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segunda-feira, 22 de outubro de 2012

“Lei de Cotas é uma nova abolição na história do Brasil”, diz líder dos "sem universidade"




A opinião é de economista Sérgio José Custódio, presidente do Movimento dos Sem Universidade (MSU), que concedeu entrevista à Carta Maior. A Lei de Cotas acaba de ser regulamentada pelo governo federal e determina a reserva de, no mínimo, 50% das vagas em instituições federais vinculadas ao Ministério da Educação. Fundado em 2000, o MSU recebeu esse nome de Dom Pedro Casaldáliga e, desde então, tornou-se interlocutor do debate educacional no país.




O dia 15 de outubro de 2012 é uma data de festa para o economista Sérgio José Custódio, presidente do Movimento dos Sem Universidade (MSU). O motivo da comemoração está publicado na Seção I do Diário Oficial da União: a regulamentação da lei que determina a reserva de, no mínimo, cinquenta por cento das vagas em instituições federais vinculadas ao Ministério da Educação para estudantes que tenham cursado integralmente o Ensino Médio em escolas públicas, além das cotas raciais. 

Para ele, trata-se de uma conquista memorável, cuja dimensão a é de uma nova abolição, “no sentido de garantir as condições objetivas e subjetivas para uma distribuição de renda, para a entrada do país na era do conhecimento e para que mitos da realidade brasileira sejam combatidos de fato, com políticas públicas – como o mito da democracia racial”. 

Com a regulamentação da medida, 12,5% das matrículas em 59 universidades federais brasileiras serão reservadas para cotistas já em 2013. Esse percentual será elevado nos anos seguintes até chegar ao mínimo de 50% em 30 de agosto de 2016. A lei, aplicável em cada processo seletivo por curso e turno, contempla também um critério social, já que metade das vagas reservadas serão destinadas a candidatos cuja renda bruta por pessoa seja igual ou inferior a “um inteiro e cinco décimos” de salário mínimo. 

O presidente do MSU se sente aliviado com a conquista, mas afirma que “a luta não acabou”. Para ele, é preciso que o Estado possa garantir a permanência no Ensino Superior para que o aluno extraia dali o melhor, e não “para entrar na fila da esmola dentro da universidade”.

Custódio nasceu em um bairro rural do município de Barão de Antonina, sudoeste do estado de São Paulo, na divisa com o Paraná. Filho de costureira e de lavrador, trabalha desde os sete anos e sempre foi aluno de escola pública. Formado em Economia pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e estudante do mestrado em Ciências Humanas e Sociais da UFABC (Universidade Federal do ABC), é um dos criadores do MSU no início dos anos 2000. 

Seu objetivo é fazer com que pessoas como ele, “exceções que estampam capa de revista”, não sirvam de respaldo para afastar do debate político as medidas de democratização do ensino de qualidade no Brasil. “É um apartheid comunicativo, no qual exceções viram manchetes de jornal, viram capa para justificar as cotas do privilégio”, diz. 

Carta Maior – O que significa, para o senhor e para o MSU, o fato de a Lei de Cotas estar publicada e regulamentada no Diário Oficial?
Sérgio José Custódio – Significa uma nova abolição na história do Brasil. É um novo tempo, um gesto da presidenta Dilma Rousseff que resolve um problema histórico que a abolição deixou. A abolição foi feita com dois parágrafos. “Decreta-se abolida a escravidão no Brasil” e “Revogam-se as disposições em contrário” (1988). Ao negro não se falou da casa, da escola, da terra, do trabalho, da renda, de nada. Por isso, a dimensão do que foi aprovado é de uma nova abolição. Além disso, quebra o paradigma neoliberal imposto ao país nos anos 90 porque a lei trata com dignidade a escola pública, que é um bem público. É uma nova abolição no sentido dos povos negro e indígena brasileiros e também porque é uma aposta na escola pública, que sofreu todo tipo de ataque. E é um elemento estruturante da chamada mudança social no país, que foi o alargamento daquilo que se chama de nova classe média, que são trabalhadores e trabalhadoras que tiveram mudanças nas suas vidas, uma ascensão social. Cria-se uma ponte entre a escola pública e a universidade pública e valoriza-se o ensino técnico. Desenha-se no Brasil um movimento estruturante do Estado brasileiro no sentido de garantir as condições objetivas e subjetivas para uma distribuição de renda, para a entrada do país na era do conhecimento e para que mitos da realidade brasileira sejam combatidos de fato, com políticas públicas – como o mito da democracia racial.

CM – Um argumento que sempre está no discurso dos opositores à política de cotas diz que a lei provoca uma queda da qualidade da universidade pública, por um lado, e um esquecimento em relação à escola pública, de outro. Esse argumento é falacioso?
SJC – É falacioso porque desconsidera a educação como um processo coletivo e a coloca como um processo individual. 5,79 milhões de pessoas farão o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) em novembro. Isso significa que a maioria veio da escola pública. Significa que o sonho de ir à universidade passa a ser compartilhado por uma geração inteira e pelas famílias dessas camadas populares brasileiras. Isso repercute dentro da sala de aula de uma escola pública, repercute nas famílias. Há um esforço competitivo em dominar conhecimento. Ao tirar a luz do indivíduo e colocar na instituição, na escola pública, naquele povo que construiu este país com seu sangue, que é o povo negro, e no povo indígena, a lei aproxima as diferenças étnicas no país, que estavam separadas, para um mesmo ambiente. Isso gera maturidade e um novo ambiente cultural na universidade. Então, é um choque de qualidade na universidade. Obviamente, do mesmo jeito que aquele menino que passou na peneira do Flamengo e veste a camisa do time, [o aluno cotista] vai dar o sangue para ocupar a posição de titular. E esse titular vai ser o futuro médico do sistema público do sistema de saúde, um futuro engenheiro, um futuro pesquisador. E a lei tem outra grande dimensão: ela reserva vaga por turno e por curso. Portanto, vai acabar também o escanteamento, em alguns lugares, das camadas populares. Isso dá um choque de qualidade na pauta de pesquisa científica, desde a iniciação científica à pós-graduação, e aproxima, por exemplo, a história da África, que passa a ser ensinada por professores negros. A visão do projeto é republicana, da educação como um direito, como um bem público, ao contrário da ladainha neoliberal, que colocava a educação como mercadoria. 

