Saul Leblon
Há duas formas de se definir a travessia para o novo ciclo de desenvolvimento requerido pelo país.
Uma, implica a construção democrática das linhas de passagem para um novo estirão de crescimento ordenado pela justiça social.
A outra preconiza simplificar a tarefa, terceirizando o timão à ‘racionalidade’ dos livres mercados.
A escolha conservadora dispensa o penoso trabalhos de coordenação da economia pelo Estado, ademais de elidir a intrincada mediação dos conflitos inerentes às escolhas do desenvolvimento.
O automatismo econômico de qualquer forma é mais um rótulo de fantasia.
Na verdade, tecnocratas organicamente conectados aos detentores da riqueza manejariam grandes ferramentas macroeconômicas , arbitrando quem vai ganhar e quem vai pagar a conta.
Variáveis de aparência técnica –como a taxa de câmbio, o nível dos juros e as tarifas de importação — fariam o ‘serviço sujo’ de limpar os trilhos para que a ‘eficiência’ do mercado reinasse em sua plenitude.
Desnecessário lembrar que foi essa livre eficiência na alocação dos recursos, estendida à atividade bancária, a partir dos anos 80, que levou o capitalismo ao seu maior desastre desde 1929.
O que o conservadorismo pleiteia nas urnas de outubro é uma carta branca para salgar o mercado brasileiro com essa lógica, purificando-o do intervencionismo estatal petista.
A mãe de todas as batalhas, portanto, gira em torno dessa questão.
A questão do método.
Qual é, afinal, a lógica que vai assegurar coerência macroeconômica à transição para um novo ciclo de crescimento econômico?
O conservadorismo avalia que o legado recente é incompatível com o futuro desejado.
Daí a necessidade de proceder ao desmonte do edifício erguido pelo ‘lulopopulismo’.
A saber.
Fortemente ancorada na ampliação do mercado de massa, a economia avançou nos últimos anos apoiada em ingredientes daquilo que a emissão conservadora denomina ‘Custo Brasil’.
O salário mínimo teve una elevação do poder de compra de 70%, acima da inflação.
Entre outros, 14 milhões de aposentados e pensionistas foram beneficiados pelo inédito aumento de poder aquisitivo.
Ao contrário do que se previa, porém, o ganho na base da pirâmide não gerou desemprego, tampouco explodiu as contas da Previdência Social.
Ao contrário.
Cerca de 20 milhões de vagas foram abertas no mercado de trabalho, regidas pela regulação da era Vargas. A mesma que FHC prometera abduzir: carteira assinada; férias; 13º; previdência social, reajuste anual.
O déficit da Previdência caiu e só voltou a crescer agora, por conta das desonerações da folha de pagamento –uma reivindicação antiga da cartilha do ‘Custo Brasil’.
Políticas sociais destinadas a mitigar a fome e a miséria completaram a espiral ascendente de ampliação do mercado interno: o Bolsa Família, por exemplo, atinge 50 milhões de pessoas.
O período de fastígio das matérias-primas enlaçou o conjunto com um cinturão de segurança de US$ 370 bilhões em reservas internacionais: quase 10 vezes o legado do PSDB.
Sem elas o país não teria atravessado a crise mundial com geração de empregos e ganhos trimestrais ininterruptos na renda das famílias.
A avaliação divergente do ponto de vista conservador afirma que é imperativo corroer esse conjunto para reduzir custos empresariais, aliviar o gasto fiscal do Estado e viabilizar uma queda nas taxas de juros.
O desmonte supostamente ‘baratearia o investimento’, deflagrando um salto dos negócios rumo a um novo ciclo de expansão da economia.
A pedra no caminho, como tem dito Carta Maior, remete ao personagem histórico nascido nesse entrecho de ‘lulointevencionismo’.
Composto por dezenas de milhões de brasileiros recém egressos da pobreza, ademais de outros tantos milhões que ascenderam na pirâmide de renda, os novos protagonistas formam hoje a maioria da sociedade.
A novidade histórica de consequências políticas ainda não totalmente amadurecidas é resumida em uma chave fúnebre pela síntese conservadora: ‘ O PT fez uma política voluntarista de crescimento baseada na consumo de massa’.
É mais sério que isso.
Ao trazer 60 milhões de novos consumidores para a fila do caixa, os governos Lula e Dilma redesenharam as referências estratégicas da produção, da demanda e da política nacional .
