A suposição de que existe um 'mercado puro' ignora a realidade dos cartéis e oligopólios coordenados pela voragem da dinâmica financeira mundial.
Em sua cruzada contra a corrupção, o juiz Moro anunciou que ademais do setor petrolífero, ilícitos detectados na área elétrica passarão também a ser de sua conta.
Em breve, o mesmo fio condutor poderá leva-lo a práticas e protagonismos semelhantes ramificados em um outro setor, depois em outro e outro, até roçar a área financeira.
Desse mirante privilegiado do dinheiro, poderá vislumbrar um amplo horizonte de malfeitos encadeados agora na esfera global.
Incansável, a esquadra do Paraná navegará seu fervor missioneiro por entre acordos e associações cada vez mais complexos, emaranhados e cartelizados, que poderá avocar igualmente como de sua intrínseca alçada...
Em algum momento desse périplo, o juiz Moro poderá invadir a seara da Alta Corte inglesa, onde o juiz Cooke, calçado em investigações do Serviço de Fraudes Sérias, acaba de condenar o primeiro réu do escândalo da Libor.
Tom Hayes, o sentenciado, criou um cartel para fixar a taxa de juro de referência na correção de trilhões de dólares em ativos no mundo.
Hayes manipulou dados para coloca-la a serviço dos lucros de seu banco, o UBS.
Fez isso em conluio com outros bancos e operadores em diferentes praças do mundo.
No mérito e no método, nada muito diferente do que armaram os empreiteiros da Petrobrás; ou os executivos da Siemens, Alstom e assemelhados no metrô de São Paulo; ou o que fazem, e sempre fizeram, bancos e endinheirados nativos, parte deles flagrados no escândalo do HSBC, que ungiu a plutocracia brasileira no topo do ranking mundial de lavagens e sonegação...
Colosso.
Com todo esse caminho pela frente, o meritíssimo de Curitiba corre o risco sério de repetir na esfera jurídica o mapa inútil de Borges: aquele que se auto anula ao adquirir, finalmente, a escala da realidade.
A escala do capitalismo em nosso tempo é composta da grande geografia dos carteis e oligopólios amalgamados e coordenados pela voragem da dinâmica financeira.
Hoje eles abarcam da produção de cerveja a de sucrilhos, passando pela de lâmpadas, aviões, navios, plataformas de petróleo, vagões de metrô, tarifas de bancos, spreads (especialidade do sindicato dos bancos brasileiros, a Febraban) e taxas de juros, como mostra o escândalo da vetusta praça de Londres.
Estudos do economista francês, François Morin indicam que um núcleo formado por 28 megabancos globais funciona como uma espécie de fígado do aparelho circulatória da finança no seculo XXI: todo o sistema passa por eles de alguma forma (http://www.ihu.unisinos.br/noticias/545323-o-oligopolio-bancario-age-como-uma-quadrilha-organizada-entrevista-com-francois-morin)
O cartel de bancos que manipulou a Libor durante anos, com implicações na estrutura de custos global, evidencia o quanto o mito da livre iniciativa tem de propaganda enganosa (Leia o especial de Carta Maior)
Essa constatação não deve ser confundida com um endosso à corrupção como se fosse uma fatalidade.
O que a cartografia capitalista do século XXI argui, porém, é a centralidade no método, nas referências e consequências de bisonhos exércitos de brancaleones que se propõem a faxinar o capitalismo, como se o desafio estrutural do desenvolvimento no século XXI fosse um caso de polícia.
Não é.
Há mais coisas entre o céu e a terra do que a vã filosofia da república de Curitiba consegue enxergar.
No rastro dos depuradores do capitalismo, alguns dotados de indisfarçável escovão ideológico, pavimenta-se frequentemente o oposto: o fortalecimento de lógicas, estruturas e interesses que convalidam justamente o que se afirma combater.
Tudo bem se isso fosse um problema de juízes megalomaníacos e de promotores que se consideram nomeados por Deus.
Porém é mais que uma ópera bufa de salvadores da pátria.
