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O verdadeiro desafio não é inserir uma idéia nova na mente militar, mas sim expelir a idéia antiga" (Lidell Hart)
Um verdadeiro amigo desabafa-se livremente, aconselha com justiça, ajuda prontamente, aventura-se com ousadia, aceita tudo com paciência, defende com coragem e continua amigo para sempre. William Penn.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Protestos violentos e o modo brasileiro de fazer política

DIÁRIO DE CLASSE


Desde meados do ano passado, vejo-me envolvido com o tema dos protestos que varreram o país a partir daquilo que foi nomeado por Marcos Nobre de “as revoltas de junho”.[1] Todavia, por um motivo ou outro, sempre me esquivava de escrever algo a respeito. Talvez porque, tal qual boa parte da intelectualidade brasileira, estava eu atônito procurando encontrar ferramentas conceituais que me permitissem uma aproximação adequada do fenômeno que então se mostrava diante de todos nós.

De tudo o que foi escrito naquele momento sobre o assunto, o texto de Marcos Nobre a que me referi acima foi aquele que mais me impressionou. Diferentemente daqueles que procuravam elencar uma lista de propósito que levou toda a gente para as ruas em diversas capitais do país, a interpretação de Nobre procurava apontar para uma compreensão mais abrangente das “razões da revolta”. Para ele, mais além do problema envolvendo o aumento das tarifas de ônibus em São Paulo ou dos gastos públicos com os grandes eventos esportivos (principalmente a Copa do Mundo), o que impulsionava a ira coletiva expressada naqueles protestos era uma revolta contra o modo como se faz política no Brasil contemporâneo. Uma espécie de political brazilian way caracterizado por um tipo de blindagem criada pelo sistema político para se proteger da sociedade. Uma blindagem que opera no sentido de neutralizar as mais variadas aspirações mudancistas que, de tempos em tempos, rondam a política nacional, de modo a conferir à ação política o sentido pretendido por aqueles grupos que a controlam efetivamente. Nesse sentido, Nobre identifica algumas semelhanças com outros movimentos populares que, tais quais aqueles verificados em junho de 2013, possuíam a característica de serem movimentos de massa portadores de uma dimensão psico-política profunda, carregando em torno de si uma série de frustações, aspirações e reivindicações. Assim seriam as manifestações pela redemocratização, em 1984, e a campanha para o impeachment de Collor, em 1992. Também nesses dois casos, as aspirações e reivindicações iriam além de reconquistar o direito de votar diretamente para presidente ou de afastar Collor da chefia do executivo nacional. Todas essas mobilizações diziam respeito a tentativas de acuar o sistema político de modo a obriga-lo à mudar.
A partir da constituinte, o sistema político foi obrigado a mudar. Todavia, nessa mudança, criou-se um tipo específico de blindagem que persiste até hoje. Nobre nomeia de pemedebismo essa nova faceta desse processo. Durante a constituinte o bloco que ficou conhecido como “centrão”, acabou por neutralizar todo o caleidoscópio de reivindicações que vinham de vários setores da sociedade. Em 1992, a condenação política de Collor também pode ser compreendida e interpretada a partir da lógica pemedebista de lidar com as aspirações da sociedade.
Junho de 2013 seria, então, a representação mais contundente de revolta diante do pemedebismo. O caráter difuso das manifestações que, para muitos, representaria motivo de perplexidade diante de tamanha movimentação social em direção ao nada, aparece aqui como critério positivo de análise: não se trata de particularidades, mas de um inconformismo sistêmico. O capital de ira acumulado atingiu um estágio de explosão, da forma “projetiva da ira”, que é a vingança, ou da “forma bancária da ira”, que é a revolução, nos moldes propostos por Peter Sloterdijk.[2]
E o sistema político respondeu, a toda essa ira acumulada, de forma mesquinha e apequenada. A inteligência oficial não soube ler — ou simplesmente não quis ver — o verdadeiro motivo da revolta. Tratou de tudo com particularismos: reuniões com os “lideres” dos movimentos; um Projeto de Emenda Constitucional rejeitado aqui (lembro do famoso caso da PEC 37); uma promessa de efetivar a reforma política acolá e, ao final, The Song Remains the Same. E quem entende do riscado sabe do que estou falando.
A questão da reforma política, se encaminhada de forma adequada e eficaz, poderia até surtir algum efeito apaziguador. Todavia, no contexto atual, já nem se fala mais nas possibilidades reais de realização de uma tal reforma. Eu mesmo escrevi, aqui mesmo nessa ConJur, que essa reforma não se realizaria do modo como os agentes políticos queriam fazer crer. Ela já havia sido sufocada em outros momentos, talvez menos raivosos do que aquele vivenciado em 2013. Minha posição foi afirmada a partir de uma constatação: no modo como se pretendia encaminhar a tal reforma, as propostas não procuravam encontrar um consenso em torno dos temas (consenso este envolvendo vários setores da sociedade). Ao contrário, o que se viu foi uma tentativa de, oportunisticamente, empurrar o projeto de um único partido.
Diante da incapacidade de o sistema político responder à “voz das ruas”, os protestos continuaram. E, ao que tudo indica, terão novos episódios. Mas, o ponto que ocupa agora as cabeças pensantes deste país é a relação manifestação/violência. Poucos ainda se perguntam pelos motivos. Preferem apenas acreditar naquilo que aparece na superfície: os protestos são contra as tarifas do transporte público; contra os gastos públicos na realização da Copa do Mundo etc., etc., etc. O problema bola da vez, então, é entender como uma manifestação que começa pacífica, torna-se em questão de minutos na expressão da mais pura e brutal violência.