CM – Com o decreto firmado em Diário Oficial, a luta do MSU e dos movimentos de educação acabou?
SJC – A luta não acabou, ela continua. Se nós imaginarmos que, no Brasil, essa luta saiu primeiramente do Movimento dos Sem Universidade (MSU), do movimento negro, do movimento indígena e dos cursinhos populares espalhados pela periferia até chegar a Brasília, você vê, ao longo desses 10 anos, vários episódios. É uma luta que continua porque nós não acreditamos mais em política pública sem participação popular na gestão dessa política. Nós temos expectativa de que o Ministério da Educação institua um conselho de acompanhamento social da lei de cotas equivalente ao que tem no ProUni, por exemplo. Nós temos expectativas de que essa política seja intersetorial porque, dada a enorme e trágica desigualdade social brasileira, é preciso que o Estado garanta a permanência na universidade. Novamente, essa lei é um novo paradigma na educação porque o discurso neoliberal falava que a universidade tinha que separar o que era atividade-fim da atividade-meio. Comer, ter livro, ter laptop, ir ao cinema, na ética neoliberal, era atividade-meio, e a universidade e o Estado não precisavam se preocupar com isso. Isso era deixado à sorte individual, pela lei do mais forte. Hoje o país tem condições de usar o Fies, o sistema de financiamento que existe para o setor privado, para as famílias que estão na chamada classe média e querem que seus filhos estudem na universidade pública, mas para extrair dali o melhor, e não para entrar na fila da esmola dentro da universidade. Então, o financiamento do Fies tem que ser estendido para esses estudantes, seja para a compra de livros, computadores, que são caros no Brasil. Comer também é fundamental. É preciso estreitar a relação com restaurantes populares, organizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social, como forma de ter nas universidades um bandejão. O mesmo vale para a moradia estudantil, tal como foi criada na Unicamp, por exemplo, em que era um projeto de edificar uma universidade, de fincar um pensamento nacional. É essa ética que nós também queremos com esse novo projeto de lei: que as universidades passem a criar moradias. Isso interessa para o sistema produtivo nacional, para as empreiteiras, e é barato. Interessa para as universidades, que precisam ser estruturadas. Este país precisa de doutorandos, de mestrandos, e a moradia estudantil faz parte dessas condições objetivas para garantir o conforto para a produção intelectual.

CM – A aprovação da lei de cotas não foi um processo tranquilo. Ao contrário: os setores que se opuseram a ela o fizeram de modo contundente. Quais foram os principais desafios que os movimentos sociais enfrentaram ao longo desses anos?
SJC – Os principais problemas foram de ordem política, na arena do Congresso Nacional, e da ordem da comunicação – o filtro daquilo que acontecia e era passado ao restante do país. Nós conseguimos, num primeiro momento, um acordo político que as pessoas achavam impossível, que foi o acordo na Comissão de Educação da Câmara, que aprovou o projeto por unanimidade. O então PL 73 passou a ser o carro-chefe da lei de cotas – projeto da deputada Nice Lobão, do então PFL, junto com a relatoria do deputado Carlos Abicalil, então do PT. Esse acordo foi feito por conta da pressão dos movimentos sociais porque eram partidos distintos e, no caso da deputada Nice Lobão, não era a posição do PFL, mas a posição dela. Na Comissão de Direitos Humanos, teve uma atenção muito grande. Mas, naquele momento, alguns setores da intelectualidade, liderados pela antropóloga Yvonne Maggie, da UFRJ, lançaram um manifesto contra. Nós conseguimos vencer isso quando foi a matéria foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), em 2005. A partir daí, houve uma grande campanha orquestrada por setores da mídia contra o projeto, com grandes jornais e uma famosa revista semanal. O então líder do PSDB, Alberto Goldman, e o líder do PFL, Rodrigo Maia, apresentaram recurso ao plenário da Câmara, o que travou o projeto por lá até 2008. Mas, em 2008, havia uma nova situação e nós fizemos um trabalho de coleta de assinaturas em um corpo a corpo com cada parlamentar. Foi um trabalho em que o MSU se fez presente no cotidiano da Câmara e nós passamos a visitar as grandes bancadas, as grandes reuniões tanto partidárias quanto interpartidárias. Deu um conjunto de 270 assinaturas, que compunha a maioria. No dia 19 de novembro de 2008, depois de várias tentativas de colocar em votação o projeto, nós conseguimos fazer um acordo e o levamos à Presidência da Câmara. Comunicamos o Gilberto Carvalho, da presidência da república, ele aceitou o acordo também. Eu estava na Câmara, sem ter onde dormir, e o então deputado Vicentinho me levou para o apartamento funcional dele. Acordamos cedo e, no dia seguinte, o Chinaglia colocou em pauta. Foi simbólico porque foi no dia de Zumbi de Palmares, dia 20 de novembro de 2008, que foi a votação.

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