Por José Vicente Santos de Mendonça
Dizia Nélson Rodrigues que só os profetas enxergam o óbvio. Pois este é, então, um texto de qualidades proféticas. De fato: nada mais óbvio do que exigir que os atos administrativos tenham por base situações reais e se proponham a atingir, de modo realista, estados reais. Se o Direito Público do século XXI não é mais aquele monte de palavras bonitas com resultado zero, também o Direito Administrativo dos dias de hoje é Direito comprometido com o contexto no qual vai ser aplicado e com o adiantamento das conseqüências dessa ou daquela linha de ação. Thomas Grey escreveu que o pragmatismo jurídico é a teoria operacional implícita da maioria dos bons advogados. O mesmo também é verdade em relação à maioria dos bons administradores públicos.
A história do Direito Administrativo é a história da luta entre o empoderamento do Estado e as diversas formas de se controlá-lo: procedimentos, participação, voto. Nos últimos anos, em função de algumas referências doutrinárias e de certa incidência em decisões judiciais, começou-se a falar no princípio da realidade como elemento de controle da discricionariedade.
Definição simples está em Raquel Urbano (Curso de Direito Administrativo, Podium, 2008, p. 95): pelo princípio, nenhuma norma administrativa pode ignorar o mundo dos fatos. “Se há discordância entre determinada presunção e o que restou comprovado na prática administrativa, deve-se atentar para a veracidade das circunstâncias empíricas”. Em termos dogmáticos, não estamos diante de princípio jurídico na acepção de Alexy: exigir que atos administrativos tenham bases e propósitos reais não é norma de incidência gradual. Ou eles preenchem tais requisitos, ou não. Estamos diante de regra. Mas, distanciando-nos de preocupações acadêmicas, podemos muito bem chamá-lo de “princípio” da forma como viemos chamando todas as normas — regras ou princípios ou seja lá o quê — que nos soem importantes.
Problema não é saber se é ou não princípio. Interessante é saber se é novo. Não é. Há — literalmente — séculos se fala que o elemento “motivo” dos atos administrativos significa que as bases de fato e de Direito do ato devem ser válidas e verdadeiras. Isso não é outra coisa senão boa parte das exigências do princípio da realidade. O princípio da realidade também já poderia ser extraído, como regra de interpretação, do artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: na interpretação da lei, o juiz (e todo mundo) deve interpretar a lei com base em seus fins sociais e nas exigências do bem comum.
Seja princípio ou regra, novo ou velho, fato é que o princípio da realidade já vai se tornando — perdão pelo trocadilho — realidade. Há pelo menos duas referências no STF. No primeiro caso, o Supremo entendeu que havia violação, dentre outros, ao princípio da realidade, na prática da Administração de demitir e recontratar professores públicos a cada final de ano letivo, como forma de impedir a aquisição da estabilidade do artigo 19/ADCT (RE 158.448).
No segundo caso, a incidência é remota: o Supremo entendeu que, dentre outros fundamentos, o princípio da realidade tornava possível que medida provisória criasse foro especial por prerrogativa de função para o presidente do Banco Central (ADI 3.289/2005). Também constam referências ao princípio da realidade no STJ (por ex., RESP 64.124-RJ) e em vários tribunais locais.
Mesmo assim, em muitos casos atuais ainda se editam leis e atos administrativos afastados de bases reais e de exeqüibilidade prática. São os casos de legislação-álibi (e de administração-álibi): o legislador/administrador resolve dar satisfação à opinião de senso comum (e/ou a seus eleitores) impondo obrigações impossíveis. Imposição de gratuidades em negócios privados sem indicação de custeio, criação de órgãos públicos fiscais do nada — a imaginação é farta.
Conta-se que ainda hoje há ato administrativo, da época da Guanabara, que regula o horário de funcionamento das praias cariocas. E, ao que parece, ainda está em vigor lei municipal carioca que obriga todos os bares e restaurantes a fornecer gratuitamente a todos os que se sentarem um pedaço de pão e um copo d’água. De modo que, ainda hoje, quando a praia de Ipanema fechar, talvez seja uma boa irmos comer de graça um pão de pato no restaurante do hotel Fasano.
Por caricaturais que sejam, as violações ao princípio da realidade mostram dados típicos de nosso pensamento público: ausência de planejamento, externalização de deveres, e, acima de tudo, a tendência a pretender que o mundo mude graças à edição de atos formais. Nunca mudou. O mundo e o Direito estão associados numa interação tensa, dinâmica, muitíssimo complexa. Bem disse Georges Ripert: “Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito”. Pois é.
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