O problema é o mesmo. A reação a ele, assustadoramente diferente. Temos que admitir: as manifestações contra o racismo e a violência policial que tomam as ruas dos Estados Unidos têm muito o que ensinar aos brasileiros
Nas últimas semanas, milhares de cidadãos tem tomado as ruas de grandes cidades norte-americanas em uma onda de manifestações em protesto por assassinatos de negros inocentes cometidos por policiais brancos que foram absolvidos pelos crimes. Os casos mais famosos são a morte do jovem negro em Ferguson e do homem, igualmente negro, rendido e estrangulado até a morte em Nova York. Enquanto isso, no Brasil, a existência de dados ainda mais preocupantes sobre racismo e violência policial parece não causar nenhuma comoção na sociedade.
“Existem diferenças históricas que nos diferenciam dos Estados Unidos. Desde o início do movimento da luta pelos direitos civis, eles, ao longo das décadas, têm discutido o racismo e as consequências da discriminação. Isso em diversas áreas, incluindo a segurança pública. Esse debate faz com que, quando casos como o de Ferguson (que por aqui são cotidianos) acontecem, haja reação forte não só do movimento negro, mas de todas as pessoas. No Brasil, por outro lado, o racismo sempre foi pouco discutido. Há uma resistência grande aqui em admitir que nossa sociedade é racista”, explicou Alexandre Ciconello, assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional.
Histórico recente da violência nos EUA
No dia 9 de agosto deste ano, policiais de Ferguson, no Missouri, Estados Unidos, receberam chamado em uma loja que havia sido assaltada. De acordo com a denúncia, um homem armado tinha roubado cigarros do estabelecimento. A viatura saiu em busca e encontrou um jovem fumando e caminhando pela região. Darren Wilson, um dos agentes, disparou seis tiros contra um suspeito, não por acaso, negro. Posteriormente, verificou que o homem, cujo nome era Michael Brown, não portava armas e não tinha relação alguma com o crime. O rapaz morreu. O policial, branco, foi inocentado por um júri majoritariamente branco.
Dados oficiais do censo federal dos EUA ajudam a conhecer melhor o cenário local. Em Ferguson, de pouco mais de 21 mil habitantes, 67% dos moradores são negros. A corporação da polícia, no entanto, segue outra lógica: é composta por 94% de brancos. O mesmo se observa na política: o prefeito e cinco dos seis vereadores são brancos. Por outro lado, 93% dos presos são negros.
Quando seu assassinato veio a público, Michael Brown se tornou uma representação de todos os norte-americanos negros que diariamente são vítimas do sistema discriminatório. Ele representa, por exemplo, Eric Garner, homem que foi estrangulado em Nova York por um policial que suspeitou que ele vendia cigarros ilegalmente. Representa Rumain Brisbon, pai de quatro filhos que, perseguido por um agente em Phoenix, Arizona, colocou a mão no bolso para mostrar que não estava armado (carregava apenas um frasco de comprimido) e foi assassinado. Representa Tamir Rice, menino de 12 anos de Cleveland, Ohio, que, ao segurar uma arma de brinquedo no parque, foi atingido por tiros de um guarda que o confundiu com um bandido.
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Por eles, milhares de manifestantes saíram às ruas não apenas no Missouri, mas em diversos outros estados, para pedir justiça e igualdade. O movimento ganhou slogans como “I can’t breathe” (“Eu não consigo respirar”), frase dita repetidas vezes por Eric quando era estrangulado, e “Hands up, don’t shoot” (“Mãos para cima, não atire”), em referência a Michael, que antes de morrer levantou as mãos e pediu para o guarda não disparar.
Em pouco tempo, a causa recebeu o apoio público de artistas e esportistas. Um dos momentos mais marcantes foi quando o astro da NBA LeBron James e outros atletas do Cleveland Cavaliers vestiram camisetas com a inscrição “I can’t breathe” durante o aquecimento de uma partida contra o Brooklyn Nets - assistida, inclusive, pelo príncipe William e pela duquesa Kate Middleton. O mesmo ato foi repetido por Kobe Bryant, dos Los Angeles Lakers, em jogo posterior contra o Sacramento Kings.
A falta de dados
Frente a essa realidade, parte da mídia norte-americana tem se esforçado para realizar a cobertura dos protestos e mostrar análises amplas da situação. E o grande problema encontrado pelos veículos é unânime: a falta de dados oficiais sobre o racismo e a violência policial nos Estados Unidos.
Não existe nenhum sistema por lá que obriga as autoridades a realizarem um controle rígido sobre aqueles que são assassinados pela polícia. De acordo com números estimados pelo FBI e divulgados recentemente pelo site Vox, no entanto, 426 “criminosos” foram mortos “justificavelmente” pela polícia em 2012. Embora ele seja apenas uma estimativa (subjetiva e incompleta), outras informações que o acompanham nos permitem fazer uma análise qualitativa dessas vítimas.
Os negros representam apenas 13% da população norte-americana. Segundo as estatísticas, porém, 32% das vítimas assassinadas pela polícia em 2012 eram negras – o que mostra uma proporção bastante desigual. Além disso, os números revelam que 631 oficiais participaram dos 426 homicídios. Isso quer dizer que 121 vítimas (ou seja, 28,4% delas) morreram atingidas por tiros de mais de um agente.
EUA x Brasil
De um lado, o estudante Michael Brown. Do outro, o ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza, o dançarino DG, a auxiliar de serviços gerais Cláudia Silvia Ferreira...
No Brasil a situação é ainda pior. De acordo com a edição de 2013 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pela organização não governamental Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), as polícias mataram, durante o ano, 2.212 pessoas.
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