“A Teologia da Libertação, ao falar do ‘pecado estrutural’, ajuda a compreender como o mal se banaliza: porque se aninha não só no coração das pessoas, mas nas redes da convivência: usos, normas, leis, valores ambientais... Aí já não é percebido como maldade, mas como ‘algo normal’, talvez necessário. Eichmann não era um assassino monstruoso, mas um funcionário comum”, escreve o teólogo espanhol José Ignacio G. Faus, em artigo publicado no seu blog Miradas Cristianas, 25-09-2013. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Não vou falar do filme Hannah Arendt. Queria refletir sobre o pensamento de Arendt, de quem tomo o título deste artigo, assim como a diretora do filme tomou muitas frases do livro de Arendt para os diálogos desta. A expressão “banalidade do mal” não procura rebaixar sua gravidade, mas aumentá-la. O mais horrível do mal moral é que autênticas perversões se apresentam e são vividas muitas vezes como atos triviais, indiferentes, quase bons... Se chego a acreditar que algo mau é um direito meu (ou um dever) é muito mais fácil cometê-lo.
A Teologia da Libertação, ao falar do “pecado estrutural”, ajuda a compreender como o mal se banaliza: porque se aninha não só no coração das pessoas, mas nas redes da convivência: usos, normas, leis, valores ambientais... Aí já não é percebido como maldade, mas como “algo normal”, talvez necessário. Eichmann não era um assassino monstruoso, mas um funcionário comum encarregado de fazer entrar nos trens senhores e que chegassem a um determinado lugar. Uma peça de engrenagem já não é moral nem imoral: é simplesmente peça. Que uma mulher africana possa mutilar genitalmente sua própria filha não significa que ela seja um monstro; indica apenas até que ponto grandes atrocidades podem converter-se em evidências quando têm o apoio de uma convicção social.
Acontece o mesmo com a monstruosidade anônima disso que chamam mercado. Chamamos “economia de mercado” a uma economia “da manipulação e do engano”. Ao mudar o nome seu já não vemos mais: porque, que coisa mais banal que um mercado? No entanto, quando Adam Smith escreveu sua famosa página sobre a “mão invisível” do mercado, estava se referindo a uma relação que se assenta sobre o conhecimento pessoal e o diálogo: o vendedor me conhece, não quer me perder como cliente e, precisamente por isso, posso deixá-lo agir egoisticamente porque me sinto contemplado nesse egoísmo. Esse contato pessoal, os rostos visíveis, são a chave da mal chamada “mão invisível” do mercado. Ao contrário, o que hoje chamamos de mercado assenta-se sobre o desconhecimento dos atores e sobre a publicidade (que, se pensa em mim, busca apenas bajular meus instintos mais baixos como modo de me enganar). Decisões que me afetam não são tomadas por uma pessoa próxima que conheço, mas por uma entidade anônima, que não sei bem onde está e se ampara nas palavras abstratas: “diretoria, conselhos de administração”, etc.
Deste modo, condutas mesquinhas e imorais chegam a ser vividas como meros fenômenos naturais. Não se cometem crueldades, apenas “se fazem investimentos”. Como Eichmann que só organizava transportes.
Arendt explica: não é que Eichmann fosse um malvado, como precisavam os judeus que fosse para poder descarregar seu ódio (perverso também, mas agora tingido como justiça). Simplesmente havia renunciado a ser homem, o que é uma das maiores tentações humanas. Por isso a reação do Deus bíblico ao pecado de Adão é a pergunta: “homem, onde estás?”.
O conteúdo dessa humanidade nos é dado por uma esplêndida e pequena frase de Kant: “atreve-te a pensar” (sapere aude). Pensar não designa atividades abstratas, mas capacidade para refletir, afrontar e saborear (“sapere”!) as consequências dos próprios atos, ainda que sejam obediência e “cumprimento do dever”, mas reduzi-los apenas às suas dimensões individuais, e sem abstraí-los das suas implicações globais e do contexto denunciado recentemente pelo Papa Francisco: “aqueles que, no anonimato, tomam decisões socioeconômicas que abrem o caminho para dramas...”. Por alguma razão o Vaticano II havia proibido “contentar-se com uma ética meramente individualista” (GS 30).
Atreve-te a pensar! Arendt não se cansa de repetir ao longo do filme que ela “só busca compreender”. Assim aprende que o mal é maior do que parece, precisamente porque pode “ser banalizado”. Outro exemplo de homem que fechou os seus olhos a essa interpelação é encarnado, para mim, pelo presidente do governo. Ouvimo-lo dizer mil vezes que está fazendo “o que tem que fazer” (como Eichmann); garante inclusive que graças a isto estamos saindo da crise. Mas, mesmo que não fosse verdade, nunca se atreveu a pensar se o caminho para essa saída tinha que ser 25% de crianças desnutridas, famílias modestas obrigadas a dormir na rua quando não podem ser acolhidas pelos pais em suas casas, doentes condenados à morte por um atraso imperdoável de uma cirurgia e centenas de milhares de seres humanos levados não a uma câmara de gás, mas a uma câmara de asfixia pessoal e social.
Rajoy não foi um malvado: estou absolutamente certo sobre isso. Acreditará, inclusive (como Eichmann), que cumpriu seu dever. Mas o pecado estrutural se encarregou de que esse suposto “dever” não fosse mais que uma maldade banalizada. Claro que, atrever-se a pensar dessa maneira, poderia representar o fim de uma carreira política. E, diante disso, melhor “lavar as mãos” como Pilatos, para quem o importante era a própria carreira e que as relações entre o império romano e um povo difícil não fossem estremecidas. Que isso custasse a vida a um inocente desamparado era outra banalidade.
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