Brasil terá que julgar os crimes da ditadura, afirma historiador
As lágrimas da presidente Dilma Rousseff, ex-presa política torturada na ditadura militar, durante seu discurso na apresentação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), quarta-feira, emocionaram o País e estamparam as páginas da imprensa internacional, mas não livraram o documento de críticas à esquerda e à direita.
A entrevista é de Ivan Marsiglia, publicada pelo O Estado de São Paulo, 13-12-2014.
Para oficiais da reserva, identificados com o regime que mandou no Brasil de 1964 a 1985, o relatório é “uma coleção de meias verdades, calúnias e mentiras inteiras, embaladas com pedaços de verdade”. Para a deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP), “restrições à participação da sociedade e dos familiares no acompanhamento da comissão têm a ver com a covardia de seus membros em enfrentar os militares”.
O historiador ítalo-brasileiro José Luiz del Roio, de 72 anos, faz uma avaliação distante dos extremos. Ex-senador eleito em 2006 na Itália e ex-deputado do Conselho da Europa em Estrasburgo, Del Roio foi consultor informal dos trabalhos da CNV no Brasil. Ressalta o caráter inédito de documento de Estado que tem o relatório que, para ele, “modifica a sensibilidade sobre a memória do período” e terá grande impacto não só na historiografia, mas no tratamento do tema pelo Judiciário e pelo Legislativo. Mas critica a falta de sensibilidade da CNV em relação aos familiares das vítimas e a timidez do diálogo que estabeleceu com as Forças Armadas.
Ex-militante do PCB na década de 1960, Del Roio foi um dos responsáveis pela salvação do arquivo histórico da imprensa operária brasileira mantido à época pela agremiação, que conseguiu transportar em segurança para a Fundação Giangiacomo Feltrinelli, de Milão, em 1977, e hoje repousa nos arquivos da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Sua primeira mulher, a militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) Isis Dias de Oliveira, desapareceu no Rio de Janeiro em 1972.
Radicado em Milão e estudioso das comissões da verdade na Europa e na América Latina, Del Roio tomou parte no Tribunal Russell, em Roma, que denunciou em 1974 as violações de direitos humanos praticadas pela ditadura brasileira. Em sua opinião, ainda que o pedido de punição da CNV para os 377 agentes da repressão que praticaramtorturas e assassinatos não resulte em prisões, a instauração dos relativos processos judiciais será indispensável: “É uma ferida que precisa ser fechada”.
Eis a entrevista.
O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, elogiou o relatório da CNV, que o Clube Militar considerou ‘absurdo’ e Luiza Erundina chamou de ‘covarde’. Qual é seu balanço?
O relatório é um marco na história do País por ser um documento de Estado. A presidenta mandou a lei que instituía a comissão para o Congresso, que a discutiu e aprovou, e o processo foi oficializado em cerimônia com a presença de todos os ex-presidentes da República e entidades da sociedade civil. Outros trabalhos relevantes, produzidos por ONGs, por uma secretaria especial da Presidência ou órgãos estaduais e municipais, são magníficos, mas não têm a importância extraordinária de um documento de Estado. É algo que modifica a sensibilidade sobre a memória do período e desenha o que é possível sobre a verdade - essa coisa tão complicada de se determinar que nem Jesus respondeu a Pilatos o que era - dos fatos. Claro que vivemos numa democracia e todos têm direito de elogiar ou criticar. Mas a crítica insensata ou ofensiva não deve ser validada.
A nota emitida pelo Clube Militar diz que o relatório não faz referência ‘à ação dos terroristas, guerrilheiros, sequestradores e assassinos esquerdistas que tentavam tomar o poder à força’. É uma crítica válida?
Foram feitas cerca de 40 comissões da verdade no mundo. De todos os tipos e perfis, mas com uma característica central: dar voz às vítimas da violência do Estado. A lei é claríssima: trata-se de apurar violações de direitos humanos cometidas por agentes da repressão. No caso brasileiro, o cidadão que cometeu algum crime no entendimento do regime foi processado e cumpriu pena. Sem falar na “pena” que não estava na lei: passar por horríveis torturas. Só os crimes do Estado nunca foram julgados. Sem falar numa questão básica: qual foi o crime original cometido nesse período histórico? Rasgar uma Constituição, a Carta de 1946, sem nenhuma consulta à sociedade.
