O ATO E O AUTO DE RESISTÊNCIA
A superprodução denominada História do Brasil é recheada de resistência, contestação, sangue, suor e lágrimas. Para desgosto dos convenientes historiadores oficiais, a acomodação e a passividade não fazem parte da nossa carga hereditária. Os mascates, os inconfidentes, os conjurados, os cabanos, os sabinos, os balaios, os alfaiates, os praianos, os quilombolas, os sertanejos de Antônio Conselheiros, os tenentistas, os farroupilhas, os “subversivos de 64”, os guerrilheiros do Araguaia , os sem-terra e os sem-teto e os caras-pintadas são alguns dos milhões de outros de brasileiros que, independentemente dos motivos, transformaram em ação o sonho da resistência. Eles demonstram que pulsa no sangue do brasileiro, pouco importando o exato lugar em que nascera, a compreensão de que lutar é preciso. Registram enfim, que não se pode mais aceitar a versão de que aqui reside um povo acomodado, despolitizado e que não ama a liberdade.
As linhas escritas no hoje também carrega este paradoxo histórico entre o feito e o dito. As manifestações que se espalharam em cada canto e recanto do país eram apresentadas como sendo um inusitado e repentino protesto da juventude brasileira. Uma pacífica, inocente e passageira resistência aos governantes de plantão ou, não raro, aos lucrativos negócios da Fifa. Versões e propagandas eleitoreiras também surgiram de imediato. Mas as greves de categorias organizadas, os protestos do movimento estudantil, as barricadas de associações civis, as paralizações de serviços públicos, a união da cidadania contra a entrega do pré-sal e as ações defensivas de organizações da sociedade civil continuaram desafiando a lógica da acomodação. O tempo passou, mas a resistência social não.
É neste contexto de necessária regulação da ação estatal que se faz importante o Projeto de Lei 4.479, de 2012, apresentado pelos deputados federais Paulo Teixeira (PT-SP), Fábio Trad (PMDB-MS), Delegado Protógenes (PCdoB-SP) e Miro Teixeira (Pros-RJ). Ele procura disciplinar o emprego da força policial, tratando do que se convencionou chamar de “resistência seguida de morte” ou “auto de resistência”. É o que propõe o seu artigo 292, assim redigido: “Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à captura em flagrante, ou ao cumprimento de ordem judicial, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar moderadamente dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência”. Regula-se, portanto, o dever estatal e o direito do cidadão. Neste caso, o chamado devido processo legal, o direito elementar do detido (seja lá quem for) de saber do que é acusado e, simultaneamente, do uso moderado para coibir a sua resistência.
Há muito que conclama por uma atividade policial eficiente, investigativa, cidadã. Não mais se quer a confusão entre eficiência e arbitrariedade, rigor e truculência, justiça e linchamento. Afinal, não há qualquer conflito entre eficiência e legalidade. Muito pelo contrário: só há eficiência com legalidade. Caso contrário, em algum momento, a transgressão será cobrada — e a sociedade será chamada a repará-la. O projeto não pede que o Estado seja negligente com o crime. Ele quer rigor nas investigações, sem qualquer tipo de complacência, especialmente quando traça regras claras que, seguidas, evitariam as nulidades que geram impunidades.
Ao tempo da ditadura a cidadania enfrentou a truculência da polícia política, indo aos porões em busca de contato com as vítimas da ilegalidade. Alguns sofreram agressões, ameaças, danos à integridade física. Restabeleceu-se o instituto do habeas corpus, como ponto de partida à luta pela redemocratização. Não se pode, agora, permitir retrocessos. E não perder de vista que a legalidade exige vigilância permanente, mesmo porque não é apenas nas ditaduras que os direitos humanos são ameaçados e violados. Também nas democracias, se não houver vigilância cívica. Essa vigilância que pretende estabelecer o projeto.
Nas mesmas páginas da História que se conta no hoje, outros nomes passaram a ocupar os mesmos espaços. Vândalos, mascarados, black bloc, anarquistas e outras denominações tornaram-se conhecidos dos debates e das análises históricas. Lei de Segurança Nacional, tiros de borracha e letais, desacato, prisões coletivas e endurecimento estatal entraram em idênticos debates e análises especializados. O velho conflito “Caso de Polícia x Caso Social” voltou a dividir opiniões e ações do aparelho estatal. O ato e o auto de resistência outra vez faces da mesma escrita histórica. Dever e direito são linhas postas nos livros através dos óculos do historiador. Heróis e bandidos também.
Cezar Britto é advogado e ex-presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil.
Revista Consultor Jurídico
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