A segurança pública, com os graves contornos que tem assumido no País nos últimos tempos, tem concorrido com diversos outros temas, como crise econômica, saúde e educação, como a principal fonte de preocupação dos brasileiros e dos governos.
Tentando responder às expectativas da sociedade, os municípios brasileiros têm participado ou pelos menos tentado participar de políticas públicas de segurança e ordem pública.
A partir do ano 2000, quando a exclusividade dos estados na formulação e execução de políticas de segurança pública passou a ser discutida entre juristas, gestores de políticas públicas, pesquisadores, organizações não governamentais, instituições policiais, guardas municipais e até mesmo organismos internacionais, reforçou-se a ideia de que o município, como unidade federativa mais próxima do cidadão, pode e deve atuar na gestão local dos problemas de violência e criminalidade.
De todo modo, apesar do esforço de algumas municipalidades e municipalistas e da composição do Estado Federal Brasileiro por mais de 5,5 mil municípios, ainda predomina uma visão centralizadora das decisões e elaboração das políticas de segurança pública.
O objetivo do presente artigo é identificar e analisar algumas possibilidades de atuação municipal no tema abordado.
Quanto à segurança pública, a Constituição Federal determinou ser dever do Estado e direito e responsabilidade de todos. Seu exercício deve ter em vista a ordem pública e a integridade das pessoas e do patrimônio e ser executada por vários órgãos, todos integrantes da Administração Pública da União e dos Estados. Atualmente o artigo 144 da Constituição Federal dotou de competência para a segurança pública a União, os Estados e o Distrito Federal. Diante disso, a interpretação do artigo 144, por parte relevante da doutrina e da jurisprudência é no sentido de que o Município não deve atuar nessa seara, por lhe faltar competência, podendo somente criar, organizar e manter uma guarda municipal destinada ao policiamento administrativo, sem qualquer incumbência de ordem pública de polícia judiciária e investigativa.
Reforçando esse entendimento majoritário, a técnica da Fundação Prefeito Faria Lima, Mariana Moreira, defende na ementa do Parecer Cepam 27.581 que:
‘’MUNICÍPIO. COMPETÊNCIA. Projeto de Lei, de iniciativa de Vereador, que ‘proíbe o ingresso ou permanência de pessoas utilizando capacete ou qualquer tipo de cobertura que oculte a face, nos estabelecimentos comerciais, públicos ou abertos ao público’. Inconstitucionalidade. O Município não tem competência para legislar sobre segurança pública.’’
Por outro lado, e exatamente porque o Brasil é um país que apresenta heterogeneidades social e cultural marcantes — como vimos são 5500 municípios, dotados de autonomia constitucional —, acreditamos que o poder local pode e deve ser criativo para propor soluções para sua própria realidade, sendo, portanto, a matéria de seu interesse também.
É patente que a exclusão dos municípios da política de segurança pública sobrecarrega os estados. Diante da insuficiência de recursos para atender a todas as demandas, o que se observa, na maioria das vezes, é a inexistência de investimentos e a redução de recursos para a manutenção da atividade policial e de políticas preventivas de violência.
Desta forma, como dito acima, com os graves contornos que a violência e a criminalidade têm assumido no país nos últimos tempos, os municípios tentam fazer frente às demandas sociais com variadas medidas.
Nesse cenário a Guarda Municipal pode ser identificada como o agente público mais próximo da população, podendo ser considerada uma figura que já faz parte da dinâmica urbana de muitas cidades. É para ela que muitas vezes os cidadãos se dirigem para pedir uma informação, e é por conta dessa proximidade existente entre a comunidade e a Guarda Municipal que consideramos de extrema importância a definição da atividade dessa instituição como parte integrante da política de segurança pública.
O artigo Segurança Pública: um desafio para os municípios brasileiros revela que:
“Como não está claro e nem é consensual o papel que a guarda municipal deve desempenhar, há uma lacuna que gera uma crise identitária em seus membros. Quem somos? O que fazemos? Quais são os nossos limites de atuação?
Seus membros vivem em permanente tensão com a polícia militar visto não estar claramente definido o que a guarda municipal pode fazer. Na prática, todos sabem e exigem que os guardas municipais façam policiamento preventivo, entretanto, legalmente não possuem poder de polícia.
Hoje, sua presença é uma realidade. Segundo o estudo Perfil dos Municípios Brasileiros realizado pelo IBGE, em 2002 havia 982 municípios com Guardas Municipais, sendo que a maior parte delas (75,8%) está nos grandes centros urbanos com população entre 100 mil e 500 mil. Este dado demonstra a dimensão e a envergadura do problema a ser enfrentado. O que queremos para e das Guardas Municipais nos principais centros urbanos do país?’’[1]
Diante do exposto, não nos parece haver outra saída senão o investimento na formação e aperfeiçoamento das Guardas Municipais, para que seja possível o desenvolvimento de um trabalho local e comunitário na prevenção da violência e, para tanto, a necessidade de dotar a Guarda Municipal com poder de polícia se mostra relevante para o avanço da segurança pública nos entes locais.