É uma tragédia que a encruzilhada do desenvolvimento brasileiro nesse momento seja escrutinada por critérios tão bisonhos, incensados por uma mídia mediocridade ímpar, empenhada acima de tudo em agilizar o abate do ‘Cecil’ que desde 2002 estorva as suas preferências eletivas na savana local.
A suposição de que existe um mercado puro --como o Deus com quem o procurador Dallagnol se comunica-- enfrenta colisões apreciáveis com a realidade do capitalismo em nosso tempo.
Não é só a Libor ou a Petrobras.
Vivemos um tempo em que a supremacia dos oligopólios e a deriva da sociedade e do seu desenvolvimento não são realidades antagônicas.
Antes, exprimem uma racionalidade do capitalismo impossível de se combater sem uma intervenção política que credencie o Estado para isso.
Eis o drama da Lava Jato.
Seu afã conduz justamente ao avesso do que pregam, executam e propagandeiam os interesses embarcados na sulforosa cruzada de Moro e seus procuradores.
No capitalismo do nosso tempo, o cartel planeja a sociedade.
Quem não se lembra do exemplo pedagógico flagrado no esquecido escândalo do metrô de SP?
Protagonista da engrenagem que há 20 anos ‘adequa’ as licitações do sistema, a multinacional francesa Alstom, avocou-se em 2005 a prerrogativa de alterar o traçado de uma linha e incluir uma nova estação no trajeto.
A notícia, embora tenha merecido editorial da Folha, não motivou o colunismo da indignação seletiva a denunciar o desembaraço nas relações entre cartel e governo tucano.
Aos poucos o assunto morreu, com investigações circunscritas a escalões inferiores.
Mas o caso deixa marcadores sugestivos.
Eles evidenciam o quão profunda pode ser a ingerência do interesse privado na esfera pública, quando esta jaz imobilizada por um torniquete feito de Estado fraco, incapacidade de planejamento público e crispação da ganância privada expressa na fusão entre política e mercado.
Ademais de alterar trajetos e estações, a múlti francesa, em conluio com outros fornecedores, reduziu o mobiliário do conjunto, sem desconto correspondente no preço do contrato, o que sugere um saldo capaz de lubrificar o bom entendimento entre bolsos corporativos, partidários e individuais.
Lembra a dinâmica investigada na Lava Jato?
Estamos diante de algo maior, portanto.
Maior que a particularidade da corrupção real e intrínseca às relações entre metrô de São Paulo, Alstons & Siemens, ou da Petrobras, Odebrechts & Camargos e casos equivalentes urbi et orbi.
Aos ingênuos e espertos, que embarcam o ‘gigantismo estatal’ na lista dos demônios a serem calcinados na fornalha de Curitiba, cabe esclarecer: a tragédia nos coloca diante de um ‘intervencionismo' às avessas.
Qual?
Aquele em que o oligopólio subordina a sociedade a seus interesses, possibilidade magnificada a partir do tsunami neoliberal dos anos 70/80.
Foi esse o divisor que restringiu as ferramentas e a capacidade de planejamento do Estado, e de tal modo, que afogou a agenda do desenvolvimento deixando margem mínima à implementação do que se pactua nas urnas, sobretudo quando as promessas dos partidos progressistas a seus eleitores.
A correia local dessa engrenagem é a mesma que agora pega carona na Lava Jato para retornar ao poder e terminar o serviço intensificado a partir de 1995, com a chegada de FHC ao Planalto.
A saber: reverter direitos sociais e trabalhistas; comprimir ganhos reais de salário, esfacelar o pleno emprego, implodir o poder de barganha sindical e, o mais importante de tudo, retomar as grandes privatizações do patrimônio público brasileiro.
Que ninguém se iluda, ainda restam alvos suculentos que justificam a ofensiva em curso da ganância escudada na ideologia privatista.
Entre eles, o Banco do Brasil, o BNDES, a Caixa Federal, a Previdência Social, o SUS e a joia da coroa deste e de todos os tempos: o pre-sal, cuja mastigação vem sendo amaciada por Serra, novo postulante ao comando desse ciclo de predações.
