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O verdadeiro desafio não é inserir uma idéia nova na mente militar, mas sim expelir a idéia antiga" (Lidell Hart)
Um verdadeiro amigo desabafa-se livremente, aconselha com justiça, ajuda prontamente, aventura-se com ousadia, aceita tudo com paciência, defende com coragem e continua amigo para sempre. William Penn.

quarta-feira, 2 de março de 2011

HOMICÍDIOS: O QUE A POLÍCIA PODE FAZER?

* Por José Vicente da Silva Filho 

A culpa do grande número de homicídios é dos próprios mortos. Esta parece ser a conclusão de nossas autoridades ao tratar os homicídios como uma rotina estatística vinculada a problemas de pobreza, conflitos por motivos banais, tráfico de entorpecentes ou a disputas entre grupos rivais.
Reduzir substancialmente os homicídios deve ser a prioridade número um da polícia – e dos governos – nos locais onde esse problema é grave. Esse é um dos mais agudos problemas da sociedade e é, portanto, uma das mais sérias responsabilidades de qualquer governo e de sua polícia. Qualquer localidade que registre 3 homicídios ao ano por 10 mil habitantes estará entrando em fase grave de violência, acima de 5 já está em situação gravíssima (como é o caso das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e parte do entorno de Brasília) e acima de 7 está em fase crítica de perda de controle (caso de uma dezena de municípios do Estado de São Paulo e das regiões metropolitanas de Vitória e Recife). Não se pode mais retardar iniciativas de redução desse sofrimento social, porque é problema que tem causas e circunstâncias que favorecem ou dificultam sua ocorrência e, portanto, as soluções podem ser encontradas.
A polícia tem um papel significativo na prevenção criminal, ainda que autoridades prefiram debitar quase toda responsabilidade a outras intervenções sociais, sob o argumento derrotista de que a polícia não controla as causas do crime e, consequentemente, pouco pode fazer. Polícia realmente não controla as causas dos crimes. Ela existe justamente porque outros fatores psicológicos, morais e sociais podem falhar ao lidar com as causas. Não se pode ficar esperando a reversão da atual iniquidade social ou os incertos resultados de outras medidas governamentais e sociais. Não há outra alternativa senão exigir da polícia rigoroso e urgente ajustamento para atender as demandas de prevenção da violência, principalmente a letal, com a máxima eficácia possível, numa velocidade que só ela pode oferecer.
Bases de um programa de redução de homicídios
A polícia tem insistido em erros que reduzem sua capacidade de prevenir e reduzir os homicídios: trata esse crime como qualquer outro, sem dar o realce que o problema merece; investe menos recursos humanos do que poderia nas áreas críticas; raramente coloca os melhores policiais nas áreas mais problemáticas, privilegiando burocracias e serviços especializados; não prepara quadros competentes de investigação; não planeja em detalhe suas ações, atribuindo responsabilidades e acompanhando rigidamente seu desempenho; sonega a abundante motivação que deveriam ter os policiais que atuam nas periferias.
A polícia precisa acreditar que deve e pode reduzir e prevenir homicídios. Quando o local onde atua excede os limites da normalidade, em termos de violência, ela também deve sair da normalidade de sua rotina.
Não pretendemos elaborar uma cartilha de prescrições mas expor um conjunto de sugestões para estimular reflexões que permitam às polícias elaborar soluções de acordo com suas realidades locais e suas possibilidades de recursos humanos, materiais, tecnológicos e gerenciais. Eis aqui os fundamentos do programa:
1. Programa específico para os homicídios
A adoção de um programa específico pela cúpula da polícia é necessária para dar foco ao problema, destacá-lo dentre outras ações de menor prioridade, direcionar recursos e operações e avaliar seu desempenho.
Este programa deve estabelecer objetivos claros, sintetizar o diagnóstico crítico do problema, definir áreas prioritárias e a distribuição dos recursos necessários, estabelecer as formas de atuação conjugada das polícias civil e militar e os peritos criminais, definir as diretrizes operacionais que orientem as decisões locais, prever os apoios das unidades especializadas, estabelecer normas e orientações para a interação com as comunidades e definir parâmetros de avaliação de desempenho.
Este programa, deve ser vigorosamente implantado através de mudanças marcantes (como um grande e imediato deslocamento de recursos humanos para as áreas críticas), rejeitar claramente resistências e mau desempenho e deve ser acompanhado por um grupo de coordenação, especialmente designado para esse fim, no gabinete do Secretário da Segurança. Seria importante a definição da filosofia desse programa através de duas idéias-força: 1) "o homicídio, qualquer um, é o fato mais importante para a polícia" e 2) "o maior desafio a ser vencido pela polícia hoje é a redução dos homicídios".
2. Definir prioridades e recursos
