Resumo: Este texto tem por objetivo descrever a mobilização dos soldados, cabos e sargentos da PMMG em 1997. Analisa o conflito entre oficiais e praças e, por ressonância, as relações dos atores do movimento em relação ao Estado. Destaca o início da greve e os seus principais resultados.
1 -DOS PRIMEIROS PASSOS
Junho de 1997, a Polícia Militar do Estado de Minas Gerais (PMMG), iniciou as comemorações de seus 222 anos. Policiais militares, em sua grande maioria praças, deram inicio a um movimento reivindicatório inédito em toda sua história.
O movimento dos policiais, notadamente dos praças, não nasceu ao acaso. Já em 1988 a imprensa destacou a seguinte matéria: "Coronel afirma que governador corrompe comandantes da PM". A notícia é de um coronel reformado denunciando a miséria na Polícia Militar. De lá para cá encontramos - em 19 de maio de 1992 - a manifestação "Panela Vazias" protagonizada por cerca de 200 esposas de policiais militares da capital que saíram da Praça Duque de Caxias, passaram pelos 16º e 01º Batalhões até chegarem ao prédio do comando. Elas bateram panelas, fizeram orações e gritaram palavras de ordem. O movimento foi pacífico e pontual, mas não deixou de marcar na memória uma antiga reivindicação dos policiais, a isonomia salarial com os funcionários dos poderes judiciário e legislativo. Em setembro de 1995; novamente um coronel publicou na imprensa um manifesto incitando as praças a tomarem uma posição diante das condições objetivas por que passava os praças. Ironicamente, ele enfatizou: "onde estão os Clubes dos Subtenentes, Sargentos, Cabos e Soldados?" (Filocre, 2004, p. 168).
As tímidas manifestações enunciadas não deixam de revelar o mal-estar existente na Polícia Militar de Minas Gerais. Provavelmente, elas já evidenciavam um amadurecimento político dos integrantes da corporação caracterizado como uma "percepção tardia" de direitos por Cotta (2006) e levada a efeito depois a partir das "performances familiares apreendidas" ao longo do tempo (Almeida, 2006).
No entanto, o que abalou "a disciplina e a hierarquia que constituem a base institucional da Polícia Milita" foi a sexta-feira do dia 13 de junho de 1997, o qual na visão das principais lideranças do movimento foi um "divisor de águas".
2 -DO DESFILE ATÍPICO
Após o conhecimento de que os delegados da Polícia Civil, através de sua entidade representativa, haviam obtido êxito em uma ação judicial que lhes reconhecia o direito à paridade de vencimentos com os Procuradores do Estado, oficiais da Polícia Militar, especificamente os coronéis, se articularam no intuito de igual vantagem fundamentados em uma prática "política" patrimonial vigente desde 1963, a qual estabelecia a equiparação de vencimentos entre os cargos da Polícia Militar e da Polícia Civil.
Em cinco de junho de 1997 o governador Eduardo Azeredo (PSDB) concedeu um reajuste de 11% aos oficiais da Polícia Militar seguindo a primeira etapa da desejada equiparação com os delegados. A decisão política do governo, o qual acreditou na "histórica docilidade, disciplina e dedicação dos policiais de baixa patente da polícia mineira" (Barros, 2006, p. 25), quebrou laços de solidariedade, reforçou uma espécie de darwinismo policial nas relações existentes entre oficiais e praças e precipitou a revolta dos praças que passaram a reclamar no interior das unidades da corporação.
No dia seguinte ao anúncio de reajuste privilegiado aos oficiais, o cabo Glendyson Hércules de Moura Costa, 31 anos, foi alvejado por cinco tiros a queima roupa, quando tentava prender criminosos que roubavam uma casa lotérica. O episódio tencionou as relações no interior dos quartéis e, cinco dias após ser baleado, o policial militar não resistiu e morreu. O sepultamento do praça contou com a mobilização de aproximadamente 300 policiais.
No 22º Batalhão da Polícia Militar (BPM) e no Batalhão de Choque colchões foram queimados nos alojamentos das praças. Acreditando na "docilidade da tropa" o comando da corporação minimizou os fatos e negou qualquer ato de rebeldia.
No dia 12 de junho de 1997, cerca de 300 praças do Batalhão de Choque recusaram as ordens para o policiamento. Neste mesmo dia ocorreram manifestações no 13º BPM, 16º BPM e 18º BPM. No dia seguinte a tropa do Batalhão de Choque ganhou as ruas de Belo Horizonte. Com um forte caráter de livre exercício da cidadania mesclado à cultura da caserna, muito bem conceituados por Cotta (2000) como "uma atípica cerimônia militar", os servidores policiais militares saíram em passeata reivindicativa no mesmo modus operandi dos trabalhadores celetistas. Durante o percurso, os PMs não interromperam o trânsito, ocuparam somente uma faixa da pista, ensaiaram palavras de ordem, orações, hino da corporação e o Hino Nacional.
A passeata chegou ao coração da capital mineira e os policiais abraçaram estrategicamente o "Pirulito" da Praça Sete. Naquele local era percebido o apoio dos policiais civis, dos policiais militares do Batalhão de Trânsito, da Cavalaria, do 01º, 16º e 18º Batalhões de Polícia. Em seguida, os policiais desfilaram em direção à Praça da Liberdade contando com muitos aplausos da população e chuva de papéis picados.