O conjunto esburacou o chão político do projeto conservador.
A nova macroeconomia do desenvolvimento brasileiro terá que ser buscada sob o pano de fundo dessa emergência das grandes massas populares que invadiram a economia e a cidadania na última década.
A escolha é fazê-lo em negociação permanente com elas.
Ou contra elas.
O desconforto do sistema político é diretamente proporcional à sua falta de aderência com o que se passa na sociedade e nas ruas.
Não por acaso as sirenes conservadoras dispararam decibéis estridentes diante da Política Nacional de Participação Social instituída por decreto pela Presidenta Dilma.
O medo de que o novo rompa o dique do caduco tremula na respiração das narinas conservadoras.
A escolha progressista, porém, tampouco é isenta de desafios, entre os quais se inclua a travessia de um Rubicão até aqui apenas ensaiada pelo PT.
Definitivamente, se o objetivo for aprofundar a aderência entre crescimento e cidadania, a democracia brasileira não pode mais se resumir a uma visitação esporádica às urnas.
Uma reforma política que dê consistência à representação partidária e favoreça as consultas populares constitui um ingrediente tão importante de um novo ciclo de investimento quanto o capital que ele requer.
Um das escolhas cruciais do próximo período, por exemplo, é resgatar ou não o celeiro fabril brasileiro, atrofiado por décadas de valorização cambial.
A definição vai depender da correlação de forças que emergir das urnas de outubro.
E do que for feito dela para dilatar a participação da sociedade nas decisões cruciais do seu desenvolvimento.
Hoje o país importa quase 25% das manufaturas que consome.
O preço baixo dos importados ajuda no controle da inflação.
Mas vaza empregos para a China.
Faz mais. Desequilibra as contas externas, enfraquece os sindicatos, atrofia o operariado fabril, aborta o surgimento de novos contingentes de ‘lulas’ pelo país.
Não é uma ameaça distante. Está acontecendo agora.
Num Brasil quase às portas do pleno emprego, vive-se um paradoxo: há mais desempregados qualificados do que não qualificados, alerta o IPEA.
Explica-se: o setor que paga os melhores salários na economia e irradia progresso técnico ao restante do sistema –requisito fundamental do excedente capaz de dilatar a fronteira da cidadania-- está atrofiando no Brasil.
Não é um palpite, é uma conta.
E ela não para de crescer: o déficit comercial da indústria este ano vai atingir um valor equivalente a 30% das reservas cambiais.
O cenário eleitoral carrega as cores de uma mudança de época.
O Brasil tem agora o mercado de massa preconizado por Celso Furtado.
Quem vai atendê-lo?
Um aggiornamento seletivo da base industrial semeada por Getúlio ou a rendição total às linhas de montagem asiáticas?
Voltamos ao ponto de partida.
O conservadorismo acha que tanto faz ter ou não indústria.
Seu método para resolver o impasse é conhecido: “a industrialização brasileira deve provar sua pertinência submetida a uma purga de eficiência com derrubada geral de tarifas de importação”, sustentam os sábios de bico longo.
‘É tempo de murici, que cada um cuide de si’, repercute o colunismo econômico abestalhado de tanta toxina neoliberal.
Entre os sobreviventes do salve-se quem puder não estarão aqueles setores que dependem de uma política desenvolvimento industrial para inovar e se fortalecer.
Tampouco os que se beneficiam dos índices de nacionalização de serviços e equipamentos demandados pelo ciclo de exploração do pré-sal, por exemplo --que representa hoje apreciáveis 10% de todo o investimento brasileiro.
O desemprego correspondente ao saque contra o futuro guarda funcionalidade com a meta de reduzir o ‘Custo Brasil’ convocando o arrocho para comandar o ataque do time conservador.
Como colar as trincas de uma economia em que a soma das partes já não cabe na moldura de um crescimento que liberou potencialidades e demandas superiores à sua capacidade de resposta?
Repactuando democraticamente as linhas de passagem da transição em curso.
Inclua- se aí metas, sacrifícios, prazos, ganhos e salvaguardas subjacentes à travessia.
Método e meta se fundem assim nas perguntas e respostas a serem escrutinadas nas urnas de outubro.
Para que o resultado seja consequente, o eleitor deve ter o discernimento dessa vinculação.
Ela lhe atribui um protagonismo que não se esgota mais na cabine do voto.
Essa é a novidade, a grande novidade, diga-se, do período que se anuncia.
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