Desde as “revoltas de junho” as análises buscam respostas para isso: são baderneiros infiltrados em meio a gente de bem? São black blocs? Mas em torno de que eles se agrupam? Seriam eles anarquistas ou, simplesmente, inimigos do capitalismo global? E a repressão policial? Qual a sua medida? Para os mais afoitos, ela deve desaparecer: tudo de ruim que acontece é culpa do despreparo da polícia. Mas, como deixar de reconhecer que, em uma democracia, o irrenunciável direito à manifestação do pensamento, inclusive em sua dimensão transindividual/coletiva, deve conviver com outros direitos, tais quais, o de preservação da integridade física das pessoas, livre iniciativa, respeito à propriedade etc., etc., etc.
Na semana passada o problema da violência nas manifestações atingiu um ponto culminante. O desvario de dois manifestantes que acenderam um rojão em meio a uma praça pública cheia de gente, acabou por ferir gravemente um cinegrafista que trabalhava no local. Nesta semana, confirmou-se a tragédia: o jornalista não resistiu aos ferimentos e acabou falecendo. Claro que não se trata da primeira morte em protestos desde junho 2013. Aqui mesmo, em minha Ribeirão Preto, assistimos no ano passado à morte, por atropelamento, de um garoto que participava de uma manifestação pacífica. E muitas outras pessoas, em vários cantos do país, perderam a vida no momento em que ocorriam manifestações. Independente disso, esse episódio recente, parece ter gerado maior comoção que os demais. Claro que isso responde a uma série de fatores. Alguns, legítimos, evidentemente.
Cogita-se, agora, em razão de pronunciamentos do advogado de defesa e do interrogatório policial daquele que acendeu o rojão, que possa haver manipulação política no que tange a ações violentas em manifestações. Partidos políticos pagariam uma quantia em dinheiro para determinadas pessoas instruindo-as e municiando-as com instrumentos de incitação ao tumulto. Por certo que tal fato, se verdadeiro, é de uma gravidade abissal.
Minha preocupação, no entanto, é que essa discussão polarizada em torno da questão manifestação/violência, acabe por encobrir a necessidade de investigação dos fundamentos políticos de tais movimentos e do tipo de resposta que o sistema político deve dar a eles.
Aquilo que foi oferecido como resposta imediata à questão me parece a solução mais estúpida entre as possíveis. Criar novos crimes, endurecer penas na perspectiva de que isso represente algo efetivo na redução desse tipo de incidente causador de tragédias é ignorar o processo histórico de tentativa fracassadas de se mudar, no Brasil, a realidade através de leis, decretos, regulamentos... Algo, aliás, que remonta ao tempo da Colônia, como bem denuncia Raymundo Faoro.
Evidentemente, a melhor compreensão das razões políticas das revoltas não justificam nenhum dos atos de violência que assistimos a cada manifestação realizada. Mas, certamente, seria a única maneira de se encontrar um caminho adequado para o enfrentamento da questão. A violência não deixa de ser um modo de explosão da ira acumulada.
Marcos Nobre acerta ao identificar na prevalência da política pemedebista as razões da revolta. De algum modo, nossa sociedade acumulou, durante pelo menos duas gerações, um potencial vingativo contra esse modelo de se fazer política, contra o political brazilian way. Refiro-me à “economia da ira” nos moldes trabalhados por Sloterdijk. A rejeição difusa de certos tipos de ações políticas neutralizantes (veja-se, por exemplo, o discurso cínico de determinados nichos da administração esportiva brasileira que chegou a propagar que todo o dinheiro gasto com a construção de estádios para a Copa do Mundo seria oriundo da iniciativa privada!), acaba por fomentar núcleos de ódio social. Assim, “por meio da cultura do ódio, a ira ganha o formato de projetos. Onde amadurecem propósitos vingativos, as energias obscuras se estabilizam ao longo de períodos temporais mais longos”. E, mais adiante, Sloterdijk continua dizendo: “No que esse sujeito se constitui, propósitos vingativos podem se manter durante períodos de tempo mais longos — sim, eles são até mesmo transmissíveis de uma geração para outra. Quando o grau de transmissão aos agentes subsequentes é alcançado, forma-se uma autêntica economia da ira. Nesse momento, o bem da ira se transforma em objeto de uma produção e de um cuidado projetivos”. O resultado desse acúmulo de ira no plano psicopolítico é uma explosão incontrolável: “o homem irado, assim como o homem feliz, perde a possibilidade de avaliar realmente a situação”.[3]
Seguindo a tradição das tragédias gregas, Sloterdijk mostra que a ira e a vingança são sentimentos psicopolíticos que acompanham a humanidade. Essa mesma tradição grega instiuiu um modo de gestão política da ira, transformando a vingança em justiça. Na Oresteia, de Ésquilo, essa transformação vem representada pela instituição do tribunal, que instaura a tradição do julgamento público daqueles que infligiram mal a alguém e assim, diante de todos, instala-se não a vingança pessoal, mas o cultivo político da justiça. As deusas da vingança que eram antes extremamente cruéis, as Eríneas, são rebatizadas como as Eumênides, aquelas que são bem-intencionadas ou, simplesmente, benevolentes, sensatas.
Esse aspecto está ligado à uma gestão psicopolítica da ira. Enquanto a chaga chamadapemedebismo continuar aberta, continuaremos a assistir outras “explosões de ira” provenientes do “banco metafísico da vingança”.  

[1] Cf. Nobre, Marcos. Choque de Democracia: As razões da revolta. São Paulo: Companhia das letras, 2013, edição Kindle.
[2] Sloterdijk, Peter. Ira e Tempo. Ensaio politico-psicológico. São Paulo: Estação Liberdade, 2012, p. 63 e segs.
[3] Sloterdijk, Peter. op., cit., p. 82

Rafael Tomaz de Oliveira é advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e professor universitário.

Revista Consultor Jurídico

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