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O verdadeiro desafio não é inserir uma idéia nova na mente militar, mas sim expelir a idéia antiga" (Lidell Hart)
Um verdadeiro amigo desabafa-se livremente, aconselha com justiça, ajuda prontamente, aventura-se com ousadia, aceita tudo com paciência, defende com coragem e continua amigo para sempre. William Penn.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

UPPs são estado de exceção e ameaçam democracia, diz socióloga


Política de segurança pública impõe regime de exceção

A atual política de segurança pública do Rio de Janeiro é referência e serve de modelo para todo o país. Vivemos sim um estado de exceção no Rio, em São Paulo e em todos os territórios de pobreza espalhados pelo país. Essa política – promovida por todos os governos estaduais com a complacência do governo federal – é responsável pelo alto índice de assassinatos cometidos pelas polícias militares dentro e fora de seu horário de trabalho, provoca a formação de milícias, grupos de extermínio e alimenta o ciclo vicioso da violência.
Movimentos sociais, movimentos negros e grupos de defesa dos direitos humanos há anos denunciam. O trabalho da socióloga Maria Helena Moreira Alves no livro “Vivendo no Fogo Cruzado” reafirma, infelizmente, esta barbárie.
É preciso, para além de reconhecer o diagnóstico, cobrar responsabilidade dos governos – todos eles – que reproduzem essa política genocida!
Leiam a entrevista.
As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) implantadas no Rio de Janeiro são ocupações militares e significam um estado de exceção que ameaça a democracia. A avaliação é da socióloga Maria Helena Moreira Alves que está lançando no Brasil “Vivendo no Fogo Cruzado”, livro que traz um ácido relato sobre o cotidiano de violência policial nas favelas cariocas.
Doutora em ciência política pelo Massachusetts Institute of Tecnology (EUA) e professora aposentada da Universidade Estadual do Rio de janeiro, ela morou durante seis meses em três diferentes favelas entre 2007 e 2008. Ouviu moradores, lideranças, pesquisadores e políticos (como FHC, Lula e Cabral). A obra, escrita em parceria com o professor de história Philip Evanson, defende uma mudança no modelo policial.
“Imagine o Bope chegando num apartamento no Leblon, arrombando a porta e entrando com metralhadora! É inimaginável na Zona Sul, mas acontece todos o dias nas regiões que estão sob as UPPs”, diz Maria Helena, 69, à Folha.
Nesta entrevista, ela afirma estar preocupada com a expansão do modelo de exceção nas cidades da Copa. Fala de milícias, currais eleitorais e corrupção policial: teme que o Rio vire uma Colômbia. E afirma que o caso Amarildo mostra que a violência estava escondida na comunidade, que agora começa a reagir.
Folha – No seu livro a sra. fala do crescimento do número de desaparecidos no Rio. Por que o caso Amarildo galvanizou a opinião pública?

Maria Helena Moreira Alves - São cinco mil desaparecidos por ano. O caso Amarildo chama muita atenção porque a Rocinha foi uma espécie de vitrine do governo da pacificação. Colocaram a UPP, a Rocinha virou um ponto turístico. Em lugar estratégico, era o exemplo maior do sucesso da UPP. Mas a violência estava escondida. De repente, uma pessoa que não tem nada a ver é presa, levada pelos policiais da UPP. Amarildo está desaparecido há mais de um mês. Primeiro a polícia disse que família trabalhava com tráfico. Pegou muito mal isso, tentar colocar a culpa na vítima. Estavam ameaçando a família. Denunciar é um ato de extrema coragem para quem está lá dentro. A solidariedade entre todos é que os faz sobreviverem.

O caso Amarildo e os ataques ao AfroReggae colocam em xeque a política de UPPs?