Em frente ao Palácio da Liberdade, cerca de 1500 policiais entoaram o Hino Nacional, se ajoelharam e fizeram orações em memória aos companheiros que tombaram em confrontos com criminosos e por suicídio. Além disso, deram entrevistas ás redes de TV e queimaram os contracheques dando de costas ao Palácio da Liberdade.
Longe da liderança e representação dos oficiais de alta patente, soldados, cabos e sargentos constituíram uma comissão e partiram para a negociação direta com o chefe do executivo mineiro. A comissão composta por representantes das entidades de classe e três militares do Batalhão de Choque apresentou a seguinte pauta de reivindicações: piso salarial de R$ 800,00, promoção por tempo de serviço (dez anos) e não apenas por concursos internos, revisão imediata do RDPM, do Estatuto de Pessoal da Polícia Militar, a não punição dos manifestantes e uma política habitacional que atendesse principalmente aos cabos e soldados.
Após uma hora de reunião sem acordo com o Secretário da Casa Civil, Agostinho Patrus, as lideranças reuniram os manifestantes e marcaram uma assembléia para o dia seguinte no Centro Social de Cabos e Soldados. Este dia foi sintetizado por Barros (2006, p. 24) da seguinte forma, "a força da mobilização foi maior do que se pensava, era necessário "respirar", ser "alguém", ter "dignidade" e o papel reconhecido pela instituição e pela sociedade" (grifos do autor).
3 -DOS FATORES DO MOVIMENTO
O movimento reivindicatório das praças da Polícia Militar de Minas Gerais em 1997 não pode ser explicado somente tendo por referência mecanismos econômicos. Obviamente, outros fatores levaram a efeito a mobilização das praças. Contudo, tanto Filocre (2004) como Barros (2006) e Santos (2006) chamaram atenção para a questão do reajuste diferenciado associado aos baixos salários das praças que eram obrigadas a adotarem uma segunda (às vezes uma terceira) atividade conhecida como "bico".
Tomando por base os vencimentos dos sargentos, notadamente a categoria dos terceiros sargentos (a "mola mestra" e/ou o "elo" de ligação entre as praças e a oficialidade, "pardais", tal como são identificados no interior da caserna), no período mencionado, observa-se que o soldo de R$ 171,74 (cento e setenta e um reais e setenta e quatro centavos) sequer se aproxima da metade do declarado como direito pelo Comandante do Policiamento da Capital (CPC), coronel José Guilherme do Couto, o qual em entrevista a um periódico da cidade, tentava colocar "panos quentes" no movimento:
Apoiamos qualquer luta pelos direitos dos policiais, desde que ocorra dentro dos regulamentos e seja mantida a disciplina. Também acho que um soldado deveria ganhar R$ 1.000,00, mas o Estado não tem como pagar. (Couto, apud Santos, 2006, p. 23).
Analisando criteriosamente os vencimentos na polícia, Filocre (2004, p. 181) sentencia: "quaisquer que sejam os índices provam a inexistência de uma política salarial razoável e autorizam a conclusão de que, mesmo nos valores mais altos, nunca foram suficientes e, nos mais baixos, se chegou ao estado de penúria em afronta à condição do policial militar".
O Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de Minas Gerais (RDPM) - o famigerado "Amarelinho" - no período anterior ao movimento, ferramenta importante para o que chamamos de darwinismo policial, no qual os atores sociais que açambarcaram maiores recursos simbólicos e políticos exercem poder e sadismo sobre os que estão abaixo na hierarquia, tinha a finalidade de levar a efeito as punições disciplinares e controle do comportamento das praças. Constituía-se ele em um eficaz mecanismo de controle, docilidade, perversão e conservadorismo das condições objetivas vigentes. Mais que isso, o "Amarelinho", além de inconstitucional, era conservador, arcaico, arbitrário e invadia, inclusive, a esfera da privacidade do policial militar.
Art. 1º - O Regulamento Disciplinar da Policia Militar (RDPM) tem por finalidade definir, especificar e classificar as transgressões disciplinares e estabelecer normas relativas a punições disciplinares, comportamento policial-militar das praças, recursos, recompensas e Conselho de Disciplina (POLÍCIA MILITAR DE MINAS GERAIS. RDPM, R-116, 1985 - grifo nosso).
A inconstitucionalidade de um item do temido Art.13 do regulamento mostra o paradoxo com o advento da Constituição de 1988. A mudança só veio três anos após sua promulgação em um aviso assinado pelo então comandante Geral Euro Magalhães: "o artigo 13, nº. 132, do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar, por ser incompatível com o estabelecido no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, ficou ipso facto derrogado, não podendo mais ser aplicado".
Outro ponto bastante sensível na organização e afeta diretamente os interesses dos policiais militares é o caso das promoções. Ser promovido constitui-se em melhoria salarial e elevação de status com as conseqüentes deferências. Tanto no campo da atuação dos oficias como na dos praças, os interesses são latentes e, inegavelmente, produzem tensões e conflitos. Barros (2005) detectou tais relações, cujo funcionamento se alicerça no "jogo das promoções", no qual interesses divergentes colocam em conflito atores que operam tanto nas atividades fim como nas ações cotidianas no interior da corporação. Nesse contexto, não é ao acaso que, na subcultura organizacional, "discutir promoções é vivenciar momentos emocionados de debates, entrega de "segredos", evidências de relações patrimoniais, de injustiça, incerteza, traição e medo" (Barros, 2005, p. 106). O autor conclui que esse jogo interno traz conseqüências perversas à implementação e gerenciamento de políticas públicas de segurança: "(...) os conflitos internos e políticos informalmente organizados mostram a dificuldade em gerenciar ou mesmo criar e levar a cabo projetos no campo da segurança pública" (Barros, 2005, p. 125).