A análise da distribuição dos homicídios deve ser feita para a área de cada distrito policial. Levantamento dos homicídios e do movimento policial em geral também deve ser feito por área de seccional de polícia (que abrange um conjunto de distritos). Verificar os recursos existentes e necessários de investigação (incluindo viaturas descaracterizadas) e de policiamento ostensivo. Alocar os recursos necessários para o policiamento ostensivo e para a investigação imediata dos homicídios ocorridos, pelos policiais civis dos distritos policiais. Os distritos da Capital têm uma média de um homicídio por semana, o que deve determinar a constituição de uma equipe de investigação compatível para esclarecer e prender os autores. Incidências mais elevadas devem resultar em equipes proporcionais, como é o caso do 100º DP onde a média é de 3,6 homicídios por semana. As equipes dos distritos de maior movimento devem receber reforço compatível para não prejudicar a investigação de homicídios, como é o caso do 37º DP, onde ocorrem 2,9 casos em média por semana, além de um elevado movimento de outras ocorrências criminais (em torno de 90 casos por semana). As cidades de grande incidência de homicídios devem também receber recursos, principalmente de investigação, compatíveis. Nessas cidades, delegados com funções de menor prioridade, como proteção à mulher ou à criança, poderiam ser treinados pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) para o exercício cumulativo de coordenação das investigações de homicídio.
3. Definir responsabilidades
Atualmente na Grande São Paulo, os distritos policiais cuidam dos homicídios de autoria conhecida e passam os demais casos para o Departamento de Homicídios que está sobrecarregado de investigações (algumas equipes estão cuidando de 60 a 80 casos). Existem alguns equívocos nesses procedimentos que devem ser reparados para aumentar a taxa de esclarecimentos e prisões e reduzir a incidência dos homicídios. Os distritos devem ter pequenas unidades de investigação de homicídios, mesmo os de autoria desconhecida. Em cada equipe de plantão deve haver pelo menos um investigador treinado pelo DHPP para comparecer imediatamente ao local de crime e fazer o levantamento técnico básico, além de coletar dados de testemunhas e suas informações essenciais; esse investigador deve portar também planilha padrão, tipo escolha forçada, para levantar características dos suspeitos, veículos, armas e modus operandi da ação, sob orientação do delegado de serviço. Nos locais de encontro de cadáver deve haver imediato deslocamento de um sargento supevisor do policiamento ostensivo local, treinado em preservação de local de crime e coleta de indícios de autoria para cooperar com a equipe de investigação. Nas seccionais de maior concentração de distritos com alta incidência de homicídios deve haver uma unidade especializada em investigação desses crimes para apoiar a investigação dos distritos, cuidar dos casos de maior gravidade (principalmente "chacinas" e matadores contumazes) e dos autores identificados que atuam em vários distritos da área, além de contar com recursos básicos de perícia técnica. Ao DHPP deve caber: o treinamento dos policiais encarregados de investigação de homicídios nas unidades territoriais, assistência técnica e acompanhamento das investigações em andamento, investigação dos casos insolúveis das unidades territoriais, mesmo antigos mas que ainda ofereçam indícios mínimos, e dos autores identificados mas de difícil localização. A descentralização da investigação de homicídios é necessária porque os autores dos homicídios costumam ter vinculação com a área e com outros crimes da região.
4. Apreensão de armas de fogo
Cerca de 90% dos homicídios são cometidos com o uso de armas de fogo, a maioria em situação irregular. A polícia deve se preocupar mais com o portador do que com a arma ilegal que esteja portando, principalmente se há suspeita de que a esteja usando para o cometimento de crimes. Não se trata de meramente desarmar as pessoas, até porque a reposição das armas, principalmente pelos criminosos, é relativamente fácil.
O papel da PM
O policiamento ostensivo, nas áreas de altos índices de crimes violentos, principalmente homicídios, deve ser proporcionalmente intenso. A revista de veículos e das pessoas, principalmente junto aos bares, pontos de encontros de delinqüentes, proximidades de pontos suspeitos de venda de entorpecentes, deve ser constante. Bloqueios nos principais pontos de acesso das áreas violentas devem ser permanentes, apenas mudando locais e horários. Os portadores de armas ilegais devem ser vistos como agressores em potencial e suspeitos de cometimento de outros crimes e dessa forma conduzidos aos distritos para averiguação.
O papel da Polícia Civil
Como organização especializada em investigação, a Polícia Civil tem funções importantes nas etapas preventivas da redução de homicídios, como buscar, sem trégua, a prisão dos principais matadores e rastrear homicidas em potencial, incluindo a vigilância de comprovados agressores que estejam em regime de prisão aberta ou liberdade condicional e que residam ou circulem pela área. Mas especificamente na redução das armas sua contribuição pode ser decisiva:
* Deve controlar um cadastro próprio sobre armas apreendidas, desde sua origem, seu destino e sua localização atual, portador e provável vendedor; inquérito ou processo em que esteja indiciado o portador por qualquer delito. O desaparecimento de armas em distritos deve ser rigorosamente investigado pela corregedoria (só a PM registra mais de 40 casos por ano);