E o argumento de que o golpe foi dado para impedir uma revolução comunista no Brasil?
Esse argumento tem um problema básico. Primeiro, vale recordar que nós fomos a maior escravidão colonial do planeta. Em número e em duração: 350 anos. Os Estados Unidos receberam 6% do tráfico de escravos mundial. SóSalvador, na Bahia, recebeu 12%. É uma marca indelével na história brasileira. Mas há uma outra marca: o anticomunismo. O Brasil é o único país do planeta em que o Partido Comunista esteve ilegal por 61 anos. Nunca ocorreu isso, nem nos EUA. Qualquer coisa era “comunizada” por aqui e depois não importava se era verdade ou não. O governo Jango não era comunista. Tinha um programa reformista, que defendia uma reforma agrária que Japão eAlemanha já tinham feito, por exemplo. Defendia uma reforma urbana que hoje percebemos, em nossas cidades, quanto era necessária. Propunha a modernização do capitalismo e adotava uma política internacional independente, nada mais. Além do que já havia uma eleição presidencial convocada - e os opositores de Jango teriam a oportunidade de derrotá-lo. Essa é uma opinião meio fantasmagórica minha, mas provavelmente quem venceria seria um senhor chamado Juscelino Kubitschek, que gozava de prestígio imenso no País e de comunista não tinha nada. Mas rasga-se a Constituição, depõe-se o presidente e, em um mês, prendem-se 50 mil pessoas. Cassam-se deputados, destituem-se líderes sindicais, censuram-se artistas. Tortura-se desde o primeiro dia. E um Brasil que se discutia democraticamente e se projetava culturalmente - na pedagogia de Paulo Freire, na arquitetura de Niemeyer, na bossa nova de João Gilberto, no cinema novo de Glauber Rocha -, um país que explodia de esperança, é cerceado. Tudo por conta do anticomunismo que envenenava nossa sociedade e da paranoia gerada pela Guerra Fria, especialmente após a Revolução Cubana, nos EUA. O golpe foi o crime original, a partir do qual se desencadearam todos os outros.
O sr. costuma ressaltar o papel de militares democratas que se opuseram ao golpe.
Nas conversas que tive com as Forças Armadas ficou clara a preocupação que eles têm com a imagem de unidade: “O Exército é um só”. Daí vem, creio, a dificuldade em admitir publicamente os crimes da ditadura. Como se dizer “erramos aqui” significaria romper com essa unidade. É uma visão equivocada. A começar pelo fato de que, historicamente, sempre houve divisões no Exército. Ele se fragmentou de todas as formas no período imperial, nós tivemos o tenentismo, a revolta dos 18 do Forte, a revolta paulista de 1924, a Coluna Prestes... O fato é que, após 1964, foram expulsos das Forças Armadas e perderam suas aposentadorias de 7 mil a 7.200 militares, cerca de 10% da corporação. Muitos foram mortos e torturados. Eles também não eram patriotas, que defendiam a Constituição? Por que a “unidade” a se demonstrar deve ser a dos que apoiaram o golpe? Costumo dizer, de brincadeira, que adoraria viver num mundo sem dentistas nem Forças Armadas. Infelizmente esse mundo não existe e nós precisamos delas. Que sejam então tecnicamente competentes, democráticas e respeitem a Constituição.
Erundina diz que a comissão não enfrentou os militares e o Brasil ‘continua em dívida com as vítimas’. Ela tem razão?
É evidente que o Estado brasileiro continua em dívida com as vítimas. A CNV foi uma construção difícil, até por falta de experiência. E a burocracia do Estado nem sempre responde às demandas como deveria. Solicitação de documentos, aprovação de financiamentos, contratações, tudo é complicado e vagaroso - para uma comissão que tinha de trabalhar rápido. Faltaram recursos, funcionários, estrutura. Mas faltou, também, sensibilidade no trato com as famílias. Além dos que buscavam desaparecidos, havia vítimas de tortura - um trauma que não passa nunca, como vimos no choro da presidenta durante a cerimônia. Restam por resolver coisas básicas como a emissão correta de atestados de óbito. E só foram entrevistadas pela CNV cerca de mil vítimas, quando se sabe que o número é infinitamente superior. Ouvir as vítimas é fundamental para uma comissão que nasceu para dar voz a elas. Então, é claro que as famílias têm razão de estarem insatisfeitas. Acho também que o diálogo com as Forças Armadas atuais poderia ter sido mais intenso. A deputada Erundina, por quem tenho profunda admiração, se exprimiu de forma pouco política, mas muito humana.