Além dos três pontos analisados, considerados mais importantes, outros fatores certamente interferiram no cotidiano dos servidores militares de Minas Gerais no final dos anos 90. Dentre eles, é possível identificar a falta de armamento, equipamentos de proteção, viaturas para o trabalho cotidiano, o grande número de casos de policiais militares endividados, alcoólatras e o bom número de suicídios.
4 - A LUTA CONTINUA ...
Após rasgar simbolicamente o Regulamento Disciplinar da PM, soldados, cabos e sargentos realizaram no dia 14 de junho uma assembléia no Clube de Cabos e Soldados onde decidiram voltar às atividades, concedendo um prazo de dez dias para o governo acolher ou debater a pauta das reivindicações. Uma próxima assembléia foi agendada para o dia 24 de junho no mesmo local.
Ainda no dia 14 de junho vários policiais militares se mobilizaram nas cidades de Governador Valadares, Montes Claros, Uberlândia, Ipatinga, Juiz de Fora, Barbacena e outras. No dia 16 de junho, o movimento reivindicatório conquistou sua primeira vitória. O Comando Geral entregou às lideranças o anteprojeto de revisão do Estatuto e do Regulamento Disciplinar.
O governador Eduardo Azeredo, o qual havia viajado à Europa dois dias após a primeira manifestação, retornou no dia 21 de junho e anunciou um abono de R$ 102,00 para as praças, que não aceitaram a proposta. Neste mesmo dia o governador substituiu os integrantes do Estado Maior da Polícia. O coronel Osvaldo Miranda da Silva assumiu o novo Comando do Estado Maior no lugar do coronel Hebert Magalhães. O comandante do Policiamento da Capital, José Guilherme Couto foi substituído pelo coronel Edgar Eleutério Cardoso, ambos considerados como "linha dura" na instituição mais que bi-secular.
No dia 23 de junho, foi realizada uma nova assembléia no Clube de Cabos e Soldados no intuito de renovar as decisões para a reunião do dia seguinte, haja vista que muitos praças que buscavam se mobilizar estavam sendo presos e punidos. Os dez dias que antecederam a nova assembléia foram marcados por inúmeras tentativas de esvaziamento, desmobilização, assédio moral, ameaças, prisões e a constituição da tropa denominada Força Legalista (Forleg) para operar ao lado do Comando Geral.
Reunidos no Clube de Cabos e Soldados, no dia já mencionado, cerca de 3000 policias militares decidiram novamente "desfilar" pelas ruas da capital em defesa de seus direitos. No cruzamento das Avenidas Barbacena e Amazonas, no bairro Santo Agostinho, a manifestação foi reforçada pela mobilização dos policiais civis e unidos partiram para a Praça Sete, na qual novamente os policiais abraçaram ao obelisco. Sob aplausos da população, já contando com cerca de 4000 manifestantes, os policiais seguiram para a Praça da Liberdade, sede do Governo do Estado e do Comando Geral da Polícia, na qual foram recebidos por 600 policiais entre cadetes e policiais do interior, oriundos e/ou componentes da Força Legalista.
Os fatos que se seguiram foram trágicos. Alguns manifestantes "atropelaram" parte dos servidores da Forleg que faziam o cordão de isolamento e tentaram invadir o prédio do Comando Geral. Muitos tiros foram disparados. O cabo Valério dos Santos de Oliveira, 36 anos, que tentava conter os ânimos dos amigos foi, infelizmente, atingido por um tiro na cabeça. Socorrido ao Hospital de Pronto Socorro, João XXIII, em estado gravíssimo, o policial militar não resistiu e morreu no dia 29 de junho de 1997.
Duas hipóteses foram apresentadas sobre quem teria atingido o Cabo Valério. O comando da polícia apresentou o Soldado PM Wedson Campos Gomes, como o autor do disparo que atingiu o militar fundamentado em imagens divulgadas por emissoras de TV. Já as lideranças do movimento, e uma praça do 18º BPM que testemunhou o fato, acusaram como autor do disparo o novo Comandante do Policiamento da Capital (CPC), coronel Eleutério Cardoso. "Eu vi o cabo Valério caindo baleado e o coronel Eleutério trocando a arma com um cadete" (Santos, 2006, p. 62).
Em meio à crise, o governador Eduardo Azeredo recorreu ao Governo Federal, que enviou as Tropas da 4ª Divisão do Exército sediadas na capital. Elas se concentraram nas imediações governamentais como o Palácio da Liberdade, dos Despachos e nas Mangabeiras (a residência oficial do governador).
No dia 26 de junho, o governo do Estado anunciou um piso salarial de R$ 615,00 para soldados e detetives em início de carreira, significando um aumento real de 48% nos salários. Às outras patentes, ficaram acordados aumentos escalonados dependendo do grau hierárquico. As praças conseguiram também a garantia de participação em comissões de revisão do Regulamento Disciplinar, no Estatuto de Pessoal da corporação e benefícios indiretos, como uma política habitacional que levasse em conta a capacidade de pagamento do servidor e maior transparência nas decisões da corporação.
Todavia, o comando da PMMG instaurou o primeiro Inquérito Policial Militar (IPM) em 27 de junho no intuito de apurar a morte do Cabo Valério. Outros dezessete inquéritos foram instaurados visando apurar a participação das praças no movimento reivindicatório. Unidos com as principais lideranças uma centena de policiais militares foi condenada com a pena administrativa capital, a exclusão disciplinar. No dia 13 de fevereiro de 1998 o soldado Wedson Campos Gomes foi considerado culpado pelo homicídio do cabo Valério e, em seguida, condenado a oito anos de prisão.