Aquilo que já foi feito e está presente no DNA da corrupção que agora se combate, pode ganhar assim potencia máxima ao final desse processo, se consumado o assalto conservador.
Um Estado ainda mais fraco, diante de um mercado desregulado ainda mais forte, com governantes adicionalmente reféns de seus interesses, fará com que cada cabeça cortada hoje pelas mãos justiceiras de Moro se reproduza amanhã em dobro, como a serpente Hidra nos doze trabalhos de Hércules.
Não, não é uma jabuticaba brasileira.
Trata-se de um roteiro constitutivo do capitalismo atual, existindo inclusive uma régua técnica para medir esse paradoxo acentuado pela hegemonia neoliberal.
A ‘razão de concentração de mercados’, esse o nome, indica o quanto um setor da economia é dominado pelos seus quatro maiores atores corporativos -cartéis virtuais ou potenciais.
Hoje essa dinâmica concentradora se alastra por quase todas as áreas econômicas e em todo o globo.
Razões sistêmicas, associadas às derrotas e recuos da esquerda mundial, reforçaram esse movimento de expansão e concentração do capital em nosso tempo, coagulado em uma dominância financeira cada vez mais autônoma, densa e abrangente.
A mutação do capital em grandes massas de liquidez, ademais de configurar uma etapa superior de dominação sobre a economia e a sociedade (exacerbada pela livre mobilidade dos fluxos especulativos) atende também a uma necessidade estrutural da economia.
A formação de grandes fundos é um requisito indispensável à escala dos financiamentos requeridos pelo agigantamento dos projetos de infraestrutura, dos planos de universalização de serviços e, cada vez mais, das exigências de enfrentamento dos desequilíbrios climáticos (gigantescos planos de reciclagem energética, prevenção de desastres climáticos etc).
Essa agregação de grandes massas de capitais teria que ser feita por alguém.
Que ela ocorra por meio de cartéis dilapidadores ou se dê pela subordinação ao planejamento democrático do Estado --através de bancos de desenvolvimento como o BNDES e o dos Brics-- eis a disjuntiva crucial da luta pelo desenvolvimento em nosso tempo.
A crise de 2008 mostrou para onde vai a coisa quando os mercados ficam livres –‘autorregulados’-- para manipular a variável financeira, a serviço de estripulias especulativas, dissociadas de parâmetros estratégicos, produtivos e sociais.
As experiências sucessivas de enfrentamento das grandes crises capitalistas, desde 1929, evidenciam, em contrapartida, a necessidade incontornável de um poder de coordenação, capaz de alocar esses recursos de forma a coloca-los efetivamente a serviço da sociedade.
Todo o desafio brasileiro hoje gira em torno desse nó górdio: como e quem vai organizar o passo seguinte do desenvolvimento do país?
O escândalo da Laja Jato reflete –além da subjacente deformação irradiada pelo financiamento eleitoral— a carência de um pacto democrático para a coordenação das forças de mercado.
Na sua ausência criou-se o limbo.
Nele floresceu a endogamia dos interesses rapinosos de carteis, burocratas e políticos.
A punição exemplar é uma parte do antídoto.
Mas a questão do desenvolvimento subjacente à Lava Jato, definitivamente, não é um caso de polícia.
A mitologia da faxina alardeia que a purga atual fará emergir um capitalismo saneado, capaz de equacionar as tarefas e desafios brasileiros no século XXI.
Essa subestimação da capacidade regeneradora da Hidra reflete a crença neoliberal na existência de um ponto de equilíbrio intrínseco aos mercados, que dispensaria o poder de indução, coordenação e harmonização do Estado na arquitetura do desenvolvimento.
A concentração capitalista em todo o globo reduz a uma miragem essa mística a partir do qual a república de Curitiba se avoca em parteira de um novo Brasil.
O país real continua à espera de uma repactuação política que devolva ao Estado, à justiça e aos mercados o papel de ferramentas da sociedade a quem cabe o comando sobre o seu destino e o de seu desenvolvimento.
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