “custo” que se mistura com um vasto somatório de taxas, números e índices, simples elemento de uma engrenagem econômica (segundo a noção mais estreita e abstracta da economia). Deve por isso perguntar-se: é a economia separável da sociedade e das pessoas? Se é, faz sentido ser a primeira a impor-se às segundas? Não deverá ser o contrário, isto é, a economia ser colocada ao serviço das pessoas?!
O artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos do Homem afirma: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. O trabalho não é mero número. O trabalho deve contribuir para aquele objetivo e nunca resumir-se a servir os objectivos de uma economia desumanizada e submetida à ditadura dos mercados. Como se afirma na Declaração de Filadélfia (sobre os fins e objetivos da Organização Internacional do Trabalho), “o trabalho não é uma mercadoria”.
Para a concepção neoliberal, já não basta o fato de o trabalho se estar a desmembrar e a desarticular sob múltiplas – e cada vez mais precárias – formas contratuais. A sua “utopia” (na verdade uma distopia) é um sistema em que o domínio do mercado não só submete os trabalhadores como os torna completamente descartáveis. Deseja-se voltar aos velhos tempos do taylorismo puro e duro, apoiado na absoluta impotência de “exércitos famintos” de força de trabalho sem qualquer tipo de vínculo, nem direitos, nem dignidade. E espera-se, a todo o momento, a extinção dos sindicatos.
Um tal cenário seria um regresso à barbárie, aos tempos da mendicidade e da “vagabundagem” do século XVIII. A esta visão – em que se filiam os programas de austeridade em curso –, importa contrapor e lutar por uma nova centralidade do trabalho, requisito para a retoma do crescimento económico e condição para a construção de uma alternativa ao “austeritarismo” que nos está a ser imposto.
Apesar das profundas transformações que os regimes produtivos e as relações laborais sofreram nos últimos anos, o potencial do trabalho (e da indústria) não desapareceu. E a sua centralidade reforçou-se. Além de fator de produção e de desenvolvimento, o trabalho é um importante espaço de construção identitária, um campo de afirmação de qualificações, uma fonte de emanação de direitos e de cidadania. Quando os trabalhadores choram à porta de cada fábrica encerrada não é apenas por terem perdido a sua fonte de subsistência. É porque se sentem agredidos no mais fundo da sua dignidade humana. Ou seja, o trabalho é uma dimensão fulcral de sociabilidade que liga o indivíduo à natureza e à sociedade. Nele se exprimem e se reestruturam dimensões indissociáveis – como sejam a componente social, cultural, política e económica – de uma sociedade democrática avançada e coesa. Remeter o trabalho para o estatuto de dimensão intangível ou algo etéreo e completamente desumanizado só pode ser obsessão de mentes mal formadas ou empregadores sem escrúpulos, sem sensibilidade social e sem visão empresarial.
Sem dúvida que o trabalho é um elemento intrínseco da economia. Mas esta, sendo parte integrante da sociedade, terá necessariamente de ser regulada segundo critérios e estratégias delineadas pelas instituições democráticas na base das normas e princípios sociais, culturais e políticos que regem a democracia. Não na base do puro princípio mercantilista cujos efeitos irracionais e anti-sociais estão à vista de todos. De todos menos daqueles para quem o sacrossanto “mercado” se tornou a nova religião do século XXI.
(*) Elísio Estanque é Sociólogo, investigador do Centro de Estudos Sociais/ professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
(**) Manuel Carvalho da Silva é Secretário-Geral da CGTP-IN/ investigador do Centro de Estudos Sociais e professor da Universidade Lusófona
(**) Manuel Carvalho da Silva é Secretário-Geral da CGTP-IN/ investigador do Centro de Estudos Sociais e professor da Universidade Lusófona
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