A condução dos processos do movimento foi seguida por acusações de perseguição, falta de transparência e vingança por parte dos oficiais administradores. Tais relações produziram um novo movimento, "Anistia já para os PMs".
Com a eleição de Itamar Franco em 1998 para o governado do Estado foi encaminhado à Assembléia Legislativa a Emenda à Constituição Estadual nº 39, de 24/05/1999 , a qual por meio de um mecanismo administrativo tratou de separar o Bombeiro das atividades da Polícia Militar, enquadrando na corporação dos Bombeiros Militares as praças excluídas. A Emenda Constitucional nº 39 reconheceu a greve policial como uma questão trabalhista e baseados neste argumento os manifestantes foram anistiados. O projeto beneficiou 182 praças, 27 sargentos, 54 cabos e 101 soldados.
5 - CONCLUSÃO
Acreditamos que o movimento reivindicatório das praças da Polícia Militar de Minas Gerais não nasceu espontaneamente tal como vem apregoando o senso comum. Ele é resultado de um processo socialmente construído em busca de direitos e das condições objetivas pelas quais passavam soldados, cabos e sargentos. De acordo com Barros (2006, p. 64), "nada foi espontâneo; sem a insatisfação, a liderança de poucos, o interesse de muitos e o apoio de grande parte dos seus pares, - inclusive boa parte dos oficiais de baixa patente -pouco ou nada os praças teriam conseguido em termos de mobilização de pessoal".
Quanto à hierarquia e a disciplina, princípios abalados durante e após a mobilização, tudo indica que foram resignificados. Isto porque não foi um movimento que reivindicava a desmilitarização da polícia ou mesmo colocar em questão toda a gênese, maturação e desenvolvimento da instituição. No que concerne aos valores militares, as praças nada mais pediram do que o cumprimento da ética policial militar, assentadas no "respeito à dignidade da pessoa humana, a camaradagem, o espírito de cooperação" e a solidariedade dos comandantes. Como visto, os laços sociais, em conflito latente, foram quebrados pelos oficiais de alta patente quando decidiram por legislar em causa própria.
Curioso e que já nos fins da década de 1980 o coronel reformado Felisberto Egg de Resende sentenciou: "a polícia é disciplinada e sempre respeitou seus governantes, mas disciplina não casa com fome. Onde há fome não pode haver disciplina" (Estado de Minas, 04/11/1988, pág. 7).
Nesse sentido, não é por acaso que o movimento se constituiu como um fato histórico e singular na PMMG. Ele foi tão importante que não deixou de dar vida a novos movimentos por todo o país e, inegavelmente, proporcionou muitas mudanças no que hoje os administradores de polícia vem chamando de política de segurança pública.
6 - BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Juniele Rabelo de. O repertório da ação coletiva: movimento reivindicatório dos praças da Polícia Militar em Belo Horizonte no ano de 1997. In: BARROS, Lúcio Alves de (Org). Polícia em Movimento. Belo Horizonte: ASPRA/MG, 2006. pp. 115-138.
BARROS, Lúcio Alves de. Policia e Sociedade: um estudo sobre as relações, paradoxos e dilemas do cotidiano policial. 2005. 341f.. Tese de Doutoramento (Doutorado em Ciências Humanas: Sociologia e Política). Belo Horizonte, MG: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Faculdade de Filosofia, Ciência Humanas (FAFICH), Belo Horizonte, MG, 2005.
________, Lúcio Alves de (Org). Polícia em Movimento. Belo Horizonte: ASPRA/MG, 2006. 160 p.
COTTA, Francis Albert. Breve Historia da Policia Militar de Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. Crisálida. 2006.
_______, Francis Albert. Uma atípica cerimônia militar: o movimento reivindicatório das praças da Polícia Militar de Minas Gerais em junho de 1997. Trabalho final apresentado à Disciplina Teoria e Metodologia da Historia -Imaginário e simbólico na Historia: questões de teoria, metodologia e historiografia, do Curso de Mestrado em Historia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Belo Horizonte, 2000.
ESTADO DE MINAS, Belo Horizonte, 04/11/1988. p. 07.
ESTADO DE MINAS, Belo Horizonte, 20/05/1992. Caderno Cidades. p. 23.
FILOCRE, Laurentino de Andrade. Polícia Militar: Segurança ou Ameaça. Belo Horizonte, Armazém de Idéias. 2004. 360 p.
MINAS GERAIS. Constituição do Estado de Minas Gerais. Altera a redação dos Arts. 39, 61, 66, 90, 106, 110, 111, 136, 137, 142 e 143 da Constituição do Estado, acrescenta Dispositivos ao ato das Disposições Constitucionais Transitórias e dá outras providências. Belo Horizonte, 1999.
POLÍCIA MILITAR DE MINAS GERAIS. Aviso Nº. 327, de 29 de Abril de 1991. Comando Geral da Polícia Militar de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1991.
POLÍCIA MILITAR DE MINAS GERAIS. Contracheque de um terceiro sargento. Belo Horizonte, MG, junho de 1997.