E a repercussão internacional?
O impacto foi contraditório. Positivo porque o Brasil finalmente fez, mas negativo porque põe o País na parede. O Estado brasileiro já foi condenado por não ter esclarecido os fatos, não ter encontrado os corpos nem ter julgado crimes contra a humanidade, que são imprescritíveis. Agora, a pressão internacional será maior.
A única das 29 recomendações da CNV não aprovada por unanimidade foi a que pede a revisão da Lei de Anistia para que se julgue os agentes envolvidos em crimes. Dois ministros do STF se manifestaram: Marco Aurélio Mello, contra a revisão, e Luis Roberto Barroso, para quem o Supremo terá de trazer a discussão de volta à pauta. Quem está certo?
Não adianta alguns ministros dizerem que resoluções internacionais não influem. Influem, sim, desde que o País as tenha assinado. E agora que até a ONU se manifestou a favor do relatório, será difícil ignorá-lo. Como há representações de partidos políticos e de organizações pedindo nova apreciação do tema, o STF terá de fazê-lo. Por uma questão técnica e tática, a CNV não pede a revogação da Lei da Anistia, mas sustenta que ela não abarca crimes contra a humanidade.
E os tais ‘pactos políticos’ da redemocratização, aos quais a presidente fez referência?
A Lei da Anistia foi aprovada por apenas 5 votos, num Parlamento com 30 deputados e senadores biônicos, em plena vigência da ditadura. Foi um pacto sob a coação de baionetas. A ideia de dizer “vamos esquecer tudo” não existe. Foi uma imposição de uma transição frágil. Tão frágil que nunca acaba. O Brasil hoje é uma democracia com defeitos muitas vezes ligados a essa tentativa de esquecimento.
E a proposta de desmilitarização da polícia?
Cada polícia no mundo tem suas particularidades e vícios. Já vimos até a admirada Scotland Yard matar inocentes nas ruas no afã de conter o terrorismo. Nada é perfeito, mas o Brasil tem um problema sério com a PM. Porque ela foi criada pela ditadura para repressão interna global. É comandada pelo governador só até certo ponto, porque há também um general lá em cima - por isso o máximo que se tem à frente dela nos Estados são coronéis. Um duplo comando ruim, mas sobretudo é o conceito por trás dela que está errado. Um exército é feito para controlar fronteiras e preparado para matar. Suas armas e táticas são de liquidação do inimigo. Isso não é uma crítica, é sua função conceitual. Já a polícia trabalha num setor delicado, que pede diálogo com a população, poder de contenção, prevenção do crime. Ninguém está pedindo para desarmar a polícia, mas que se dê a ela um formato institucional mais condizente com suas funções. Policiais militares não podem discutir a profissão, formar sindicatos, pedir melhores salários. Estou certo de que muitos gostariam de ser desmilitarizados.
O relatório pede punição para 377 pessoas, entre militares e civis, das quais ao menos 196 estão vivas. Isso acontecerá?
Acho que o MP vai agir e espero que processos sejam abertos rapidamente. É preciso fazê-lo. Todos os países, mesmo desenvolvidos, tiveram dificuldades em lidar com suas transições. Vejam o tanto que a Alemanha fez para digerir o nazismo, os problemas da França com a República de Vichy ou o franquismo na Espanha. Eu não quero pôr velhinhos na cadeia - não é esse o problema. Os processos devem ser instaurados para que haja justiça. E essa justiça tenha efeito em nossa sociedade hoje. O Brasil tem três, quatro desaparecidos por dia. A tortura é rotina nas delegacias. É preciso mudar essa cultura de tolerância. Se não resolvermos isso, vai continuar o drama para a construção de uma nação. É uma ferida que precisa ser fechada.
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