PROCESSO PENAL
Nos é muito cara a versão testemunhal dos fatos. Ela suprime as falhas da prova documental para refazer o que o processo intende: recriar o que se investiga. Essa renovação de algo já ocorrido tem intrigado tanto a filosofia quanto os processualistas. Tantas quantas testemunhas presenciais houver, serão as possíveis versões sobre o mesmo acontecido.
Einstein já provou, há muito, que a posição do observador é que determina o que ele entende por real. A física quântica, seguindo sua esteira, já sabe que a antiga e cartesiana ilusão de separação entre observador isento, cientista, e objeto, não existe. Um influencia no outro.
A riqueza (e a salvação) do humano reside justamente aí: não ser máquina. O seu espírito é mutável, assim como a natureza das coisas.
O processo penal, como ciência, pretende, com contraditório, paridade de armas, ampla defesa e tudo o mais que se fizer necessário para que não seja autoritário, busca reproduzir nos seus autos um ou mais fatos para que se saiba se foi criminoso e se é possível responsabilizar algum cidadão (ou até pessoa jurídica) pela sua ocorrência.
Mister é, ainda que já lugar comum, mencionar que o inquérito policial não tem essa pretensão. Ele busca a versão do Estado-Acusador, no intuito de criminalizar, de repreender, de responsabilizar. Não tem o condão de absolver ou de buscar a verdade. Não é à toa que é dispensada a presença de um defensor e de um juiz. Aliás, o próprio Ministério Público, quando não o faz por si só, não tem por que influenciar nas decisões do delegado de Polícia.
Dessa forma, formada sua opinião, indiciado ou não (essa segunda opção parece ser apenas teórica, porque muito pouco concretizada), relata sua opiniao para o órgão ministerial oferecer denúncia, solicitar outras diligências que entender necessárias, e o que bem entender, a seu único, livre e desimpedido critério. Só a sua consciência ele presta contas.
Até aqui o princípio norteador da acusação é o de que, na dúvida, se acusa, se dá andamento à investigação. É em prol da sociedade, in dubio pro societate.
O juiz, órgão do Estado, ao ter em mãos essa peça acusatória do Parquet, verifica algumas questões formais, e determina se forme o triângulo tão afeito a nós juristas: chama a Defesa para que se manifeste. Essa resposta à acusação permite que o juiz, agora já com as duas versões sobre os fatos investigados, possa determinar se haverá processo ou não. Em caso positivo, é recebida a denúncia e iniciada a instrução: a formação da prova em si.
Sutilmente percebe-se o conceito da prova: será aquela formada na presença de acusação, defesa e um juiz. Esse novo parâmetro, agora dialético, traz em seu bojo o princípio in dubio pro reo, ao contrário do que vinha ocorrendo até então.
Essas considerações não parecem afeitas ao título desse artigo, mas são. Quando alguém informa o delegado o que viu, ou o que sabe, não o faz na condição de testemunha, mas de declarante ou de acusado, ainda que com o dever legal de falar a verdade. Não o faz na presença de um advogado necessariamente.
No processo penal, isso é impossível. Um depoimento sem a presença da defesa é simplesmente inexistente. Nesse caso, o testemunho é uma prova, tem valor para condenação, e seu destinatário não é aquele que quer acusar, mas o juiz, que quer saber a verdade, o mais próximo dela, para absolver ou condenar o acusado. Na dúvida, é claro, o absolverá, assim como na ausência de provas suficientes. Não se fala em indícios.
Falamos em busca da verdade. Sabemos todos nós, crentes ou não, que a verdade é transcendente ao ser humano. Ela é o todo do qual fazemos parte, e como peças, é impossível ter conhecimento dela. Na linguagem dos iluministas, a engrenagem não conhece a máquina.
Então o que se busca é o mais próximo possível, processualmente, do que realmente ocorreu. Os princípios utilizados nessa busca (ampla defesa etc) são os que tornam válida essa caminhada, posto que se não forem respeitados, não poderão ser utilizados em um país democrático.
A democracia formal é aquela que respeita as regras do jogo, e a sua substância, o seu conteúdo, é aquele que está de acordo com nossos valores universais de dignidade, igualdade, liberdade, democracia substancial enfim.
O que, infelizmente tem ocorrido, é que pessoas que tem feito um depoimento em delegacia e o refeito em juízo, tem sido acusadas, denunciadas, pelo crime de falso testemunho. Sabemos que mentir no inquérito policial está no Código Penal, assim como mentir em juízo. Todavia, quando uma versão desmentir a outra, não há por que se falar nisso. O primeiro dito, sem advogado, sem juiz, serve apenas com indício, para o delegado, aliado às outras informações, poder formar uma opiniao, que será remetida ao Ministério Público, para que decida se existem indícios suficientes de autoria e de materialidade para oferecer uma denúncia.
Como vimos, nada a confundir com uma prova destinada a uma sentença penal condenatória ou absolutória.
Aliás, a testemunha que, em juízo, se retrata, também diz o Código Penal, não comete crime de falso testemunho. O objetivo da criação desse tipo penal foi exatamente o de não prejudicar a administração do Poder Judiciário. A mera contradição não tem esse condão, até porque houve a indicação de qual o depoimento válido, sem mencionar que validade está intrinsecamente vinculada às garantias constitucionais que só existem em um processo, e não em um inquérito. Não é a toa, inclusive, que muitos propagam a ideia de que esse procedimento administrativo não deveria sequer estar acostado ao processo. Não vale como prova e tem o condão apenas de dar subsídios à acusação (o Supremo Tribunal Federal assim entende).
Se assim não fosse, o Erário ficaria muito menos onerado sem promotores, juízes e advogados. O delegado de Polícia teria a incumbência de já sentenciar.
De outra banda, esse crime exige a comprovação do chamado dolo específico. O que é isso? É a intenção clara de ludibriar o judiciário. Nesse caso exposto, obviamente, essa prova é impossível, porque não existe esse dolo. Aquela testemunha que diz, em audiência, “Excelência, ‘desdigo’ o que disse na Polícia, agora vou contar a versão que realmente aconteceu”, obviamente não deixa dúvidas ao juiz sobre qual a prova que deverá ser apreciada. Não há intenção do logro.
Obviamente que se mentir e o Ministério Público com a polícia produzirem essa prova, comete o crime. Mentiu ao dizer, e mentiu ao mencionar que era verdade.
Vemos a grande diferença: mentir não é o mesmo que se desdizer.
Nesses casos, então, que as testemunhas têm sido acusadas do crime do artigo 342 do Código Penal, temos a impressão de haver certa coação para se obter depoimento favorável, forçado, irreal, sob a ameaça de uma pena.
Não é bonito, nem sábio.
Paulo Ricardo Suliani é advogado, sócio do Escritório Sobbé e Suliani Advogados.
Revista Consultor Jurídico
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