POLÍCIA MILITAR DE MINAS GERAIS. Regulamento Disciplinar da Policia Militar. Polícia do Estado de Minas Gerais / Estado Maior (R = 116). Minas Gerais. Decreto n º 23.085, R(116), 10 de outubro de
Lúcio Alves de Barros*
Arlem Caetano dos Reis**
1 -DOS PRIMEIROS PASSOS
Junho de 1997, a Polícia Militar do Estado de Minas Gerais (PMMG), iniciou as comemorações de seus 222 anos. Policiais militares, em sua grande maioria praças, deram inicio a um movimento reivindicatório inédito em toda sua história.
O movimento dos policiais, notadamente dos praças, não nasceu ao acaso. Já em 1988 a imprensa destacou a seguinte matéria: "Coronel afirma que governador corrompe comandantes da PM". A notícia é de um coronel reformado denunciando a miséria na Polícia Militar. De lá para cá encontramos - em 19 de maio de 1992 - a manifestação "Panela Vazias" protagonizada por cerca de 200 esposas de policiais militares da capital que saíram da Praça Duque de Caxias, passaram pelos 16º e 01º Batalhões até chegarem ao prédio do comando. Elas bateram panelas, fizeram orações e gritaram palavras de ordem. O movimento foi pacífico e pontual, mas não deixou de marcar na memória uma antiga reivindicação dos policiais, a isonomia salarial com os funcionários dos poderes judiciário e legislativo. Em setembro de 1995; novamente um coronel publicou na imprensa um manifesto incitando as praças a tomarem uma posição diante das condições objetivas por que passava os praças. Ironicamente, ele enfatizou: "onde estão os Clubes dos Subtenentes, Sargentos, Cabos e Soldados?" (Filocre, 2004, p. 168).
As tímidas manifestações enunciadas não deixam de revelar o mal-estar existente na Polícia Militar de Minas Gerais. Provavelmente, elas já evidenciavam um amadurecimento político dos integrantes da corporação caracterizado como uma "percepção tardia" de direitos por Cotta (2006) e levada a efeito depois a partir das "performances familiares apreendidas" ao longo do tempo (Almeida, 2006).
No entanto, o que abalou "a disciplina e a hierarquia que constituem a base institucional da Polícia Milita" foi a sexta-feira do dia 13 de junho de 1997, o qual na visão das principais lideranças do movimento foi um "divisor de águas".
2 -DO DESFILE ATÍPICO
Após o conhecimento de que os delegados da Polícia Civil, através de sua entidade representativa, haviam obtido êxito em uma ação judicial que lhes reconhecia o direito à paridade de vencimentos com os Procuradores do Estado, oficiais da Polícia Militar, especificamente os coronéis, se articularam no intuito de igual vantagem fundamentados em uma prática "política" patrimonial vigente desde 1963, a qual estabelecia a equiparação de vencimentos entre os cargos da Polícia Militar e da Polícia Civil.
Em cinco de junho de 1997 o governador Eduardo Azeredo (PSDB) concedeu um reajuste de 11% aos oficiais da Polícia Militar seguindo a primeira etapa da desejada equiparação com os delegados. A decisão política do governo, o qual acreditou na "histórica docilidade, disciplina e dedicação dos policiais de baixa patente da polícia mineira" (Barros, 2006, p. 25), quebrou laços de solidariedade, reforçou uma espécie de darwinismo policial nas relações existentes entre oficiais e praças e precipitou a revolta dos praças que passaram a reclamar no interior das unidades da corporação.
No dia seguinte ao anúncio de reajuste privilegiado aos oficiais, o cabo Glendyson Hércules de Moura Costa, 31 anos, foi alvejado por cinco tiros a queima roupa, quando tentava prender criminosos que roubavam uma casa lotérica. O episódio tencionou as relações no interior dos quartéis e, cinco dias após ser baleado, o policial militar não resistiu e morreu. O sepultamento do praça contou com a mobilização de aproximadamente 300 policiais.
No 22º Batalhão da Polícia Militar (BPM) e no Batalhão de Choque colchões foram queimados nos alojamentos das praças. Acreditando na "docilidade da tropa" o comando da corporação minimizou os fatos e negou qualquer ato de rebeldia.
No dia 12 de junho de 1997, cerca de 300 praças do Batalhão de Choque recusaram as ordens para o policiamento. Neste mesmo dia ocorreram manifestações no 13º BPM, 16º BPM e 18º BPM. No dia seguinte a tropa do Batalhão de Choque ganhou as ruas de Belo Horizonte. Com um forte caráter de livre exercício da cidadania mesclado à cultura da caserna, muito bem conceituados por Cotta (2000) como "uma atípica cerimônia militar", os servidores policiais militares saíram em passeata reivindicativa no mesmo modus operandi dos trabalhadores celetistas. Durante o percurso, os PMs não interromperam o trânsito, ocuparam somente uma faixa da pista, ensaiaram palavras de ordem, orações, hino da corporação e o Hino Nacional.
A passeata chegou ao coração da capital mineira e os policiais abraçaram estrategicamente o "Pirulito" da Praça Sete. Naquele local era percebido o apoio dos policiais civis, dos policiais militares do Batalhão de Trânsito, da Cavalaria, do 01º, 16º e 18º Batalhões de Polícia. Em seguida, os policiais desfilaram em direção à Praça da Liberdade contando com muitos aplausos da população e chuva de papéis picados.
Em frente ao Palácio da Liberdade, cerca de 1500 policiais entoaram o Hino Nacional, se ajoelharam e fizeram orações em memória aos companheiros que tombaram em confrontos com criminosos e por suicídio. Além disso, deram entrevistas ás redes de TV e queimaram os contracheques dando de costas ao Palácio da Liberdade.
