Começo por uma pergunta: Existe algo em Direito que possa dizer-se absoluto? Dito de outro modo: Há algum princípio de justiça absoluta no Direito? É inteiramente humano que desejemos uma resposta positiva a essa questão, mas é absolutamente certo que não a encontraremos. Aliás, é precisamente a nossa miserável condição humana que jamais nos permitirá ir muito além dos nossos próprios e incontornáveis limites de Justiça e de Direito.
No discurso final de seu excepcional filme, “O Grande Ditador”, Charles Chaplin lembrava os homens de uma prosaica verdade: “Não sois máquina. Homens é que sois.” Quando nos pomos a insistir em princípios de justiça absoluta, talvez fosse o caso de acrescentar: “Não sois Deus. Homens é o que sois.” Tudo o que é humano pagará sempre o preço dessa limitação original.
Nada obstante, ultimamente corre entre estudiosos do Direito a perspectiva de um sonho impossível: o de ter alcançado, no princípio da dignidade da pessoa humana, a quadratura do círculo, o ponto arquimediano do conhecimento e da prática do Direito, pois nesse princípio, afirma-se, cessaria toda necessidade de maior fundamentação. Um princípio que, bastante em si mesmo, prescindiria de qualquer justificativa e não admitiria qualquer limitação.
Ao falar de dignidade da pessoa humana, estaríamos diante de um princípio para aquém e além do qual o Estado e a sociedade não poderiam ir. Nele se originariam todas as premissas de fundamentação jurídica e toda a razão de ser do Direito. Não é a toa que muitos afirmam que, ao contrário de todos os princípios e direitos fundamentais, que se prestam a restrições, a dignidade da pessoa humana seria princípio absoluto, livre de qualquer relativização, tangenciamento ou limitação.
Infelizmente, temo que também aqui a verdade seja algo um pouco mais complexa.
É fato que as constituições democráticas, nascidas no curso do século passado, sobretudo após a apavorante experiência do Nazi-facismo, que concebeu a terrível possibilidade normativa de seres humanos sem dignidade de existência humana, têm corretamente consagrado a dignidade humana como valor supremo e intangível. A questão aqui é saber se essa supremacia e intangibilidade é de caráter ahistórico, absoluto e metafísico, como pretendem alguns, ou de caráter jurídico e histórico, como defendem outros.
A dignidade da pessoa humana há muito é um elemento essencial daquilo que se costuma designar como “pensamento dos direitos humanos e dos direitos fundamentais”[1]. Também no Brasil, podemos afirmar o que dizem os professores Canotilho e Vital Moreira sobre a Constituição portuguesa, pois, também aqui temos que interpretar o princípio da dignidade da pessoa humana como pressuposto ou precondição do texto constitucional: (1) primeiro está a pessoa humana e depois a organização política (2)a pessoa é sujeito e não objeto, é fim e não meio de relações jurídico-sociais[2].
Seja em sua dimensão objetiva, seja como dimensão subjetiva, o princípio da dignidade da pessoa humana significa — como ideia básica — a proteção do valor pessoal intríseco de todos os seres humanos. No Direito Constitucional, visando precisar o seu conteúdo, buscou-se na conhecida fórmula kantiana, hoje repetida por quase todos os intérpretes, a ideia de que a dignidade da pessoa humana consistiria na afirmação do ser humano como fim em si mesmo, tornando proibida a sua degradação em simples objeto ou meio de concretização de qualquer outro fim.
Contudo, salta aos olhos o caráter indeterminado de uma formulação assim tão excessivamente abrangente. Precisamente por viver em sociedade, o ser humano está permanentemente sendo meio legítimo de realização dos desígnios de outras pessoas, ao mesmo tempo em que se vale das ações e das qualidades de outros seres humanos para a realização de seus próprios objetivos. Por exemplo, a sociedade não enxerga mal algum, pelo contrário, que alguém se valha dos serviços de um médico, de uma empregrada doméstica, de um polícial ou de um juiz para a realização de seus mais elevados ou mais simples desejos e necessidades. Nesses exemplos todos, não se pode negar, esses profissionais acabam sendo, pelo menos em alguma medida, meio de realização de pretensões (legítimas) e de finalidades de outras pessoas.
