"Nessa aura de insensatez, o juízo do cliente é desdenhado, a cortesia é ultrajada pela jactância reinante. A moda aniquila o senso de proporção: sapato grotesco, salto desmesurado, bolsa gigantesca esmagam a graciosa minissaia, arriscam a saúde e a marca da humanidade, o aprumo", escreve Maria Sylvia Carvalho Franco, professora titular aposentada de filosofia da USP e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em artigo publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, 14-04-2014.
Eis o artigo.
Perder as guerras do petróleo não é só perder fontes de energia; mais, é perder seus onipresentes resíduos, que se tornaram alvos de produção
Violências proliferam: nos poderes de Estado e na política, na polícia, no trânsito, no assalto a pessoas e propriedades, nos conflitos rurais; nas milícias fascistas, nas torcidas de futebol, nas sevícias domésticas, nos assassinatos intrafamiliares, nos nascituros postos no lixo, nos jovens delinquentes criminalizados por quem deveria educá-los.
Esses episódios saltam à vista, mas são fragmentos de um sistema hegemônico, onde outras práticas e áreas sociais nutrem barbárie menos visível, mas não menor.
Tais feitos abalam a crença no "homem cordial", celebrizado por Buarque de Holanda em "Raízes do Brasil", mito cujo exame excede estas notas. Basta notar que, a contrário, evocou-se a violência transferida por grupos rurais para a metrópole. Contudo, uma ética só vigora em solo fértil à sua reiteração.
Nos grupos por mim estudados ("Homens Livres na Ordem Escravocrata"), a conduta violenta emana dos nexos entrecapitalismo e escravidão, que talharam a população marginalizada, o caipira solitário, andarilho, bravio.
Hoje, as formas sociais mudaram, alterando-se a gênese e os modos da violência, mas preservando-se o seu núcleo: uma cultura autoritária e o princípio do lucro.
Desse foco irradiam tiranias. As corporações financeiras seduzem, endividam, julgam e aniquilam países, submetidos a dívidas e à gangorra acionária. Indústrias açambarcam os mercados, entre as quais avultam as petroquímicas: alimentos, bebidas, higiene, mobiliários, artefatos, vestuários, cosméticos, lentes e telas, medicamentos, embalagens, tudo é dominado pelos derivados de petróleo, componentes tóxicos que, ignorados pelos usuários, os prejudicam de imediato e atingem, como uma maldição, as gerações futuras. Hoje, perder asguerras do petróleo não é só perder fontes de energia; mais, é perder seus onipresentes resíduos, que já deixaram de ser resquícios para tornarem-se alvos de produção. Belicismo, fraudes, alianças vis, tudo vale para assegurar poder na trágica "civilização do petróleo".
Despóticos, os monopólios de transporte coletivo em simbiose com instâncias governamentais lesam o direito de ir e vir. Prepotentes, certas lojas agridem os sentidos com perfumes invasivos e músicas tonitruantes. O lobbygastronômico mundial impõe a autocracia do chefe e a tagarelice do pseudoenólogo, fixando preços fantásticos a simulacros de alimento.
Nessa aura de insensatez, o juízo do cliente é desdenhado, a cortesia é ultrajada pela jactância reinante. A moda aniquila o senso de proporção: sapato grotesco, salto desmesurado, bolsa gigantesca esmagam a graciosa minissaia, arriscam a saúde e a marca da humanidade, o aprumo. Lamentáveis, tais usos invadem as ruas. Nada é refletido, tudo é mimetizado com automatismo.
São abalados os direitos civis e o exercício da consciência: sensibilidade, inteligência, vontade são anuladas por autocracias insidiosas, cujo aliado é a sofística publicitária, chave na uniformização de ideários conservadores. O sofisma acentua a ditadura embutida nos comportamentos, obliterando a mente, invertendo valores. Nessa perda de si, as relações de trabalho são cruciais: nelas, o equívoco chega à renúncia do espaço e do tempo, subtraídos à vida privada e entregues às corporações como se fosse um ato espontâneo, benéfico para quem o faz. Debalde aservidão voluntária foi denunciada pelos séculos afora, desde os pensadores da Grécia antiga até os atuais críticos da repressão entranhada na cultura.
Apreendendo a violência ínsita na vida moderna --no fulcro do sistema, nas práticas, no ideário--, atinamos com a gênese das atuais formas de agressão, desde as tópicas --como a dos policiais que arrastaram a mulher presa até matá-la, igualando-se a ladrões que assim também levaram um menino à morte"" até as institucionais, como as prisões desumanas. Junto à força bruta, prospera a incivilidade geral.
Em aparência, os exemplos acima são de somenos importância face aos assassinatos, prisões, torturas. Contudo, essa ferocidade visível nasce de um caldo de cultura subjacente, pervasivo, que gesta, nutre e naturaliza um cotidiano perverso --gera uma ética--, matriz violenta que legitima movimentos fascistas (como as marchas da família),histerias anticomunistas, projetos, alianças e financiamentos dos golpes de Estado.
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