Longe da liderança e representação dos oficiais de alta patente, soldados, cabos e sargentos constituíram uma comissão e partiram para a negociação direta com o chefe do executivo mineiro. A comissão composta por representantes das entidades de classe e três militares do Batalhão de Choque apresentou a seguinte pauta de reivindicações: piso salarial de R$ 800,00, promoção por tempo de serviço (dez anos) e não apenas por concursos internos, revisão imediata do RDPM, do Estatuto de Pessoal da Polícia Militar, a não punição dos manifestantes e uma política habitacional que atendesse principalmente aos cabos e soldados.
Após uma hora de reunião sem acordo com o Secretário da Casa Civil, Agostinho Patrus, as lideranças reuniram os manifestantes e marcaram uma assembléia para o dia seguinte no Centro Social de Cabos e Soldados. Este dia foi sintetizado por Barros (2006, p. 24) da seguinte forma, "a força da mobilização foi maior do que se pensava, era necessário "respirar", ser "alguém", ter "dignidade" e o papel reconhecido pela instituição e pela sociedade" (grifos do autor).
3 -DOS FATORES DO MOVIMENTO
O movimento reivindicatório das praças da Polícia Militar de Minas Gerais em 1997 não pode ser explicado somente tendo por referência mecanismos econômicos. Obviamente, outros fatores levaram a efeito a mobilização das praças. Contudo, tanto Filocre (2004) como Barros (2006) e Santos (2006) chamaram atenção para a questão do reajuste diferenciado associado aos baixos salários das praças que eram obrigadas a adotarem uma segunda (às vezes uma terceira) atividade conhecida como "bico".
Tomando por base os vencimentos dos sargentos, notadamente a categoria dos terceiros sargentos (a "mola mestra" e/ou o "elo" de ligação entre as praças e a oficialidade, "pardais", tal como são identificados no interior da caserna), no período mencionado, observa-se que o soldo de R$ 171,74 (cento e setenta e um reais e setenta e quatro centavos) sequer se aproxima da metade do declarado como direito pelo Comandante do Policiamento da Capital (CPC), coronel José Guilherme do Couto, o qual em entrevista a um periódico da cidade, tentava colocar "panos quentes" no movimento:
Apoiamos qualquer luta pelos direitos dos policiais, desde que ocorra dentro dos regulamentos e seja mantida a disciplina. Também acho que um soldado deveria ganhar R$ 1.000,00, mas o Estado não tem como pagar. (Couto, apud Santos, 2006, p. 23).
Analisando criteriosamente os vencimentos na polícia, Filocre (2004, p. 181) sentencia: "quaisquer que sejam os índices provam a inexistência de uma política salarial razoável e autorizam a conclusão de que, mesmo nos valores mais altos, nunca foram suficientes e, nos mais baixos, se chegou ao estado de penúria em afronta à condição do policial militar".
O Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de Minas Gerais (RDPM) - o famigerado "Amarelinho" - no período anterior ao movimento, ferramenta importante para o que chamamos de darwinismo policial, no qual os atores sociais que açambarcaram maiores recursos simbólicos e políticos exercem poder e sadismo sobre os que estão abaixo na hierarquia, tinha a finalidade de levar a efeito as punições disciplinares e controle do comportamento das praças. Constituía-se ele em um eficaz mecanismo de controle, docilidade, perversão e conservadorismo das condições objetivas vigentes. Mais que isso, o "Amarelinho", além de inconstitucional, era conservador, arcaico, arbitrário e invadia, inclusive, a esfera da privacidade do policial militar.
Art. 1º - O Regulamento Disciplinar da Policia Militar (RDPM) tem por finalidade definir, especificar e classificar as transgressões disciplinares e estabelecer normas relativas a punições disciplinares, comportamento policial-militar das praças, recursos, recompensas e Conselho de Disciplina (POLÍCIA MILITAR DE MINAS GERAIS. RDPM, R-116, 1985 - grifo nosso).
A inconstitucionalidade de um item do temido Art.13 do regulamento mostra o paradoxo com o advento da Constituição de 1988. A mudança só veio três anos após sua promulgação em um aviso assinado pelo então comandante Geral Euro Magalhães: "o artigo 13, nº. 132, do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar, por ser incompatível com o estabelecido no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, ficou ipso facto derrogado, não podendo mais ser aplicado".
Outro ponto bastante sensível na organização e afeta diretamente os interesses dos policiais militares é o caso das promoções. Ser promovido constitui-se em melhoria salarial e elevação de status com as conseqüentes deferências. Tanto no campo da atuação dos oficias como na dos praças, os interesses são latentes e, inegavelmente, produzem tensões e conflitos. Barros (2005) detectou tais relações, cujo funcionamento se alicerça no "jogo das promoções", no qual interesses divergentes colocam em conflito atores que operam tanto nas atividades fim como nas ações cotidianas no interior da corporação. Nesse contexto, não é ao acaso que, na subcultura organizacional, "discutir promoções é vivenciar momentos emocionados de debates, entrega de "segredos", evidências de relações patrimoniais, de injustiça, incerteza, traição e medo" (Barros, 2005, p. 106). O autor conclui que esse jogo interno traz conseqüências perversas à implementação e gerenciamento de políticas públicas de segurança: "(...) os conflitos internos e políticos informalmente organizados mostram a dificuldade em gerenciar ou mesmo criar e levar a cabo projetos no campo da segurança pública" (Barros, 2005, p. 125).
