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O verdadeiro desafio não é inserir uma idéia nova na mente militar, mas sim expelir a idéia antiga" (Lidell Hart)
Um verdadeiro amigo desabafa-se livremente, aconselha com justiça, ajuda prontamente, aventura-se com ousadia, aceita tudo com paciência, defende com coragem e continua amigo para sempre. William Penn.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Pactos de classe e a lei de ferro da oligarquia




As manifestações de junho representaram o mal estar de uma sociedade que experimenta um conjunto de avanços sociais, mas que estes não se articulam num projeto político transformador, mesmo que nos marcos do capitalismo.

Desde as manifestações de junho, que, apesar de seus evidentes recuos, produziram importantes alterações nas agendas governamentais, assim como na perspectiva dos conflitos no Brasil, têm havido disputas que colocam em questão supostas verdades até então pouco questionadas.

Como procurei analisar em artigo publicado neste Portal em 05/08/2013, intitulado “O esgotamento da aliança conservadora de classes”, o amplo pacto entre classes estabelecido desde o primeiro Governo Lula dá claros sinais de esgotamento, particularmente quanto ao não enfrentamento dos grandes poderes estabelecidos (bancos, grande capital produtivo e especulativo, agronegócio, empreiteiras, mídia etc), ao não aprofundamento das políticas públicas realmente transformadoras e à não radicalização da democracia. Três “nãos” que sintetizam o conservadorismo desse tipo de aliança de classes, mesmo levando-se em consideração os indiscutíveis avanços havidos desde então. Em decorrência dessa pactuação, dá-se a ampla coalizão partidária no Parlamento, contorno muito mais complexo do que as análises superestruturais da ciência política mainstream quer fazer crer. Embora nos governos FHC a aliança de classes tenha sido parcial e ainda mais conservadora, uma vez que excluiu os miseráveis e os pobres – organizados ou não politicamente –, a aliança de classes esteve presente, sendo o sistema político/institucional sua expressão.

Tais pactos – do centro à direita, isto é, entre as classes médias e as elites, no Governo FHC, e da esquerda à direita, isto é, entre os miseráveis e as elites do Governo Lula – têm como decorrência a noção de governabilidade, isto é, o esforço político para manter a aliança de classes. Esquematicamente, o modelo brasileiro protetor das classes médias superiores e das elites – pactuadas ou não com os pobres e miseráveis – funciona assim: financiamento privado, legal e ilegal, das campanhas, em que as elites protegem seus privilégios  em decorrência, muitos dos processos licitatórios e concessões de serviços públicos são enviesados como forma de garantir o chamado “caixa dois”, justamente o maior instrumento de financiamento privado  que, por seu turno, implica a ampla coalizão de partidos, cuja lógica é exatamente a não radicalização da democracia e o não republicanismo, mantendo privilégios. Exemplo notório é o bloqueio sistemático de reformas que de fato distribuam a renda, tais como a não aprovação do imposto sobre grandes fortunas, o não enfrentamento dos interesses que se nutrem na dívida interna e da especulação financeira, entre inúmeros outros  isso resulta na privatização da vida política, em que os interesses privados, notadamente de setores do capital, se sobrepõem vigorosamente a qualquer sentido de “público” da vida “pública”. 

Esse sistema expressa, em verdade, ingovernabilidade, uma vez que mantém o poder do Estado – independentemente de quem esteja no poder – preso ao jogo das elites. As reformas só podem ser realizadas pelas “bordas”, de forma incremental e sobretudo se não ameaçarem os grandes privilégios. Alternativamente, o sistema é altamente governável às elites (setores do grande capital produtivo e especulativo, empreiteiras, especulação imobiliária, agronegócio, setores vinculados a empréstimos do BNDES, grande mídia e outros), que, ao financiarem campanhas, tutelam todo o sistema político, consequentemente bloqueando reformas transformadoras. 

Quando partidos representantes de trabalhadores – organizados e não organizados politicamente –, caso sobretudo do PT, ascendem ao poder, necessitam reproduzir a lógica vigente até para fazer reformas importantes, mas incrementais e sem incomodar essencialmente as elites. Mais ainda, necessitam pactuar com elas para “governar”.

A única forma de romper essa espécie de “lei de ferro da oligarquia” – tema do pensamento intitulado como “elitista” justamente por considerar a circulação do poder apenas pelas elites, mesmo que vindas “de baixo”, segundo Robert Michels –, que a tudo coopta, é ter apoio popular organizado, assim como contribuir para sua organização. Neste último, não no sentido de mobilizar a sociedade – isto é, os pobres e vulneráveis –, mas dar-lhe instrumentos para tanto, por meio da ampla transparência dos contratos, dos financiamentos e das decisões estratégicas relacionadas à esfera pública; da institucionalização da participação popular; e do controle social efetivo. Já aos partidos transformadores, mesmo que no poder, cabe essa mobilização, mas que, de alguma forma, não é exatamente a mesma do Estado, uma vez que este compreende a ideia do “todo”, embora o “todo” oculte toda forma de cisão e fracionamentos. 