Em trâmite no Congresso Nacional existe uma Proposta de Emenda Constitucional 534 que altera o texto da Constituição Federal, que passaria a vigorar da seguinte forma:
“Art. 1º O § 8º do art. 144 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
Art.144...................................................
...........................................................
§ 8º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus munícipes de forma preventiva e ostensiva, de seus bens, serviços, instalações e logradouros públicos municipais, conforme dispuser lei federal.”
Analisando o texto da PEC é possível extrair que haveria uma união de forças entre os entes federados no que diz respeito à segurança a favor da população, atribuindo mais uma função às Guardas Municipais, que é a de proteger também a população e não somente os bens, serviços e instalações municipais.
Vale dizer que o argumento utilizado pelo PEC não excluirá a competência da União de propor diretrizes gerais para as políticas municipais que devem ser integradas a uma agenda nacional mais ampla.
De todo modo, além da PEC que ainda não foi aprovada, existem outras possibilidades relacionadas à atuação do município na temática que podem ser observadas: a primeira é a reformulação do sistema nacional de segurança pública com a inclusão do ente municipal na participação da elaboração das políticas e a outra é a conscientização de que é preciso uma interpretação mais alargada acerca da competência dos municípios no que diz respeito à segurança, e a essa corrente nos perfilhamos. Senão vejamos:
Para o mesmo texto de lei municipal tida por inconstitucional pela Fundação Prefeito Faria Lima por meio do Parecer CEPAM 27.581, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por sua vez declarou constitucional, na Ação Direta de Inconstitucionalidade, a Lei 1.681, de 2007, de Novo Hamburgo (Ação Direta de Inconstitucionalidade 70025237033) alegando que:
“O Município agiu dentro dos limites de sua competência previsto no artigo 30, I, da CF, observado o exercício do poder de policia, passível de regulamentação, conforme ensinamento de Hely Lopes Meirelles, obra citada, páginas 121/122 e 257, norma esta que não merece qualquer reprimenda, mas, ao contrário, é merecedora de encômios”. [2]
Dessa decisão depreendemos que é possível identificar a possibilidade da participação do município na segurança do munícipe sem ferir os princípios e as determinações do texto constitucional atual, mantendo, assim, intacto o ordenamento jurídico brasileiro.
O tema é polêmico, contudo, é preciso avançar mais, especialmente, na direção de legitimar algumas das tantas ações municipais já voltadas para a área da segurança do munícipe.
A nosso ver a PEC-534 não fere o artigo 60, parágrafo 4º, inciso I, da Constituição Federal, uma vez que não tende a abolir a forma federativa do Estado Brasileiro, ou seja, não pretende retirar da União e dos Estados a competência para dispor sobre a matéria, mas tão somente torná-la concorrente entre todos os entes federados.
Porém, como já dito, acreditamos que a mudança do texto constitucional não é a única maneira de validar as ações municipais referente à segurança dos munícipes, e uma alternativa viável, no nosso ponto de vista, certamente diz respeito aos princípios de interpretação desenvolvidos pela hermenêutica constitucional. Entre eles, dois nos interessam: o princípio da unidade da Constituição, por meio da qual o intérprete está obrigado a considerá-la na sua totalidade e procurar harmonizar os espaços de tensão; e o da razoabilidade e proporcionalidade, que são a busca pela interpretação que atenda ao bom senso e à justiça.
Para Mariá Brochard:
“O juiz ao julgar sempre desenvolve juízos estimativos e não meramente cognitivos; e com tais juízos é que ele expressa o que se deve fazer em casos controversos, formulando uma norma singular, concreta, mas tão normal quanto à norma geral e abstrata formulada pelo legislador. O juiz exerce papel autêntico ao produzir tal norma, e isso se dá não apenas por mera inferência da norma geral que interpreta, visto que toda e qualquer norma implica numa estimativa que supõe um juízo de valor. A sentença em sua parte substancial, portanto, não é mera declaração de realidade e descrição de fatos”[3].
Concluímos ressaltando que tanto a aprovação da PEC, como uma interpretação alargada das competências suplementares municipais no âmbito da segurança, seria benéfica para a atuação do ente local, para a segurança aos munícipes e por fim, para uma relação mais estreita entre a comunidade e os órgãos de policiamento, que apesar de parecer um sonho distante, certamente é o que todos queremos.
Fonte: CONJUR
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