Além dos três pontos analisados, considerados mais importantes, outros fatores certamente interferiram no cotidiano dos servidores militares de Minas Gerais no final dos anos 90. Dentre eles, é possível identificar a falta de armamento, equipamentos de proteção, viaturas para o trabalho cotidiano, o grande número de casos de policiais militares endividados, alcoólatras e o bom número de suicídios.
4 - A LUTA CONTINUA ...
Após rasgar simbolicamente o Regulamento Disciplinar da PM, soldados, cabos e sargentos realizaram no dia 14 de junho uma assembléia no Clube de Cabos e Soldados onde decidiram voltar às atividades, concedendo um prazo de dez dias para o governo acolher ou debater a pauta das reivindicações. Uma próxima assembléia foi agendada para o dia 24 de junho no mesmo local.
Ainda no dia 14 de junho vários policiais militares se mobilizaram nas cidades de Governador Valadares, Montes Claros, Uberlândia, Ipatinga, Juiz de Fora, Barbacena e outras. No dia 16 de junho, o movimento reivindicatório conquistou sua primeira vitória. O Comando Geral entregou às lideranças o anteprojeto de revisão do Estatuto e do Regulamento Disciplinar.
O governador Eduardo Azeredo, o qual havia viajado à Europa dois dias após a primeira manifestação, retornou no dia 21 de junho e anunciou um abono de R$ 102,00 para as praças, que não aceitaram a proposta. Neste mesmo dia o governador substituiu os integrantes do Estado Maior da Polícia. O coronel Osvaldo Miranda da Silva assumiu o novo Comando do Estado Maior no lugar do coronel Hebert Magalhães. O comandante do Policiamento da Capital, José Guilherme Couto foi substituído pelo coronel Edgar Eleutério Cardoso, ambos considerados como "linha dura" na instituição mais que bi-secular.
No dia 23 de junho, foi realizada uma nova assembléia no Clube de Cabos e Soldados no intuito de renovar as decisões para a reunião do dia seguinte, haja vista que muitos praças que buscavam se mobilizar estavam sendo presos e punidos. Os dez dias que antecederam a nova assembléia foram marcados por inúmeras tentativas de esvaziamento, desmobilização, assédio moral, ameaças, prisões e a constituição da tropa denominada Força Legalista (Forleg) para operar ao lado do Comando Geral.
Reunidos no Clube de Cabos e Soldados, no dia já mencionado, cerca de 3000 policias militares decidiram novamente "desfilar" pelas ruas da capital em defesa de seus direitos. No cruzamento das Avenidas Barbacena e Amazonas, no bairro Santo Agostinho, a manifestação foi reforçada pela mobilização dos policiais civis e unidos partiram para a Praça Sete, na qual novamente os policiais abraçaram ao obelisco. Sob aplausos da população, já contando com cerca de 4000 manifestantes, os policiais seguiram para a Praça da Liberdade, sede do Governo do Estado e do Comando Geral da Polícia, na qual foram recebidos por 600 policiais entre cadetes e policiais do interior, oriundos e/ou componentes da Força Legalista.
Os fatos que se seguiram foram trágicos. Alguns manifestantes "atropelaram" parte dos servidores da Forleg que faziam o cordão de isolamento e tentaram invadir o prédio do Comando Geral. Muitos tiros foram disparados. O cabo Valério dos Santos de Oliveira, 36 anos, que tentava conter os ânimos dos amigos foi, infelizmente, atingido por um tiro na cabeça. Socorrido ao Hospital de Pronto Socorro, João XXIII, em estado gravíssimo, o policial militar não resistiu e morreu no dia 29 de junho de 1997.
Duas hipóteses foram apresentadas sobre quem teria atingido o Cabo Valério. O comando da polícia apresentou o Soldado PM Wedson Campos Gomes, como o autor do disparo que atingiu o militar fundamentado em imagens divulgadas por emissoras de TV. Já as lideranças do movimento, e uma praça do 18º BPM que testemunhou o fato, acusaram como autor do disparo o novo Comandante do Policiamento da Capital (CPC), coronel Eleutério Cardoso. "Eu vi o cabo Valério caindo baleado e o coronel Eleutério trocando a arma com um cadete" (Santos, 2006, p. 62).
Em meio à crise, o governador Eduardo Azeredo recorreu ao Governo Federal, que enviou as Tropas da 4ª Divisão do Exército sediadas na capital. Elas se concentraram nas imediações governamentais como o Palácio da Liberdade, dos Despachos e nas Mangabeiras (a residência oficial do governador).
No dia 26 de junho, o governo do Estado anunciou um piso salarial de R$ 615,00 para soldados e detetives em início de carreira, significando um aumento real de 48% nos salários. Às outras patentes, ficaram acordados aumentos escalonados dependendo do grau hierárquico. As praças conseguiram também a garantia de participação em comissões de revisão do Regulamento Disciplinar, no Estatuto de Pessoal da corporação e benefícios indiretos, como uma política habitacional que levasse em conta a capacidade de pagamento do servidor e maior transparência nas decisões da corporação.
Todavia, o comando da PMMG instaurou o primeiro Inquérito Policial Militar (IPM) em 27 de junho no intuito de apurar a morte do Cabo Valério. Outros dezessete inquéritos foram instaurados visando apurar a participação das praças no movimento reivindicatório. Unidos com as principais lideranças uma centena de policiais militares foi condenada com a pena administrativa capital, a exclusão disciplinar. No dia 13 de fevereiro de 1998 o soldado Wedson Campos Gomes foi considerado culpado pelo homicídio do cabo Valério e, em seguida, condenado a oito anos de prisão.