Se os exemplos dados não parecem transformar nenhum daqueles profissionais em meros objetos de realização de interesses alheios, não se pode, contudo, esquecer que a sociedade pode ir ao ponto de exigir, por exemplo, de um policial, ou de um bombeiro, que sacrifique a sua própria vida como meio de proteção da vida, dos bens e dos interesses de outras pessoas. Nessas condições, a vida desses profissionais é inteiramente transformada em meio de defesa de outros interesses. Haveria, então, que se precisar de forma mais convincente quando é que a utilização instrumental do ser humano poderia progredir para uma inaceitável degradação do outro ser humano em simples objeto ou meio de realização do interesse de outros seres humanos. Mas também aqui, infelizmente, os esforços hermenêuticos não parecem conduzir a resultados livres de qualquer questionamento.
Com efeito, são inúmeras as situações em que a conversão do ser humano em simples objeto do interesse de outros seres humanos não parece autorizar uma interpretação livre de qualquer discordância entre os diversos sistemas jurídicos. Fiquemos em dois casos emblemáticos: (1) a legalização da prostituição em muitos países considerados desenvolvidos e (2) a possibilidade de abate e sacrifício das vidas de passageiros e tripulação de uma aeronave sequestrada por terroristas como meio de salvaguardar a população de uma cidade intensamente povoada.
Há quase 10 anos, o celebrado jornalista Gilberto Dimenstein informava, em sua coluna, que uma série de países ricos vinha progressivamente legalizando a prostituição. Países como Nova Zelândia, Holanda e Alemanha haviam convertido, em alguma forma de legislação, a prostituição em atividade legal, com direito a pagamento de remuneração e a obrigação de recolher tributos (cito): “Quebrando tabus! Países do Primeiro Mundo estão agora adotando leis que tratam a prostituição como se fosse qualquer outro negócio. Neste mês, o governo da Bélgica apresentou um projeto de lei para legalizar os bordéis, medida que a Nova Zelândia adotou no mês passado. Há três anos, os holandeses legalizaram os bordéis, e as prostitutas passaram a ter os direitos de qualquer trabalhador: carteira assinada, plano de saúde e aposentadoria. Em contrapartida, vão descontar para a previdência e pagar imposto de renda, como todo mundo. A Alemanha adotou legislação semelhante no ano passado. Apesar de levantar discussões com a igreja e as partes mais conservadoras da sociedade, do ponto de vista pragmático, quem defende a legalização argumenta que a mais antiga das profissões é impossível de ser eliminada, e torná-la legal é uma forma de controlar doenças, combater o crime, a prostituição de menores e criar mais uma fonte de impostos. No entanto, tanto na Holanda como na Alemanha e na Nova Zelândia foram estabelecidas restrições. A idade mínima para a prostituição é 18 anos e, no caso holandês e no neozelandês, os prostíbulos precisam de licenças especiais. Em alguns países, a situação é mais confusa. A prostituição é legal em certas cidades do estado de Nevada, nos Estados Unidos, e em algumas regiões da Austrália, incluindo a maior cidade, Sydney”[3].
Para muitos países, contudo, a prostituição é uma das mais inaceitáveis e degradantes formas de violação da dignidade humana. Consistiria em pura e simples exploração sexual conjugada com desabrida ganância por lucro. Nela, o ser humano, sobretudo a mulher, é convertido em simples produto de consumo e luxúria de outros seres humanos. A mulher é tratada como “bem”, pois a prostituição seria um negócio tendo a mulher como mercadoria e os homens como compradores. Obviamente, não se pode falar de dignidade humana quando alguém é convertido em mercadoria. O comprador pode, em tais circunstâncias, usar o outro ser humano, dirigindo e controlando a sua autodeterminação, ou trocando-o por uma centena de outros seres humanos, convertidos também em simples mercadorias. A ideia de autodeterminação por parte de quem se prostitui não alivia o problema, uma vez que a dignidade da pessoa humana, como afirma a interpretação predominante, não estaria à disposição de quem quer que seja, e muito menos por parte de quem é transformado em objeto da conduta e do interesse alheio.
