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O verdadeiro desafio não é inserir uma idéia nova na mente militar, mas sim expelir a idéia antiga" (Lidell Hart)
Um verdadeiro amigo desabafa-se livremente, aconselha com justiça, ajuda prontamente, aventura-se com ousadia, aceita tudo com paciência, defende com coragem e continua amigo para sempre. William Penn.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

A cara de Anselmo

 

Soledad olha para os olhos do homem que pensara ser o seu companheiro, e isso, essa realidade, o pesadelo por guardar uma altura ética jamais mostrou. O pesadelo fora incapaz de exibir toda a crueza. Anselmo não sorri agora, sorrirá depois, quando lhe perguntarem: - Você dorme bem? A resposta foi algo como: Putz, tranquilamente. Ele apenas assiste ao espancamento e suplício. Como uma prova de que é contra esses terroristas. O artigo é de Urariano Mota.

(*) Trecho do penúltimo capítulo do livro "Soledad no Recife", de Urariano Mota.

A cara de Anselmo, no conjunto dos sinais, Soledad não via. Não tanto porque a desconfiança não lhe houvesse batido à percepção. Mas porque isso era tão horrível, que o seu senso estético repugnava. Uma coisa que o seu peito de justiça não queria nem podia aceitar. E recuava, no mesmo passo em que os indícios cresciam. Mas o Cartório de Registro dos Sonhos existe, ainda que fora do domínio civil de uma cidade. Ele existe ao lado dos lugares onde se bebe, come-se e se morre. Os seus documentos, se não têm efeitos legais, recuperam no real os direitos. Os sonhos, quando muito fortes, os pesadelos, quando inescapáveis, tornam-se tangíveis. Houve então um momento em Sol, houve um espaço e lugar nas suas antevisões, em que se passou do antes para o agora, sem mediação para o horror que jamais havia se apresentado com a sua cara. Nas representações anteriores, nos indícios, não se mostrava assim tão claro.

- Por quê? Por quê?!

A pergunta que Soledad não se fizera diante das imagens que a perseguiam nos últimos meses, por quê?, qual a razão delas, agora à luz do dia em Boa Viagem, em uma butique da ensolarada praia de Boa Viagem, aonde ela foi para vender roupas, onde ela está com Pauline, ali, sob a prazenteira luz física do Brasil, a pergunta pelas razões dos sonhos e pesadelos que ela não se fizera, agora vêm com um susto, um terror, diante do real bruto. José Anselmo dos Santos se encontra entre os homens que lhe batem na cabeça com armas e punhos.

- Por quê Por quê?

Pauline está muda e petrificada, incapaz de correr e falar. Soledad olha para os olhos do homem que pensara ser o seu companheiro, e isso, essa realidade, o pesadelo por guardar uma altura ética jamais mostrou. O pesadelo fora incapaz de exibir toda a crueza. Anselmo não sorri agora, sorrirá depois, quando lhe perguntarem

- Você dorme bem?

- Putz, tranquilamente.

Ou mais textualmente:

- Você dorme tranquilo? Nunca sentiu pesadelo durante a noite? Não tem remorso pelo que fez?

- Absolutamente (risos)....

Por enquanto, não, agora na butique em Boa Viagem ele não ri, embora a cena lhe pareça um tanto cômica.

- Por quê? Por quê?

Ele apenas assiste ao espancamento e suplício. Como uma prova de que é contra esses terroristas.

“Eu tomei conhecimento de que seis corpos se encontravam no necrotério.... em um barril estava Soledad Barret Viedma. Ela estava despida, tinha muito sangue nas coxas, nas pernas. No fundo do barril se encontrava também um feto”.

Quando Mércia Albuquerque declarou essas palavras, não era mais advogada de presos e perseguidos políticos. Estava em 1996, 23 anos depois do inferno. Mércia estava acostumada ao feio e ao terror, ela conhecia há muito a crueldade, porque havia sido defensora de torturados no Recife. Ainda assim, ela, que tanto vira e testemunhara, durante o depoimento na Secretaria de Justiça de Pernambuco falou entre lágrimas, com a pressão sangüínea alterada em suas artérias. Dura e endurecida pela visão de pessoas e corpos desfigurados, o pesadelo de 1973 ainda a perseguia: “Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror”. No depoimento da advogada não há uma descrição técnica dos corpos destruídos, derramados no necrotério.