A condução dos processos do movimento foi seguida por acusações de perseguição, falta de transparência e vingança por parte dos oficiais administradores. Tais relações produziram um novo movimento, "Anistia já para os PMs".
Com a eleição de Itamar Franco em 1998 para o governado do Estado foi encaminhado à Assembléia Legislativa a Emenda à Constituição Estadual nº 39, de 24/05/1999 , a qual por meio de um mecanismo administrativo tratou de separar o Bombeiro das atividades da Polícia Militar, enquadrando na corporação dos Bombeiros Militares as praças excluídas. A Emenda Constitucional nº 39 reconheceu a greve policial como uma questão trabalhista e baseados neste argumento os manifestantes foram anistiados. O projeto beneficiou 182 praças, 27 sargentos, 54 cabos e 101 soldados.
5 - CONCLUSÃO
Acreditamos que o movimento reivindicatório das praças da Polícia Militar de Minas Gerais não nasceu espontaneamente tal como vem apregoando o senso comum. Ele é resultado de um processo socialmente construído em busca de direitos e das condições objetivas pelas quais passavam soldados, cabos e sargentos. De acordo com Barros (2006, p. 64), "nada foi espontâneo; sem a insatisfação, a liderança de poucos, o interesse de muitos e o apoio de grande parte dos seus pares, - inclusive boa parte dos oficiais de baixa patente -pouco ou nada os praças teriam conseguido em termos de mobilização de pessoal".
Quanto à hierarquia e a disciplina, princípios abalados durante e após a mobilização, tudo indica que foram resignificados. Isto porque não foi um movimento que reivindicava a desmilitarização da polícia ou mesmo colocar em questão toda a gênese, maturação e desenvolvimento da instituição. No que concerne aos valores militares, as praças nada mais pediram do que o cumprimento da ética policial militar, assentadas no "respeito à dignidade da pessoa humana, a camaradagem, o espírito de cooperação" e a solidariedade dos comandantes. Como visto, os laços sociais, em conflito latente, foram quebrados pelos oficiais de alta patente quando decidiram por legislar em causa própria.
Curioso e que já nos fins da década de 1980 o coronel reformado Felisberto Egg de Resende sentenciou: "a polícia é disciplinada e sempre respeitou seus governantes, mas disciplina não casa com fome. Onde há fome não pode haver disciplina" (Estado de Minas, 04/11/1988, pág. 7).
Nesse sentido, não é por acaso que o movimento se constituiu como um fato histórico e singular na PMMG. Ele foi tão importante que não deixou de dar vida a novos movimentos por todo o país e, inegavelmente, proporcionou muitas mudanças no que hoje os administradores de polícia vem chamando de política de segurança pública.
6 - BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Juniele Rabelo de. O repertório da ação coletiva: movimento reivindicatório dos praças da Polícia Militar em Belo Horizonte no ano de 1997. In: BARROS, Lúcio Alves de (Org). Polícia em Movimento. Belo Horizonte: ASPRA/MG, 2006. pp. 115-138.
BARROS, Lúcio Alves de. Policia e Sociedade: um estudo sobre as relações, paradoxos e dilemas do cotidiano policial. 2005. 341f.. Tese de Doutoramento (Doutorado em Ciências Humanas: Sociologia e Política). Belo Horizonte, MG: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Faculdade de Filosofia, Ciência Humanas (FAFICH), Belo Horizonte, MG, 2005.
________, Lúcio Alves de (Org). Polícia em Movimento. Belo Horizonte: ASPRA/MG, 2006. 160 p.
COTTA, Francis Albert. Breve Historia da Policia Militar de Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. Crisálida. 2006.
_______, Francis Albert. Uma atípica cerimônia militar: o movimento reivindicatório das praças da Polícia Militar de Minas Gerais em junho de 1997. Trabalho final apresentado à Disciplina Teoria e Metodologia da Historia -Imaginário e simbólico na Historia: questões de teoria, metodologia e historiografia, do Curso de Mestrado em Historia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Belo Horizonte, 2000.
ESTADO DE MINAS, Belo Horizonte, 04/11/1988. p. 07.
ESTADO DE MINAS, Belo Horizonte, 20/05/1992. Caderno Cidades. p. 23.
FILOCRE, Laurentino de Andrade. Polícia Militar: Segurança ou Ameaça. Belo Horizonte, Armazém de Idéias. 2004. 360 p.
MINAS GERAIS. Constituição do Estado de Minas Gerais. Altera a redação dos Arts. 39, 61, 66, 90, 106, 110, 111, 136, 137, 142 e 143 da Constituição do Estado, acrescenta Dispositivos ao ato das Disposições Constitucionais Transitórias e dá outras providências. Belo Horizonte, 1999.
POLÍCIA MILITAR DE MINAS GERAIS. Aviso Nº. 327, de 29 de Abril de 1991. Comando Geral da Polícia Militar de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1991.
POLÍCIA MILITAR DE MINAS GERAIS. Contracheque de um terceiro sargento. Belo Horizonte, MG, junho de 1997.
POLÍCIA MILITAR DE MINAS GERAIS. Regulamento Disciplinar da Policia Militar. Polícia do Estado de Minas Gerais / Estado Maior (R = 116). Minas Gerais. Decreto n º 23.085, R(116), 10 de outubro de
Lúcio Alves de Barros*
Arlem Caetano dos Reis**
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