Terminamos o livro quando estavam começando as UPPs. Mas já dava para ver o ia ser. O modelo da UPP não é o modelo da policia comunitária. É uma invasão militar, com cerco da comunidade e permanente ocupação do território. Com todo dia os policiais saindo com metralhadora, andando pelos becos e muito abuso de autoridade. Primeiro fazem a invasão com o Bope, esperando guerra. Em geral morre gente. Recentemente foi na Maré, quando tentaram fazer uma UPP e não conseguiram. Houve uma chacina de dez pessoas. Foi uma convulsão enorme. Eles desistiram de fazer a UPP por causa da reação popular.

A UPP não tem apoio nas comunidades?

As comunidades estão começando a perder o medo um pouco para falar a verdade. No começo, tinham muito medo. Quando estava pesquisando para o livro uma pessoa me disse: silêncio não quer dizer aprovação. Hoje há muita reação e comoção nas comunidades. Estão organizando passeatas, se juntando com o pessoal que foi para a rua, tendo apoio da classe média. [Os policiais] arrombam as casas, metem o pé na porta, forçam as mulheres a cozinhar para eles, as chamam de vagabundas. É permanente isso. As comunidades foram ocupadas por um grupo militar, o Bope, que é treinado para matar.

Onde há UPP existe um estado de exceção?

Existe um estado de exceção declarado. Isso não é interpretação, é fato. Vários direitos civis são suspensos. As pessoas são revistadas, a polícia entra e sai das casas como quer. Se suspeitam de alguém, levam embora, como foi o caso de Amarildo. Não existe direito a advogado, dizem logo que é traficante. A polícia faz coisas que jamais faria em Ipanema, Copacabana e Leblon. Imagine o Bope chegando num apartamento no Leblon, arrombando a porta e entrando com metralhadora! É inimaginável na Zona Sul, mas acontece todos o dias nas regiões que estão sob as UPPs, que estão de baixo de um cerco militar. E é grave que esse modelo esteja sendo considerado para o inteiro: a lei da Fifa vai declarar estado de exceção temporário em todas as cidades onde vai haver jogo. O estado de exceção quer dizer suspensão do direito constitucional. Isso foi o que foi feito na ditadura militar.

Mas as UPPs não trouxeram mais segurança, valorização das casas, mais consumo? Não existe algo bom nelas?

A ideia era o projeto do Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), que é excelente. Estabelecia policiais treinados para conviver com a comunidade, não seria militarizado, não teria arma letal. Sem “caveirão”, sem metralhadora e sem fuzil. Junto existiriam programas sociais, culturais e de esporte, também de treinamento e capacitação para emprego. Ficou só a parte militar, o resto foi sendo cortado. Foi criada esperança, houve apoio, mas mudou. As comunidades estão cada vez mais críticas, participando. Nas passeatas se vê faixas dizendo: “As mesmas pessoas que batem em vocês são as que matam na favela”.

As UPPs vão fracassar?

Parte da classe média e da classe alta apoia, porque a favela fica cercada pelos militares, para não ter crime. Mas isso também é falso, porque homicídio e roubo na Zona Sul aumentaram. A opinião dessas classes está muito dividida. Há os que dizem que quem está contra a UPP está a favor da criminalidade. Nada a ver. Critico a UPP porque é um modelo militar violento, em cima de gente que não pode se defender, que tira os direitos civis e constitucionais das pessoas. Sou a favor de uma polícia comunitária com respeito aos direitos civis de todas as pessoas.

Mas como fazer isso em zonas controladas pelo tráfico?

O controle do tráfico é discutível. Na entrevista que deu para o livro, o secretário José Beltrame diz que o tráfico organizado não está nas favelas. O crime organizado está fora delas. Dentro há o microtráfico. Os chefões não moram na favela. Ser contra a invasão militar não quer dizer ser a favor do tráfico. Se pode lidar com a criminalidade dentro da Constituição. Nova York fez isso. Não se pode lidar com a criminalidade reprimindo a comunidade inteira. Tem que ter inteligência, capacitar a polícia para buscar quem são os chefes, ir atrás da corrupção. A polícia é muito corrupta.