A questão é tão controvertida, que mesmo entre os alemães, onde já se noticia a existência de legislação tornando legítima a profissão de prostituta, existe decisão do Tribunal Constitucional considerando correta a negativa de licença a estabelecimento que pretendia comercializar o chamadoPeep Show (exibição erótica em ambiente fechado de pessoas), onde a mulher, mediante pagamento, segundo a Corte, se degradaria, precisamente, por ser tratada como mero objeto de interesse e desejo sexual daqueles que a observam.
A controvertida questão, como se sabe, não se manteve alheia aos brasileiros, pois, também em nosso Parlamento têm curso mais de um projeto de lei que elevam tanto a prostituição feminina como masculina à categoria de profissão dos “trabalhadores da sexualidade[4]". Na Câmara, por exemplo, o projeto de lei (98/03) do deputado Fernando Gabeira, do PV do Rio de Janeiro, prevê a regulamentação da profissão de prostituta. O projeto reconhece que as pessoas que prestam serviços de natureza sexual fazem jus ao pagamento por tais serviços, e suprime artigos do Código Penal, como o que trata de favorecimento à prostituição[5]. Aprovada a proposta, longe de violar a dignidade da mulher, a prostituição passaria, segundo seus defensores, a ser considerada direito fundamental de profissão e de trabalho. A grande questão em tudo isso é saber onde se situa a dignidade da pessoa humana: Onde se proíbe ou onde se protege a sua prática?
Vejamos agora o outro exemplo: o do abate de aviões tripulados sequestrados por terroristas. Também aqui os países democráticos controvertem em suas respostas.
Nos Estados Unidos, todos ficamos sabendo por ocasião dos eventos do chamado 11 de Setembro, que o seu então presidente, George W. Bush, sem qualquer questionamento por parte do público e da imprensa local ou estrangeira, deu autorização às forças armadas para abaterem aviões de passageiros que, sob a ameaça de sequestro por terroristas, colocassem em risco a vida dos habitantes das cidades norte-americanas. Mais do que isso, ele teria delegado a dois generais a ordem para autorizar o abate de aviões civis comerciais considerados perigosos para a população: “Se houver tempo, podemos seguir a hierarquia até ao presidente, mas, se não houver, a decisão pode ser tomada a nível regional. (...) Se for um caso de vida ou morte, em que um ataque está a segundos de acontecer, a ordem poderá ser dada" pelos dois generais, acrescentou o coronel Michael Perini, chefe dos Assuntos Públicos do NORAD (organismo que une os EUA e Canadá no esforço de tornarem o espaço aéreo de ambos os países seguro)[6].
Já na Alemanha, o Tribunal Constitucional vedou o poder das forças armadas alemãs (Bundeswehr), de disparar contra aviões, quando esse poder fosse usado contra um avião sequestrado, já que essa faculdade estatal violaria a dignidade da pessoa humana, pelo que declarou inconstitucional o parágrafo 14 da Lei de Segurança da Aviação, que permite que as forças armadas, sob certas condições, atirem contra aviões sequestrados por terroristas.
A decisão do tribunal baseou-se expressamente na compreensão de que "a proteção da dignidade humana é de caráter estrito e não está permeável a uma restrição” («Der Schutz der Menschenwürde ist strikt und einer Einschränkung nicht zugänglich»). Em síntese, o tribunal decidiu que “a autorização às forças armadas, nos termos do parágrafo 14.3 da Lei de Segurança da Aviação, para abater aeronaves pelo uso direto da força, que se destina a ser usada contra a vida humana, é incompatível com o direito à vida do artigo 2.2, 1, da Lei Fundamental, em conjunto com a garantia da dignidade humana, nos termos do artigo 1.1, da Lei Fundamental, na medida em que ela afeta as pessoas a bordo da aeronave que não são participantes do crime”[7]. Nessas condições, segundo o tribunal, pessoas inocentes seriam transformadas em objeto e meio de defesa de outras pessoas.