Mércia Albuquerque é uma pessoa se fraterniza e confraterniza com pessoas. “Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela”. Distante dos manuais exatos da Medicina Legal, a advogada Mércia não se refere a cadáveres, mas a gente. Chama-a pelos nomes, Pauline, Jarbas, Eudaldo, Evaldo, Manuel, Soledad. Recorda a situação vexatória em que estavam – porque eram homens e mulheres –, despidos. O seu relato é como um flagrante desmontável, da morte para a vida. É como o instante de um filme, a que pudéssemos retroceder imagem por imagem, e com o retorno de cadáveres a pessoas, retornássemos à câmara de sofrimento. “A boca de Soledad estava entreaberta”.

Podemos mais, nesse filme que recuamos para antes do terror como um desenvolvimento. E ao voltar, fazemos uma grave descoberta. Se dissermos que havia na pessoa de Soledad o seu caráter, nada demais estaremos dizendo. Assim ela era como personalidade e assim era o seu todo, da suavidade ao calor, à paixão, à inteligência. Se essa visão não é simples, é, pelo menos, quase óbvia. Mas vemos uma coisa que não sabemos se grata, mas que é séria, algo de que jamais desconfiávamos, e por isso jamais imaginamos descobrir: Soledad era uma encarnação de palavras. Isso não é metáfora, nem muito menos “recurso estilístico”. Aqui chegamos a um estágio em que o melhor é narrar colado aos fatos e à sua complexidade.

Pesquisadores já escreveram que, de um ponto de vista genético, todos temos significativa herança dos avós. Mas Soledad, mais que uma herança genética, era filha do seu avô. Em espírito e vida, era filha do escritor Rafael Barret. Isso dito assim, escrito nessa frase, é informação que nada explica nem permanece. Porque é necessário que se diga, mais que se informe, que o escritor Rafael Barret era um homem anarquista, um intelectual anarquista do começo do século XX, e mais, e aqui nos aproximamos do destino de Soledad.

Rafael Barret era, é um escritor poderoso, um artista dos incomuns, dos que fazem obra com o seu pensamento e vísceras. Falecido aos 34 anos, em 1910, foi um espanhol que amou o povo paraguaio com uma dedicação apaixonada, louca, universal, com os olhos críticos contra a podre sociedade de então. Mas tudo que acabo de dizer soa como retórica, como oco panegírico, se não transcrevemos palavras suas, para notar em quê esse escritor era mesmo tão bom, fecundo, adivinhatório. “Às vezes é necessário um motim para restabelecer a ordem”, esclarecia. Rafael Barret poderia ser um humorista, com o seu brilho para o paradoxo, se não tivesse os pés metidos no charco, no Chaco, urgente. Ele parecia ter a consciência clara do quanto os seus curtos dias punham a sua vida no urgente.

Nele há pensamentos que, dirigidos aos paraguaios, atingem os paraguaios de todos os países do mundo. “Enquanto a dor não te queime as entranhas, enquanto um dia de fome e abandono – pelo menos um dia – não te vomite para a vasta humanidade, não a compreenderás”. E como um chamamento, profético, seguido por Soledad Barret, hoje vemos: “Preparem suas crianças para que vivam e morram sem medo”.

Quando adentramos o espírito de Rafael, quanto mais o pesquisamos, mais ficamos em espanto com a solene descoberta, solene porque não só grave, mas séria: Soledad Barret encarnou o mundo de palavras desse gênio. Ainda que passemos ao largo de estranhos acasos, estranhos para não dizê-los impressionantes, acasos, para não dizer coincidências, como os dias de nascimento de Rafael e morte de Soledad, 7 de janeiro de 1876 e 7 de janeiro de 1973, um dia depois do aniversário de Sol em 6 de janeiro, ainda assim há na formação e últimos instantes de Soledad uma encarnação das palavras de Rafael Barret: “Por isso o mais forte do homem é uma idéia que não se curva”. Parece-nos, quando o filme retorna à posição do seu corpo no necrotério, uma fé, concreta e tangível e indubitável, no valor das palavras, nas conseqüências da palavra, como um vigor realizado que descobre e faz crescer pensamento. Um pensamento que foi até o sangue, real, doloroso, até a derradeira expressão, quase diria, mas que não é derradeira, porque é da natureza do pensamento a frutificação.