* Nos casos mais suspeitos de envolvimento com crimes as armas devem passar por exame balístico, cujo resultado deve ser confrontado com o arquivo de resultados de exames resultantes de locais de crime. Equipar a polícia técnica para esse fim será vital;
* Em caso de apreensão de armas o portador deve ser verificado no cadastro criminal, fotografado e interrogado de acordo com um roteiro básico que permita levantar indícios de cometimento de crime, mas principalmente de quem e onde obteve a arma e quem está usando armas para cometer crimes. Pode-se até usar o expediente da polícia de Nova York, onde, para toda pessoa que chega ao plantão do distrito, não importa o tipo de crime em que possa estar envolvida, é perguntado: quem está vendendo ou traficando arma na cidade? (Ver artigo de Louis Anemone ao final desta edição.)
* Em todos os casos em que houver evidências sobre vendedores e contrabandistas de armas deve haver investigação em profundidade para sua detenção e buscar apoio da Polícia Federal;
* A atuação da investigação sigilosa também é muito importante para apreensão de armas e a prisão de quem as porta, através de ações de surpresa nos pontos suspeitos.
Os policiais que atuam de forma intensa na busca de armas e suspeitos estão entre os mais expostos ao perigo. Eles devem ser treinados cuidadosamente sobre técnicas seguras de abordagem e de reação, e organização de bloqueios e operações. Deverão ser equipados com coletes, armamento adequado e rádios portáteis, além de alertar sua supervisão e o centro de operações sobre suas atividades em áreas de maior risco.
5. Interação com a comunidade
A polícia deve buscar o apoio da comunidade, principalmente porque é a mais importante fonte de informação sobre crimes que foram ou estão para ser cometidos, criminosos, pontos de reunião de delinqüentes e de tráfico de entorpecentes, vendedores de armas ilegais etc. Esse apoio vai depender de se conquistar a confiança da comunidade servida pela polícia local, pela eficiência na prisão dos bandidos que ameaçam a área, do tratamento respeitoso aos moradores, das facilidades para a entrega de denúncias anônimas e das possibilidades de oferecer proteção a testemunhas.
6. Providências adicionais
* Dada a excepcionalidade do programa, deverão ser disponibilizados efetivos adicionais através de drástica redução dos efetivos de unidades burocráticas e especializadas, além de recolhimento dos policiais formados nos últimos três anos que não estejam nas atividades operacionais, principalmente nas unidades territoriais. Unidades especializadas da PM (principalmente de choque) poderiam colocar mais da metade de seus efetivos à disposição dos comandos das áreas criticas. Unidades especializadas de ronda da Polícia Civil, como GARRA e GOE, poderiam ceder seus recursos para as equipes de investigação das seccionais prioritárias em problemas de homicídios. Essa situação seria oportuna para o Governo do Estado solicitar a cooperação de órgãos que contam com policiais (Tribunais, Assembléia, Câmara Municipal, etc) para que participem do esforço, liberando 30 a 50% dos policiais, de preferência os mais jovens;
* Deve ser desenvolvida a implantação de bancos de dados policiais informatizados em todos os distritos, bem como o treinamento dos policiais em análise dos dados para ajuste de suas atividades de policiamento e de investigação. Os bancos de dados devem ser aperfeiçoados para incluir conjunto de itens de identificação de suspeitos e de modus operandi.
* O Departamento de Narcóticos deve instalar unidades para operar junto das delegacias seccionais em que haja maior evidência de ligações do tráfico com os homicídios.
* A perícia criminal deve se equipar para prestar a devida e oportuna assistência em todos os casos de homicídios, além de ajudar no treinamento dos policiais quanto aos cuidados que devem ter na preservação e recolhimento de evidências criminais que possam lhes competir. Também não se deve retardar o desenvolvimento da tecnologia de banco de dados a partir de DNA, em convênio com universidades e fundos de amparo à pesquisa, para colher poderosas provas não só de esclarecimento de autoria de crimes como também para se evitar a condenação de inocentes.
* As questões da capacitação dos chefes e da motivação dos recursos humanos devem ser tratadas com atenção, porque sem essas condições não há massa crítica suficiente para o sucesso. Designar os melhores quadros de chefes para as áreas mais difíceis, privilegiar o trabalho operacional das unidades territoriais para promoções e estabelecer gratificação operacional de risco aos policiais de rua, pode ajudar a motivação profissional hoje carente no policiamento territorial. E, por fim, o desempenho das unidades e de seus chefes deve ser avaliado no máximo a cada duas semanas, para se verificar a necessidade de apoio em recursos, análise e inteligência policial, definição de táticas operacionais, ajuste das atividades das duas polícias e até a troca de chefes. Mas o sucesso desse esforço dependerá fundamentalmente da crença das lideranças policiais de que resultados positivos podem ser alcançados apesar de todas as dificuldades. Essa crença deve ser traduzida em metas concretas, uma forma clara de compromisso profissional com a população servida pela polícia. 
 
Fonte: Braudel Papers - nº 26

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