O problema também não está distante de nossa realidade, já que o artigo 303, parágrafo 2°, do Código Brasileiro de Aeronáutica, tem suscitado acerbas críticas ao permitir, em condições muito similares àquelas verificadas no caso alemão, o abate de aeronaves classificadas como hostis à segurança da população (cito): “Esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeita à medida de destruição, nos casos dos incisos do caputdeste artigo e após autorização do presidente da República ou autoridade por ele delegada.”
Como facilmente se conclui do tratamento absolutamente contraditório que as diversas experiências constitucionais têm oferecido a problemas existenciais da condição humana, a afirmação do caráter absoluto do princípio da dignidade humana não logrou oferecer solução uniforme a problemas capitais de nossa convivência social. Isso decorre do dado simples de que o ser humano não é um ser isolado no mundo ou na natureza sobre o qual se possam lançar certezas absolutas de valor, que desconsiderem a sua imanente implicação social e histórica. Aliás, se o ser humano tivesse permanecido isolado na natureza não passaria de uma fera como outro animal qualquer e, apenas nessa condição, é que sobre ele poderíamos fazer incidir as certezas absolutas das leis da natureza (mundo do ser), e não a relatividade das normas jurídicas (mundo do dever ser).
A condição de humanidade em termos jurídicos decorre, em essencial medida, da vida em sociedade, mais especificamente, da teia de comunicações que os seres humanos, nas suas relações sociais, mantêm ou podem manter com outros seres humanos. Assim, não faz qualquer sentido buscar compreender a dignidade da pessoa humana numa imagem de ser humano como ser isolado de tudo o mais, com base numa filosofia metafísico-ontológica (absoluta) que tem a pretensão de interpretar o homem despido de sua socialidade, como coisa-bastante-em-si.
Em provocante artigo, Ulfried Neumann aponta para terríveis inconvenientes que a dignidade da pessoa humana, levada ao absoluto, acaba contraditoriamente impondo aos seres humanos (“A dignidade humana como fardo humano — ou como utilizar um direito contra o respectivo titular”[8]). Ali, o autor, convicentemente, nos revela como a utilização sem limites (inflação) e a ontologizaçãometafísica (absolutização) do argumento da dignidade humana acabam por subtrair o caráter jurídico-normativo desse princípio (vendando em absoluto, por exemplo, a possibilidade em alguns países de pesquisas científicas de caráter biológico e genético que poderiam pôr fim a diversas formas de sofrimento humano). Com efeito, não há nada no Direito que não se submeta a restrições e limites. Na verdade, limite e direito são conceitos que se vinculam não apenas de forma antinômica, mas também essencialmente: são contrários impossíveis de serem sequer pensados de forma absoluta ou isolada.
Segundo U. Neumann, “a alternativa a um modelo ontológico é uma concepção na qual a dignidade humana não seja compreendida substantivamente, mas de modo relacional; na qual a dignidade não resida (apenas) na pessoa, mas (também) na interação entre pessoas[9]”. E, concluindo, é ainda de Chaplin, no mesmo excepcional discurso final de “O Grande Ditador”, que se pode retirar a mesma lição: “O reino de Deus está dentro do homem — não de um só homem ou grupo de homens, mas de todos os homens.”
[1] Michael Sachs. Verfassungsrecht II – Grundrechte. Berlin, Heidelberg, N. York: 2003, p. 165.
[2] J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira. Constituição da República Portuguesa Anotada (artigos 1º a 107º). Coimbra Editora, 2007, p. 198.
[7] BVerfG 1 BvR 357/05, de 15 de fevereiro de 2006.
[8] Ulfried Neumann, “A dignidade humana como fardo humano – ou como utilizar um direito contra o respectivo titular”, in Ingo Wolfgang Sarlet (org.). Dimensões da Dignidade: ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 225 e seguintes.
[9]Ingo Wolfgang Sarlet. Dimensões da Dignidade: ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 239. Os acréscimos “apenas” e “também”, entre parêntesis são nossos.