Nesse sentido, a direção político/ideológica transformadora do pacto de classes, sob Lula e Dilma – numa perspectiva à esquerda –, não se consumou, uma vez que cooptada pela “lei de ferro da oligarquia” do pacto conservador de classes e consequentemente de coalizão de partidos/financiamento privado. Se por um lado tal oligarquia não permite a democratização, por outro a direção político/ideológica democratizantemente, transformadora, não foi intentada. Afinal, o hiper realismo dos Dirceus, Paloccis e quejandos se impôs de tal forma que “jogar de acordo com as regras do jogo”, sem tentar mudá-la, assim como “assegurar a governabilidade” (!) a qualquer custo manteve o “projeto transformador” original, notadamente do PT, dentro dos limites impostos pela “lei de ferro da oligarquia”. 

Na atual conjuntura, importante análise de Saul Leblon, em interessante postagem publicada neste Portal em 19/09/13 lança luz a essa perspectiva:

“O que está em debate é o método de governo. 
E a ferramentaria de governabilidade correspondente. É possível governar para além do limite programático do PMDB, sem a mobilização democrática da sociedade? Sem uma estrutura de mídia ecumênica, que supere o veto hoje imposto ao debate e às reformas requeridas ao passo seguinte do desenvolvimento?
Para além do aparente labirinto há escolhas a fazer. 
A primeira: decidir como se pretende desfrutar a sobrevida da liquidez mundial, sinalizada pelo anúncio do Fed, na 4ª feira.
Com mais do mesmo? Consumindo a ‘folga’ com importações baratas que acalmam a inflação, sucateiam o parque fabril e embalam a classe média em tours à Miami?
Em segundo lugar: como se pretende conduzir a campanha eleitoral de 2014? 
Como um evento publicitário, a exemplo do que se fez nas últimas? 
Ou requalificá-la como um espaço de mobilização, debate e pactuação de diretrizes para a nova institucionalidade que o avanço do desenvolvimento brasileiro requer?”

Em outras palavras, o futuro do Governo Dilma, e com ele daquilo que sobrou a respeito de uma perspectiva transformadora da realidade brasileira, para além do incrementalismo conservador, aprisionado pela “lei de ferro da oligarquia” – mesmo que tenha implementado inequívocos avanços possíveis pelas bordas –, passa pela pressão e participação popular, pelo controle social e pela radical transparência. Essas parecem ser as forças que poderão mover as placas tectônicas do sistema político, do domínio das finanças especulativas e do grande capital. Até porque há meios para induzir mudanças, tais como o próprio BNDEs, o BB, a CEF, os fundos de pensão, a Petrobras e outros.

A direção político/ideológica, a partir de uma lógica estruturalmente transformadora, isto é, voltada a inverter a lógica do domínio quase sem limites do grande capital – produtivo e especulativo –, dos interesses rentistas, do domínio do agronegócio, do oligopólio da mídia, entre outros, se expressa na criação de condições para tanto.

Deve-se notar que justamente a ausência de direção – ou hegemonia – vem permitindo, do ponto de vista dos trabalhadores, a permanência da barbárie da precarização do trabalho, por diversos meios, entre os quais a “pejotização”, da ainda baixa participação dos salários no PIB, do incrível número de acidentes no trabalho, entre outros aspectos. Do ponto de vista do Capital, a permanência do domínio do BNDEs pelo grande capital; do rentismo, expresso por exemplo na apropriação dos juros da dívida interna, dos lucros incrivelmente exorbitantes dos bancos; da predominância do agronegócio com apoio orçamentário estatal etc. Em relação à mídia, a injustificável tibieza estatal perante o oligopólio, cujos efeitos são gravíssimos do ponto de vista cultural como um todo, e da cultura política em particular. Nesse sentido, é importante destacar que pesquisa realizada recentemente pela Fundação Perseu Abramo constatou que a maior parte dos brasileiros não se sente representada, em diversos sentidos, pela mídia, notadamente a televisão. Por fim, da ainda opacidade estatal – por mais avanços que tenham ocorrido – perante o dinheiro público e as esferas de tomada de decisão (vide a cooptação pelos interesses do capital das agências de regulação, entre inúmeros outros exemplos).

Finalmente, as manifestações de junho representaram, de certa forma, o mal estar de uma sociedade que experimenta um conjunto de avanços sociais, mas que estes não se articulam num projeto político transformador, mesmo que nos marcos do capitalismo. 

A possibilidade de reversão desse quadro é possível, mas depende justamente de um projeto de poder e de nação, que vá além do incrementalismo sem direção político/ideológica! 


Francisco Fonseca, cientista político e historiador, é professor de ciência política no curso de Administração Pública e Governo na FGV/SP. É autor de “O Consenso Forjado – a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil” (São Paulo, Editora Hucitec, 2005) e organizador, em coautoria, do livro “Controle Social da Administração Pública – cenário, avanços e dilemas no Brasil” (São Paulo, Editora Unesp, 2010), entre outros livros e artigos.

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