O poema Muerte de Soledad Barret, belo poema de Mario Benedetti, não poderia jamais adivinhar o suplício da morte de Soledad, quando diz:
“los cables dicen que te resististe
y no habrá más remedio que creerlo
porque lo cierto es que te resistías
con sólo colocárteles en frente
sólo mirarlos
sólo sonreír”


Esse poema, que faz Soledad atravessar uma reta de melancolia nas ruas de Montevidéu, não poderia crer que ela fosse atraiçoada de maneira e forma tão desleal. Porque não há como resistir – bater-se de frente contra – quando se é atacado por trás de um modo que indeciso ficamos em qualificá-lo de covarde, canalha ou infame. Como se pode esperar – para assim resistir – o ataque de um filho ou de alguém a quem se ama? O poema de Benedetti, escrito no calor da hora, sob o impacto dos informes da Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco que relatavam ter sido um centro de guerrilha destruído, é poesia cuja construção de beleza cresce ainda hoje, quando recorda a vida de Soledad, não exatamente as circunstâncias miseráveis de sua morte:
“...con tu pinta muchacha
pudiste ser modelo
actriz
miss Paraguay
carátula
almanaque”


Ainda assim, comovente, quando o poeta imagina a morte de sua musa com um fim piedoso, assim como imaginamos, todos nós, mortais para quem a morte não pode ser mais cruel que a própria morte, e olvidamos, e esquecemos, e não queremos ver que as circunstâncias da morte podem torná-la ainda mais cruel.
“...ignoro si estarías
de minifalda o quizá de vaqueros
cuando la ráfaga de Pernambuco
acabó con tus sueños completos”


É natural que, por não saber, por ignorar o que de fato houve, mal finda a leitura das notícias trazidas por telegramas, é natural que o poeta recue ante a maior crueldade. Pois que fim grandioso seria, ainda que duro e doloroso, que belo fim seria a morte sob ráfagas, rajadas de metralhadoras, lufadas de vento, raios de luz de balas de Pernambuco! Os corpos, quando metralhados, sobem. Dizem que sobem sob o impacto dos tiros. E assim atingidos com tal profundidade e rapidez, sob os clarões do fogo, sobem e caem sem vida. Quase, se nisso não vêem cinismo, é quase como um fim sem dor. Terrível, mas ainda não foi assim, sob ráfagas ou rajadas de metralhadora.
“por lo menos no habrá sido fácil
cerrar tus grandes ojos claros...”


Não, grande e terno poeta, a Soledad que conheceste em Buenos Aires, em Montevidéu, a bela e graciosa e feliz mulher, porque vivia no que acreditava, porque lutava para um mundo fraterno, porque se entregava ao mundo como quem se doa a uma fraternidade, estava na verdade, quando pela covardia foi apanhada, com os olhos sem que se fechassem.

Os dela estavam uma câmera que refletia em instantâneo o perverso das luzes. “Soledad estava com os olhos muito abertos, com expressão muito grande de terror”, assim registrou esse instantâneo a advogada Mércia Albuquerque. Do país onde te encontravas, Benedetti, apenas com a dor da perda e a memória da vida de Soledad, é natural que somente pudesses escrever, no calor da urgência, quando te referiste àquelas duas câmeras no rosto de Sol, com o amor que despertaram em ti:
“tus ojos donde la mejor violencia
se permitía razonables treguas
para volverse increíble bondad”.


Silêncio. Entram a romanza para violin y orquesta nº. 2 e o terror. O mais piedoso é o silêncio. Uma pausa, um parágrafo. Passemos ao largo, se quisermos, o parágrafo seguinte pode ser ultrapassado de um salto, assim como editamos com os olhos uma crua imagem no cinema.

“O que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando coagulou, ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto estava lá nos pés dela. Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror”.

As santas virgens do Paraguai carregam o filho nos braços e a seus pés têm anjos, às vezes também luas em quartos minguantes. Sangue e feto aos pés só a guerreira Soledad Barret Viedma.

(*) Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997), um romance de formação, que se passa sob a ditadura de Emílio Garrastazu Médici (1969–1974), e de Soledad no Recife (São Paulo, Boitempo, 2009).

Fonte: Carta maior

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