No livro está dito que a maioria dos policiais do Rio é corrupta. Pode ser?

Não tem a menor dúvida. Policiais honestos estão sendo ameaçados e dizem que têm mais medo dos colegas do que do tráfico. Porque podem ser mortos por colegas, se não entram no esquema da corrupção.

A corrupção está piorando ou melhorando na gestão Sérgio Cabral?

Está chegando a um ponto absolutamente crítico. Porque agora tem uma junção de milícia com bandido e com o controle da polícia nas áreas. O comando da venda de gás, do gatonet, das vans está sendo feito agora pelas milícias. São mais de 720 comunidades com milícia. Com as UPPs ficou muito fácil para as milícias se juntarem. Como os policiais não são honestos, eles ficam com o controle, fazem seus arranjos, um dá dinheiro para o outro. Tem um termo aqui que é “arrego, pedir arrego”. Por exemplo, não pode ter baile funk se não pagar as polícias. Quem for contra morre.

As UPPs não afetaram o tráfico?

É difícil saber. Afetou o tráfico pequeno, que está ali presente. O grandão tá fora da favela e continua funcionando igualzinho inclusive pela junção com políticos. É uma rede muito complexa. Está ficando muito parecido com a Colômbia; é esse o meu grande medo. Está afetado tudo. Veja o caso da juíza Patrícia Acioli, que teve a coragem de prender PM. Foi assassinada ao meio dia. Isso acontecia na Colômbia com frequência.

As UPPs não têm o apoio da população em geral?

A classe média e a alta aceitam e gostam [dessas medidas], mas isso pode dar apoio a uma nova ditadura. Quebra a Constituição. Estado de exceção não pode conviver com estado de direito. Ou se tem direito para toda a população, ou se começa a fazer quase como um buraco dentro da areia, onde alguns não têm direitos e são [vistos como] danos colaterais. O estado de direito democrático vai sendo minado e, no fim, não se tem mais democracia.

A democracia está em risco nesse processo?

A democracia brasileira está em alto risco. E tem coisas muito parecidas com 1964. Tem gente apoiando, achando ótimo. É aquela historia: está pegando o meu vizinho, mas não a mim, que não sou comunista nem favelado. Mas vai pegando todo mundo. Agora já estão batendo na classe média em plena Cinelândia. Enquanto era só favelado, o pessoal aplaudia: “Mata no Alemão, bate, faz o que quiser”. Ninguém queria saber. Agora já esta diferente.

Temos que formar uma sociedade baseada em leis para todos. Não dá para ter leis que funcionam para alguns e não para outros. Enquanto tivermos uma situação em que existem direitos para alguns e não para outros, não há Constituição e democracia de verdade.

No livro, a sra. diz que a favela é a senzala do século 21 e que os ricos da Zona Sul podem ser comparados a antigos senhores da casa grande. Mas isso não está mudando?

Meu irmão era o Márcio Moreira Alves (1936-2009). Minha família tinha apoiado o golpe. Quando começaram a aprender os estudantes de classe média alta, mudou. Quando pegaram o meu irmão, minha mãe virou uma das maiores combatentes contra a ditadura. Está acontecendo um pouco isso. Enquanto estavam reprimindo só a população das chamadas “classes torturáveis” para usar uma expressão de Graham Greene citada por Paulo Sérgio Pinheiro no prefácio do meu livro, ninguém falava nada. Por isso fiz a comparação com senzala e casa grande: enquanto é escravo e classe torturável, tudo bem vem trabalhar na minha casa, volta para a tua favela, eu não quero saber o que acontece lá. Quando começam a prender os filhos da classe média e alta a coisa muda. Por isso a popularidade do Cabral despencou. Mas ainda está muito dividido.

No livro a sra. trata dos tentáculos do tráfico e das milícias na política. Como está isso?

