Folha de São Paulo - UOL
Dr. Dáuzio Varella
Quem usa trafica, mesmo que não se considere traficante. O usuário que nunca comprou ou cedeu droga ilícita para um amigo, que atire a primeira pedra.
Nesta coluna, sempre defendi a definição de critérios objetivos que permitam separar usuários de traficantes profissionais. Sem essa distinção, a decisão de prender ou soltar fica a critério do policial que faz a apreensão na rua, ocorrência sujeita a arbitrariedades, preconceitos sociorraciais e corrupção.
Promulgada em 2006, a lei que permitiria distinguir usuários daqueles que os exploram é vaga e imprecisa. Como consequência, pune com rigor os mais pobres, os negros e as mulheres, como demonstra a socióloga Juliana Carlos numa pesquisa recém-publicada pelo International Drug Policy Consortium, com sede em Londres.
A partir de um levantamento do Instituto Sou da Paz, a socióloga coletou os dados de 1.040 pessoas (88% homens) presas em flagrante por tráfico no Estado de São Paulo, num período de três meses (1 de abril a 30 junho de 2011).
Eram réus primários 52% dos homens e 62% das mulheres. O número de prisões efetuadas dentro de casa, sem ordem judicial, foi duas vezes maior no caso das mulheres.
As quantidades de maconha apreendidas variaram de 0,1 g a 242 kg; as de cocaína ficaram entre 0,2 g e 49,8 kg; e as de crack entre 0,1 g e 65,9 kg.
Os motivos para dar voz de prisão a pessoas flagradas com menos de um grama de maconha ou crack são desconhecidos. Na maioria das vezes, as únicas testemunhas da abordagem foram os próprios policiais; civis testemunharam apenas 22,5% dos casos.
Na cena do flagrante, o poder do policial é absoluto: se considerar que a quantidade apreendida é para uso pessoal, o suspeito será liberado sem formalidades; caso contrário, será preso, processado e condenado a penas que podem ir de 5 a 15 anos, de acordo com o Código Penal Brasileiro.
Outros países aplicam critérios mais objetivos, estabelecidos com base na quantidade apreendida. É permitida a posse de até 25 g de maconha em Portugal, 15 g na Austrália, 28 g nos Estados Unidos, 10 g no Paraguai, 5g no México, 200 g na Espanha. Em relação à cocaína, Portugal, Índia e Paraguai, permitem até 2 g; Holanda e Rússia até 0,5 g, Espanha até 7,5 g.
Se adotássemos as leis da Holanda, Bélgica, México ou Rússia, 9% das 1.040 pessoas presas na amostra estudada por Juliana Carlos não teriam ido para a cadeia. Em caso da adoção dos números australianos, permaneceriam em liberdade 41%; se fossem as leis espanholas, 69%.
Em 2011, ano em que a pesquisa foi realizada, a população carcerária do Estado de São Paulo era de 180 mil pessoas, das quais 52 mil cumpriam pena por tráfico.
Usando as estimativas mais conservadoras, se os dados obtidos no inquérito publicado valessem para a população inteira, teríamos deixado de aprisionar 9% (4.700 pessoas) dos que foram presos por porte de maconha e 22% (11.500) daqueles detidos com cocaína.
A autora conclui: "O ideal seria que a distinção entre usuários e traficantes fosse feita caso a caso, levando em conta todas as especificidades e circunstâncias. Entretanto, como esta publicação deixa claro, a aplicação apenas de critérios subjetivos num país marcado por desigualdades sociais e econômicas tão profundas, não resultou em aplicação justa e adequada da lei, conduziu à imposição de sentenças desproporcionais e ao aumento do número de prisões por pequenas contravenções".
Esse estudo é publicado em momento oportuno. O STF está prestes a julgar o recurso que propõe considerar inconstitucional o artigo que criminaliza o porte de drogas para uso pessoal.
Um levantamento realizado em 2012, entre brasileiros com mais de 18 anos, mostrou que 2,5% haviam fumado maconha nos últimos 12 meses, 1,7% consumido cocaína e 0,7% fumado crack, no mesmo período. Entre 2005 a 2012, o número de prisioneiros cumprindo sentenças por tráfico aumentou 320%.
Já está mais do que na hora de pensar o que a sociedade ganha ao trancafiar mulheres e homens surpreendidos com pequenas quantidades de droga.
Quanto custa manter tanta gente enjaulada? Quais as consequências de expor pequenos contraventores ao contato com facções criminosas organizadas?
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