Os currais eleitorais são muito graves para a democracia. Já se infiltraram não só na Câmara de Vereadores, mas na Assembleia Legislativa, no Congresso. Eles têm uma política de eleger pessoas e também formar para o judiciário. Está ficando parecido com a Colômbia. Exemplo. Tem milícia vinculada à polícia numa comunidade fechada ocupada militarmente. Vem o programa social que requer o cadastramento das famílias. Na hora da eleição, eles batem armados na porta das pessoas e dizem: o voto é livre e secreto, mas nos gostaríamos que o nosso candidato tivesse tantos votos. Se não tiver tantos votos para milícia naquela zona eleitoral, a família esta perdida. Tem que ir embora do local ou votar como querem. É muito mais eficaz do que como faziam os coronéis.

A sra. também fala dos cemitérios clandestinos. Eles continuam existindo?

Não são tão clandestinos. As comunidades sabem onde ficam e já levaram a Anistia Internacional, a ONU. O problema é que ninguém faz nada sobre isso. São áreas onde não vigora a lei.

Na sua convivência nas favelas, o que foi mais chocante?

Ter descoberto o uso da faca corvo, que foi usada na Operação Condor. Com a faca se abre a barriga, tira as vísceras e o corpo afunda e ninguém nunca mais acha. Nem é mais preciso ter cemitério clandestino. Se joga no mar. É uma explicação para o número de desparecidos. A gente viu [a faca] nos desenhos das crianças, achamos uma e colocamos a foto no livro. Isso é gravíssimo. Estão usando a mesma maneira que Pinochet, a Argentina, o Paraguai, o Brasil usaram para fazer desaparecer os corpos nos piores períodos das ditaduras.

A sra. se sentiu ameaçada?

Eu me sinto ameaçada agora. Pensei em não fazer um lançamento público [que será em 28/8 na OAB/RJ]. Tenho uma proteção que é o fato de eu ser da classe alta. Recebi ameaças quando estava no Chile, telefonemas. Uma vez mataram duas cachorrinhas que a gente tinha e botaram um bilhete dizendo que era para eu saber que podiam chegar na minha casa. Eu estava no meio dessa história desse livro.

O que a impressionou no tempo em que passou nas favelas (ela não identifica os locais por razões de segurança)?

Positivamente, foi a solidariedade forte. É motivo para eles não querem sair das favelas. Estão lutando contra remoções. Lá têm apoio de seus vizinhos em tudo.

No livro, a sra. questiona a tese de que o Rio é uma cidade partida. Por quê?

A percepção que a cidade é partida tem uma parte de verdade: só nas periferias se faz UPP e cerco militar; não se faz na zona sul. Mas ela não é partida no sentido da dependência econômica e social. Se não houvesse gente da favela que vai trabalhar barato, a economia do Rio seria diferente. A lei das domésticas fez a classe média ficar furiosa. Ainda tem muita essa mentalidade no Rio, onde a nossa historia de escravidão é muito mais profunda. Posso falar isso porque meu tataravô, o Visconde de Rio Preto, era dono escravos. Tinha milhares deles em várias fazendas de café. Minha mãe sempre lutou contra a mentalidade escravocrata.

A sra. afirma que a política de segurança pouco mudou apesar dos diferentes governos da redemocratização. Por quê?

Porque a Constituição manteve a PM militarizada. Uma das sugestões da ONU é essa: abolir a PM e ter uma polícia mais consequente, civil. No Brasil não é tão simples fazer isso porque está tudo muito misturado com a corrupção geral. Seria um passo importante, mas não sei se é possível. Teríamos que ter políticos de muita coragem e de muita honestidade. Os governadores estão muito interessados em ter a PM, um exército, sob o controle deles. Isso é uma situação perigosa para um país democrático federativo. A Dilma poderia trazer o Pronasci de volta, que ela abandonou.





Por ELEONORA DE LUCENA – SP

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